O que está por trás do aumento das catástrofes climáticas

Casos alarmantes de desastres climáticos não saem do noticiário mundial: enchentes no Rio Grande do Sul, seca na Amazônia, inundações e ondas de calor na África, calor extremo na Ásia.

A Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada às Nações Unidas, alertou que, até agora, 2024 tem sido um ano particularmente ruim em termos de clima extremo, com secas, calor excessivo e inundações causando graves danos à saúde e aos meios de subsistência.

"Quase todas as regiões do mundo registraram eventos climáticos e meteorológicos extremos de diferentes naturezas", afirma Álvaro Silva, especialista em clima da OMM, à DW.

E embora nem todos os eventos climáticos extremos possam ser atribuídos à mudança climática, eles estão se tornando mais frequentes e mais perigosos devido às emissões de gases de efeito estufa provenientes da queima de carvão, petróleo e gás.

No ano passado, o Hemisfério Norte teve o verão mais quente dos últimos dois mil anos e, globalmente, 2024 está a caminho de ser ainda mais quente.

A ligação entre mudanças climáticas e o tempo

A mudança climática aumenta a evaporação das águas e coloca mais vapor de água na atmosfera. Isso causa chuvas mais intensas e enchentes em algumas áreas, e secas mais extremas em outras.

Temperaturas mais altas levam a ondas de calor mais frequentes. Esse fator somado a temperaturas oceânicas também mais altas causam estragos nos padrões climáticos globais, resultando em efeitos díspares em todo o planeta.

"Não é apenas sobre a frequência e a intensidade que se ouve falar, mas também sobre as mudanças no tempo e na duração desses extremos", diz Silva. "Não sabemos mais o que é normal no clima, porque vemos uma tendência crescente de eventos extremos."

A influência da mudança climática é evidente quando se observam as tendências climáticas a longo prazo, mas só recentemente foi possível determinar seu papel em eventos climáticos específicos.

A DW analisou três grandes eventos climáticos deste ano para verificar se a mudança climática foi um fator decisivo: as enchentes no Rio Grande do Sul, as ondas de calor na Índia e os tornados nos Estados Unidos.

Cidades em ruínas: bairros inteiros somem do mapa no RS

O papel nas enchentes do Rio Grande do Sul

As piores enchentes da história do Rio Grande do Sul deixaram cerca de 150 mortos, mais de 100 desaparecidos e mais de 600 mil desalojados ou desabrigados. A vida pública está praticamente paralisada. Ao todo, mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas diretamente pela tragédia.

Cientistas já apontaram os efeitos da mudança climática, além do fenômeno climático El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico nessa época do ano, para explicar as enchentes.

Um estudo publicado pelo grupo francês Laboratório de Ciências Climáticas e Ambientais (LSCE, na sigla em francês) concluiu que as fortes chuvas no estado podem ser atribuídas principalmente à mudança climática causada pelo homem.

A World Weather Attribution (WWA) – uma iniciativa de cientistas que investiga em que medida a mudança climática desempenhou um papel nos recentes eventos climáticos extremos – está trabalhando em seu próprio estudo. Mas a líder da WWA, Friederike Otto, afirma que as enchentes anteriores no Brasil estavam claramente ligadas à mudança climática.

Somada ao clima, a vulnerabilidade também desempenha um papel muito importante nos danos causados pelas enchentes, com alguns engenheiros apontando a falta de preparação e problemas de infraestrutura na região.

O papel nas ondas de calor na Índia

Em abril e maio, a Índia, juntamente com muitas partes da Ásia, sofreu com uma onda de calor sufocante. As temperaturas em algumas partes do território indiano chegaram a 47 °C, causando mortes e miséria generalizada.

Mulher anda na rua com lenço cobrindo a cabeça e o rosto
As temperaturas em algumas partes do território indiano chegaram a 47 °Cnull Debarchan Chatterjee/NurPhoto/picture alliance

A onda de calor, inclusive, pôs em xeque o comparecimento às urnas nas eleições gerais da Índia, que ocorrem ao longo de seis semanas, de 19 de abril a 1º de junho, e são as maiores do mundo.

Vários políticos, funcionários, eleitores e gerentes de campanha ficaram doentes devido ao calor, incluindo um ministro que desmaiou no palco.

"Mais de 900 milhões de eleitores precisam sair ao ar livre e fazer fila (...) por horas e horas sob o sol", afirma Leena Rikkila Tamang, diretora de Ásia na ONG IDEA, uma organização pró-democracia com sede na Suécia. "Vemos uma clara queda no comparecimento dos eleitores em comparação com as eleições de 2019."

A onda de calor na Índia foi 45 vezes mais provável e 0,85 °C mais quente devido à mudança climática, de acordo com a World Weather Attribution (WWA).

"Não há absolutamente nenhuma dúvida de que, enquanto continuarmos queimando combustíveis fósseis e, com isso, aumentando a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, essas ondas de calor se tornarão mais frequentes, mais severas e mais duradouras", diz Otto, que lidera a organização.

Os danos causados por condições climáticas extremas dependem da vulnerabilidade da população. Mesmo um aumento de temperatura aparentemente baixo pode causar grandes danos.

"Em países como a Índia e outras partes do sul da Ásia, onde muitas pessoas trabalham ao ar livre, elas estão muito mais expostas e mais vulneráveis até mesmo a mudanças relativamente pequenas no calor extremo", afirma Otto.

O papel nos tornados nos EUA

Os Estados Unidos registraram um grande número de tornados neste ano. Em um período de quatro dias, mais de 100 tornados atingiram a região Centro-Oeste e as Grandes Planícies, "causando danos significativos e perda de vidas", segundo as autoridades.

O Serviço Nacional de Meteorologia em Omaha, no estado de Nebraska, estabeleceu um recorde ao emitir 48 alertas de tornado em um único dia.

Tornado nos EUA
Em apenas quatro dias, EUA registraram mais de 100 tornados no Centro-Oeste e nas Grandes Planíciesnull Scott Schilke/Sipa USA/picture alliance

Mas as causas dos tornados são muito difíceis de determinar, porque eles são muito localizados. Os estudos para apontar ligações com a mudança climática funcionam melhor em eventos de grande escala em grandes áreas, como ondas de calor ou frio extremos e secas.

Com exceção dos ciclones tropicais no Atlântico Norte, a mudança climática não foi associada ao aumento da velocidade do vento, especialmente sobre a terra, de acordo com Friederike Otto.

"Como não vemos mudanças em outros tipos de velocidade do vento ou outros tipos de tempestades, eu não esperaria ver uma grande mudança, mas isso pode ser bem diferente no caso dos tornados, pois eles também são um fenômeno diferente."

Essencialmente, os cientistas não sabem dizer que tipo de papel a mudança climática desempenhou nos tornados americanos ou se desempenhou de fato algum.

Clima extremo sempre existiu?

A história está repleta de exemplos de condições climáticas extremas, mesmo antes de as engrenagens da Revolução Industrial começarem a girar e a humanidade começar a queimar os combustíveis fósseis responsáveis pela mudança climática.

Esses eventos são fenômenos naturais, mas a mudança do clima claramente os tornou muito mais frequentes e muito mais extremos, garantem os especialistas.

Antes da década de 1990, cerca de 70 a 150 eventos climáticos e relacionados à água eram registrados por ano. Desde 2000, 300 eventos extremos têm sido registrados anualmente. Mesmo com a subnotificação no passado, "a diferença é inquestionável", diz Silva, da OMM.

Em meio à enchente no RS, corte internacional virá ao Brasil avaliar crise climática

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) realizará no Brasil, a partir da próxima sexta-feira (24), uma série de audiências públicas como parte de um processo em que decidirá qual deve ser o papel do Estado diante do impacto das mudanças climáticas.

O convite à corte, cuja sede fica na Costa Rica, partiu do governo brasileiro.

A viagem coincide com o momento em que o Rio Grande do Sul enfrenta a pior catástrofe climática de sua história – cuja magnitude, segundo especialistas, é resultado das mudanças climáticas e do desmonte de políticas de proteção ambiental e de prevenção de desastres.

Segundo a corte, a visita é uma oportunidade de "testemunhar em primeira mão as consequências do impacto da crise climática nas regiões mais vulneráveis".

A primeira audiência será realizada na sexta-feira em Brasília e, depois, continua do dia 27 a 29 de maio em Manaus. Um total de 116 delegações serão ouvidas. Os encontros serão transmitidos nas redes sociais da corte.

As audiências subsidiarão um parecer da IDH sobre "Emergência Climática e Direitos Humanos", a ser elaborado a pedido de Chile e Colômbia, que querem "esclarecer as responsabilidades estatais, tanto individualmente quanto coletivamente, em lidar com a emergência climática" à luz dos direitos humanos segundo o direito internacional.

Segundo a IDH, este é o processo judicial mais participativo de sua história, com 262 contribuições escritas de mais de 600 atores. Antes, em abril, a corte esteve em Barbados para discutir o mesmo tema.

Preocupação com devastação da Amazônia

Em solicitação feita por Chile e Colômbia à corte em 2023, os dois países demonstram preocupação com a devastação da Amazônia, dado que a "região dos Andes é uma das zonas mais sensíveis do mundo a migrações e deslocamentos associados à mudança climática" e, na Colômbia, o aumento da temperatura acima de 1,5ºC "aumentará a intensidade e frequência de temperaturas extremas, tormentas, inundações, deslizamentos de terra e ondas de calor".

"Debater este tema perante uma Corte regional permite, ademais, abordar não apenas as obrigações nacionais ou regionais, mas também aquelas vinculadas à cooperação internacional e as obrigações compartilhadas, mas diferenciadas, a partir de uma perspectiva de direitos humanos", argumentam os dois países.

Quais questões serão analisadas pela IDH

Entre as perguntas que os juízes da corte terão de responder estão questões como qual é o "dever dos Estados de prevenir os fenômenos climáticos gerados pelo aquecimento global (...) à luz do Acordo de Paris e do (...) não aumento da temperatura global além de 1,5°C"; que medidas concretas os países devem adotar para minimizar o impacto da emergência climática; que respostas devem dar para " prevenir, minimizar e abordar as perdas e danos econômicos e não econômicos"; em que medida o acesso à informação ambiental constitui um direito fundamental, necessário à garantia de outros direitos básicos "à vida, à propriedade, à saúde, à participação e ao acesso à justiça"; quais são as obrigações dos Estados em termos de "proteção e reparação adequada e oportuna em função da violação de seus direitos devido à emergência climática"; papel na proteção de ativistas ambientais, dentre outras.

ra (ots)

"Porta do inferno" na Sibéria cresce em ritmo assustador

Uma colaboração internacional de cientistas alemães e russos revelou que a misteriosa cratera de Batagaika, na Sibéria, popularmente conhecida como "porta do inferno", se expande em ritmo alarmante de até um milhão de metros cúbicos por ano devido ao derretimento do permafrost.

Localizado na remota República de Sakha, na região oriental da Rússia, o fenômeno natural de um quilômetro de extensão foi descoberto em 1991 por meio de imagens de satélite, após o colapso de uma encosta nas terras altas de Yana, ao norte de Yakutia.

O fenômeno removeu a cobertura de permafrost – uma camada de gelo, rocha e sedimentos – que permaneceu congelado por 650 mil. É o mais antigo permafrost da Sibéria e o segundo mais antigo do mundo, de acordo com o portal científico Live Science.

Impacto das mudanças climáticas

O Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) explica que esses sumidouros geralmente ocorrem quando a rocha subterrânea, composta de calcário, carbonato e outros sais solúveis, se dissolvem em água. 

Essa cratera, ou, segundo o termo técnico, uma depressão termocárstica, é um sinal claro do impacto das mudanças climáticas, já que o aumento das temperaturas derrete o "cimento gelado" que mantêm a solidez da terra, debilitando sua estrutura. 

À medida em que a terra mais congelada expulsa o calor, o tamanho da cratera aumenta de maneira significativa.

Pesquisadores da Universidade Estatal de Lomosonov, em Moscou, e do Instituto Melnikov para o Permafrost, em colaboração com cientistas alemães, utilizaram um modelo geológico em 3D e determinaram que a parede da encosta está retrocedendo cerca de 12 metros por ano, enquanto a seção colapsada, que atualmente atinge 55 metros abaixo da borda, também derrete rapidamente.

Segundo o estudo publicado no jornal científico Geomorphology, a cratera cresceu 200 metros desde 2014, chegando a uma largura de 990 metros. Embora os cientistas já soubessem que a abertura estava se expandindo, esta foi a primeira vez em que foi possível quantificar o volume de gelo em derretimento.

Motivos para preocupação

Apesar de a Batagaika estar distante de qualquer grande cidade russa, sua rápida expansão é um indicador crítico do aquecimento do permafrost subjacente, segundo relata o portal Interesting Engineering.

O permafrost, que são os solos permanentemente congelados por mais de dois anos, cobrem vastas regiões do Hemisfério Norte. O degelo dessas camadas não provoca apenas os sumidouros, mas também reduz a vegetação que protege do calor solar, acelerando o aquecimento do solo.  

Ao se descongelar, a matéria orgânica aprisionada no permafrost se decompõe, liberando dióxido de carbono na atmosfera, o que contribui para o aquecimento global. O degelo da Batagaika libera cerca de 5 mil toneladas de carbono a cada ano. Desde a década de 1970 até 2023, calcula-se que apenas essa cratera tenha liberado 169,5 mil toneladas de carbono orgânico, afirmam os pesquisadores.

Ainda mais alarmante é o fato de que o sumidouro pode potencialmente liberar na atmosfera antigos micróbios perigosos, para os quais não estamos preparados. A descoberta reforça a urgência de compreendermos e mitigarmos os efeitos das mudanças climáticas em nosso fragilizado ecossistema global.

rc/le (DW)

Desastres ambientais elevam número de deslocados no Brasil

Em 2010, Nedine Beauger perdeu sua casa no terremoto em Porto Príncipe, no Haiti, e se tornou uma entre um milhão de desabrigados no país. Morou entre abrigos e ruas por dois anos, até que em 2015 decidiu emigrar para o Brasil. Em contato com uma comunidade de haitianos no Facebook, escolheu Porto Alegre. Aos 42 anos, mãe solo de uma filha de 5, ela se vê mais uma vez sem casa, mas agora longe da família, atingida pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul.

"Foi difícil recomeçar no Brasil, saía para procurar trabalho sem falar português. Agora perdi tudo de novo, não sei para onde poderei ir", conta a haitiana, que morava no Sarandi, um dos bairros mais afetados pelas chuvas em Porto Alegre.

Hospedada na casa de um amigo haitiano depois de cinco dias num abrigo com a filha, Beauger faz parte dos mais de 600 mil deslocados pelas inundações no Rio Grande do Sul. O total não está distante dos 745 mil deslocamentos por desastres registrados em todo o ano de 2023 no Brasil, segundo relatório anual da organização não-governamental  Observatório de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), divulgado nesta terça-feira (14/05).

Nedine Beauger e a filha
Nedine Beauger veio para o Brasil depois de perder casa em terremoto no Haiti e agora foi atingida por enchente em Porto Alegrenull Arquivo Pessoal

Os números do IDMC são os mais altos para o Brasil desde o início dos registros, em 2008, e se referem a deslocamentos, não necessariamente a indivíduos, que podem se deslocar mais de uma vez. Em 2023, os deslocamentos foram causados sobretudo por chuvas no Amazonas, Pará, Acre e Maranhão e nos três estados da região Sul. No ano passado, o mundo também bateu recorde de deslocamentos por desastres: foram 26,4 milhões causados por inundações, deslizamentos, secas e queimadas, de acordo com o observatório.

Sejam desalojadas, caso de quem tem moradia temporária em outras casas, ou desabrigadas, essas pessoas não são refugiadas climáticas, porque não cruzaram as fronteiras nacionais, sustenta Andrea Pacífico, coordenadora desde 2012 do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais da Universidade Estadual da Paraíba.

Deslocados invisíveis

A pesquisadora lembra que não existem tratados internacionais para a proteção daqueles que costumam ser denominados "refugiados ambientais", termo usado pela primeira vez por um especialista do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 1985. Mas muitos países, como o Brasil, têm legislações com um entendimento ampliado para solicitações de refúgio ou de visto humanitário, que foi concedido, por exemplo, a muitos haitianos após o terremoto de 2010.

"Os estrangeiros que chegam ao Brasil por desastres naturais têm os direitos garantidos pela Lei de Migração de 2017, mas os deslocados internos ainda são invisíveis. Falamos desalojados, desabrigados, removidos", afirma Pacífico, que é professora de Relações Internacionais.

Ela ressalta que, apesar da ausência de tratados internacionais e da diferença entre refugiados e deslocados, o próprio Alto Comissariado da ONU Para Refugiados (Acnur) auxilia deslocados internos. "Se o Brasil passar a usar o termo, terá que responder internacionalmente por essas pessoas."

Com foco na proteção específica dessas populações, a deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP) apresentou no dia 7 de maio um projeto de lei que cria a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos. Ele já ganhou a coautoria de 20 deputados, com o objetivo de pressionar o Congresso por uma tramitação de urgência.

Também no dia 7, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de 2022 que dá prioridade a vítimas de desastres ambientais para a compra ou reconstrução de moradias no programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. O texto agora segue para o Senado.

Já no projeto de lei apresentado por Hilton, o acesso a moradia para deslocados ambientais é mais amplo, sem estar vinculado a um programa. O texto prevê ainda a alteração da CLT para dar estabilidade de dois anos aos deslocados ambientais.

Problema de definição e acesso a dados

O novo projeto de lei começou a ser gestado há dois anos pela ambientalista Naira Santa Rita Wayand após ela perder sua casa com inundações e deslizamentos em Petrópolis, município do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2022. No ano passado, Wayand fundou o Instituto DuClima, que participou da elaboração do projeto junto com o Instituto Marielle Franco e a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama).

"Meu apartamento era no primeiro andar, não ficava em área de risco, e a água chegou até o segundo. Enquanto isso, o Morro da Oficina ia abaixo", lembra ela, que se mudou com a mãe e o filho de 2 anos para Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Wayand contou com a ajuda de seu empregador para se instalar em Juiz de Fora, onde a mãe fazia tratamento de saúde. Enquanto isso, percebeu uma grande alta de preços dos aluguéis em Petrópolis, o que chama de "capitalismo de desastre". "Não saí porque quis, mas porque fui forçada. Mas no meu caso, como todos os outros dos últimos 20, 50 anos, não houve auxílio do Estado", afirma.

Como ativista, Wayand defende o uso do termo "deslocados ambientais", mas reconhece que falar em "refugiado ambiental" causa comoção e muitas vezes é usado para a mobilização política, como fez a própria divulgação do projeto de lei.

Brinquedos cheio de lama em casa de Eldorado do Sul
Família de Giancarlo Ugalde deixou a casa em Eldorado do Sul pouco antes da inundação null Arquivo Pessoal

Além do problema de definição, o acesso a dados comparativos é dificultado pela variedade de desastres e diferentes metodologias. A seca, por exemplo, não costuma ser considerada causa de deslocamentos no Brasil, afirma Andrea Pacífico, que tem pesquisa sobre o sertão do Nordeste.

"Meu pai e mãe são do sertão de Alagoas, sempre ouvi sobre as dificuldades dos sertanejos. Eles não têm nada de retirante. São forçados a migrar por sobrevivência", diz ela, que há três anos faz pesquisa de campo com deslocados por barragens na Paraíba.

De acordo com Ricardo Fal-Dutra Santos, coordenador regional do IDMC para as Américas, Europa e Ásia Central, como a seca é um desastre de evolução lenta, é mais difícil identificá-la como causa de deslocamento. Ainda assim, o relatório do observatório aponta 32 mil deslocamentos devido à seca na Amazônia em 2023, contra 700 em 2022. "É um aumento significativo", afirma. "O que continua uma lacuna para nosso entendimento são os números baixos de deslocamentos por queimadas, que sabemos que ocorrem, mas não se refletem nos dados no Brasil."

Natureza cíclica

De acordo com Santos, para a adoção de políticas públicas, é importante notar que os desastres têm uma natureza cíclica. No Rio Grande do Sul, a gravidade de enchentes anteriores foi desconsiderada, e famílias atingidas continuaram nos mesmos lugares que foram novamente destruídos, em intensidade muito mais forte. Agora, cidades inteiras do Rio Grande do Sul terão que ser reconstruídas, como Eldorado do Sul, Lajeado e Muçum.

Morando desde 2013 em Eldorado do Sul, Giancarlo Ugalde viveu duas temporadas de fortes chuvas em 2023. Em setembro, a cidade não foi alagada. Em novembro, os bairros mais baixos foram inundados, mas sua casa ficou protegida. Quando as chuvas das últimas semanas começaram, ele e a mulher, que pretendiam se mudar por conta de uma proposta de trabalho, apressaram a transferência para Sertão Santana com a filha de 4 anos. A casa nova já é abrigo para diversos de seus parentes de Eldorado do Sul, que foi completamente inundada.

"Os padrinhos da minha filha e os pais da minha comadre estão aqui porque perderam tudo, a água chegou até o teto. Um tio perdeu a casa e a empresa", conta Ugalde, de 41 anos. "Retornamos no sábado para ver nossa casa porque o rio recuou, mas é um cenário de guerra, a cidade toda ficou debaixo de água. Tem muita sujeira, cheiro horrível. Mesmo que alguém possa voltar para casa, não tem mercado, não tem padaria, não tem nada. A cidade vai ter que nascer de novo. Quem tem a possibilidade de não voltar para Eldorado não vai voltar."

"Reforma da governança global é chave para crise climática"

A crise do clima é um dos principais desafios a serem abordados neste ano pelo G20, o grupo das 19 maiores economias do mundo mais União Europeia e União Africana, no momento presidido pelo Brasil

A análise é da economista Luciana Servo, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que coordena o T20 Brasil, grupo de cerca de 80 think tanks encarregados de debater e encaminhar recomendações e propostas a serem abordadas neste ano pelo G20.

A tragédia das enchentes que afetam o Rio Grande do Sul serve como alerta para a urgência em se encontrar soluções para deter o aquecimento global e chegar a um modelo econômico sustentável com inclusão social, uma das prioridades declaradas da presidência rotativa brasileira do fórum multinacional.

"Há emergência em se pensar a questão climática para além da questão de atingir uma meta de carbono, mas também incluindo uma discussão social, empresarial e a necessidade de você criar um diálogo para acelerar esse processo", afirma Servo à DW. A coordenação do T20 é exercida no momento pelo Ipea junto da Fundação Alexandre de Gusmão e do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Servo esteve em Berlim nesta semana para participar do Global Solutions Summit, uma conferência que reúne anualmente na capital alemã representantes de organizações internacionais e da sociedade civil global para discutir soluções para um multilateralismo sustentável e propostas a serem encaminhadas ao G20, cuja próxima cúpula ocorre em novembro no Rio de Janeiro.

Luciana Servo
Economista Luciana Servo, presidente do Ipea, coordena o grupo T20, que encaminha propostas de think tanks ao G20null Helio Montferre/Ipea

Nesta entrevista, ela fala sobre o desafio de propor soluções para os principais problemas globais, como desigualdade, pobreza e transição energética, considerando a dificuldade em se chegar a consensos dentro de um grêmio tão multifacetado como o G20.

Segundo a especialista, a rota para a solução das questões globais deve passar pelo aperfeiçoamento dos sistemas multinacionais de decisão. "Tornar o sistema multilateral eficiente é fundamental para que as políticas internacionais sejam implementadas", afirma.

DW: Quais os temas de mais destaque sendo trabalhados nesse momento pelo T20?

Luciana Servo: As prioridades da presidência brasileira do G20 são trabalhadas pelo T20. A desigualdade, pobreza, inclusão social, a discussão sobre transição energética e climática e o que se chama de reforma do sistema multilateral, que é pensar como a gente pode fortalecer esses sistemas – como o sistema ONU e outros sistemas multilaterais –, para que essa polarização que a gente está vendo acontecer no mundo não influencie as políticas públicas que precisam ser implementadas. Ou para que, pelo menos, existam espaços de diálogo eficientes e efetivos, porque senão você faz com que algumas políticas sejam travadas por conta dessa divisão geopolítica.

Tornar o sistema multilateral eficiente é fundamental para que as políticas internacionais sejam implementadas. Para além disso, a gente também tem toda uma discussão sobre transformação digital, que precisa ser inclusiva. A transformação digital precisa incluir a população e produzir trabalhos decentes, produzir oportunidades para a população. Como financiar isso é outra agenda importante, e a discussão de como essas coisas se conectam, em processos de transição, seja demográfica, energética, climática, e digital, de transformações tecnológicas também são importantes na discussão no T20.

Esse evento em Berlim serve como um fórum de discussão de problemas globais. Quais propostas ao G20 podem sair desse encontro e como é esse processo de encaminhamento?

O Global Solutions Summit, como evento promovido pela Global Solutions Initiative, foi criado [em 2017] durante a presidência alemã do G20. A ideia é acompanhar a cada ano as discussões que estão acontecendo no G20 e no T20, para ir ganhando escala.

Eles produzem esse fórum todo ano, convidando não só os think tanks, mas outras instituições, outras lideranças políticas, para ver se o que está sendo discutido na presidência dos países tem ressonância nessas lideranças. É um espaço intermediário de discussão durante a presidência do G20 e com think tanks e lideranças políticas.

Depois a gente tem a chamada Conferência de Meio-Termo, que vai acontecer no Brasil em julho. E aí, sim, a gente vai entregar as recomendações para o governo. E o governo vai decidir quais dessas recomendações ele vai incorporar ou não. Em seguida temos mais seis meses de trabalho. A presidência brasileira vai até 1° de dezembro, final de novembro desse ano. Em 1° de dezembro a próxima presidência do G20 já passa para a África do Sul.

Aliás, com a série Indonésia, Índia, Brasil e África do Sul, o G20 tem quatro presidências seguidas de países em desenvolvimento...

Isso. As pautas importantes e contextualizadas nos países em desenvolvimento estão sendo trazidas para o debate dos think tanks e do G20.

Quais as questões principais durante essas reuniões em Berlim?

Há urgência em se pensar a questão climática para além de uma questão só de atingir uma meta de carbono. Tem que passar por uma discussão social e empresarial, e considerar a necessidade de se criar um diálogo para acelerar esse processo. Esse foi um dos temas mais relevantes, como a gente faz com que todo mundo entenda que a questão climática não é só uma questão de temperatura, mas que ela tem várias urgências sociais e para o mundo empresarial, que precisam ser incorporadas no diálogo entre os setores sociais.

Não é só uma questão de governo, envolve vários setores: empresas, sociedade civil organizada, população daqueles territórios, institutos de pesquisa, cientistas. Mas por ser um mundo muito dividido, seja nacionalmente seja internacionalmente, isso dificulta a implementação de políticas.

A discussão de como a gente faz com que essas pessoas se unam em torno de um objetivo, em face de tanta polarização, é um outro grande desafio que foi discutido. Como criar confiança de que o que você está propondo vai ser implementado, que a população possa confiar.

[Arquivo DW] O papel do aquecimento global em eventos climáticos extremos

Desde o dia 29 de abril, enchentes devido ao grande volume de chuvas deixaram rastro de destruição sem precedentes no Rio Grande do Sul. As águas que inundaram a capital do estado, Porto Alegre, e deixaram cidades inteiras ilhadas, não têm previsão certa de baixa. Cerca de 85% dos municípios do RS declararam estado de alerta, e a pior tragédia climática da história da região já contabiliza mais de cem mortos.

Em 2022, depois de ondas de calor escaldante estorricarem safras e secarem rios caudalosos no Hemisfério Norte, uma catastrófica super enchente matou mais de mil e desalojou milhões no Paquistão.

A ministra para Mudança Climática Sherry Rehman relatou à DW como, vista de um helicóptero, a área parecia "um pequeno oceano", devido à chuva incessante que se seguiu a altas temperaturas e uma estação de incêndios florestais. "É uma catástrofe climática, tenho toda certeza."

Enchente no Paquistão
Enchente no Paquistão: aquecimento global aumenta probabilidade de catástrofes mortaisnull Shakeel Ahmed/AA/picture alliance

Há anos, cientistas soam o alarme: a queima de combustíveis fósseis e o consequente aquecimento do planeta estão tornando mais frequentes e intensos os eventos climáticos extremos. Porém não está claro até que ponto as mudanças climáticas são responsáveis pelos fenômenos mais recentes.

É muito difícil estabelecer uma correlação causal direta entre o incremento da temperatura média global e uma tempestade isolada, por exemplo.

"Condições extremas sempre houve e sempre haverá", confirma Sjoukje Philip, pesquisadora do clima do Real Instituto Meteorológico dos Países Baixos. "Ainda assim, a mudança climática pode ter impacto sobre a probabilidade ou intensidades dos eventos."

Determinar a extensão dessa contribuição é justamente seu trabalho junto à equipe internacional da World Weather Attribution (WWA), uma iniciativa que conduz em tempo real análises de atribuição de eventos meteorológicos globais.

Trabalhos em área destruída por enchente, igreja ao fundo
Cheia no Vale do Rio Ahr deixou rastro de destruição na Alemanha em meados de 2021null Thomas Lohnes/Getty Images

Aquecimento global como fator para inundações e calor

Catástrofes meteorológicas nunca têm uma única causa, resultando de fatores tanto naturais quanto de fabricação humana. Por exemplo: desmatamento em grande escala e asfaltamento de áreas verdes, que normalmente absorveriam a precipitação pluvial, podem agravar as enchentes.

A mudança climática, obviamente, também é um fator humano, mas nunca o único estopim de uma catástrofe meteorológica. Sua influência depende da natureza do fenômeno e tem peso diferente para cada evento, explica a climatóloga alemã Friederike Otto, do Imperial College de Londres, uma das fundadoras da equipe de pesquisa da WWA.

Para grande parte dos eventos, como chuvas pesadas ou secas, as mudanças climáticas globais "são um fator relativamente pequeno, em relação a outros", diz Otto.

"Uma atmosfera mais quente pode reter mais umidade, resultando em chuva mais pesada", confirma Sjoukje Philip, porém quando e onde a chuva cai, depende de uma diversidade de fatores.

A correlação entre extremos de temperatura e o aquecimento global é muito mais direta, explica a climatóloga da Holanda: as oscilações de temperatura não estão necessariamente mais extremas, mas à medida que a média global aumenta, as ondas de calor ficam mais quentes e os períodos frios mais brandos.

Sem o aquecimento global, os recentes recordes de 40 ºC no Reino Unido seriam praticamente impossíveis, assim como a onda de calor de 2021 na América do Norte, indicam as análises da WWA. A mudança climática tornou 30 vezes mais prováveis as ondas de calor mortal precoces do ano corrente, na Índia e no Paquistão.

Leito seco de rio, com ponte ao fundo
Calor de 40 ºC no Reino Unido seria praticamente impossível sem o aquecimento global, indicam análisesnull Glen Minikin/ SOLO Syndication/picture alliance

Efeitos dependem da localização

Os impactos das mudanças climáticas também variam de região para região, mesmo que se trate e tipos semelhantes de eventos extremos, prossegue Philip.

Compare-se as enchentes na Europa ocidental em julho de 2021, que atingiram sobretudo o Vale do Rio Ahr, na Alemanha, e a Bélgica e deixaram mais de 200 mortos, e a inundação da província KwaZulu-Natal, na África do Sul, em abril de 2022, com pelo menos 435 vítimas.

Segundo a análise da WWA, por volta do início do século 20 a precipitação exagerada no Vale do Ahr só teria probabilidade de acontecer a cada 500 anos. O aquecimento global, contudo, tornou o evento de 1,2 a nove vezes mais provável, podendo repetir-se dentro de 56 a 400 anos. Ao mesmo tempo, a chuva foi possivelmente de 3% a 19% mais forte do que seria 120 anos atrás.

Em KwaZulu-Natal, os cientistas concluíram que a mudança climática tornou de 4% a 8% mais fortes as chuvas torrenciais que devastaram vilas inteiras, e dobrou sua probabilidade de ocorrer.

Portanto as incertezas de atribuição meteorológica variam fortemente, dependendo da localização. Os climatólogos são capazes de determinar a influência do aquecimento com mais precisão em regiões mais amplas. A área inundada na África do Sul era muitas vezes maior do que a dos vales belgas e alemães, porém é quase garantido que no primeiro caso a influência do aquecimento global foi menor.

A meteorologia é caótica demais para permitir prever desastres potenciais no futuro distante, com base nos modelos existentes. Uma previsão do tempo séria ainda é possível somente com poucos dias de antecedência.

Porém o que os modelos de atribuição meteorológica "calculam muito bem" é a frequência de certos padrões, frisa Otto. E, de acordo com as constatações da WWA, se continuarmos a queimar combustíveis fósseis, fazendo subirem as temperaturas médias globais, tornam-se mais prováveis os padrões meteorológicos capazes de desencadear enchentes, secas e outros extremos.

Congresso segue pauta antiambiental em meio a enchentes no RS

Enquanto o Rio Grande do Sul vive a sua pior tragédia climática da história, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pretende votar uma proposta que incentiva e abre caminho para novos desmatamentos na Amazônia, bioma essencial para conter os impactos dos extremos climáticos

O projeto de lei |(PL) 3334 prevê reduzir de 80% para 50% a cota de reserva de imóveis rurais localizados na Amazônia Legal.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente, essa eventual redução pode representar um desmatamento potencial de pelo menos 281.661 km² — o equivalente a todo o território do Tocantins.

O projeto estava inicialmente na pauta da Comissão nesta quarta-feira (08/05), mas de acordo com o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), a discussão foi adiada porque o relator estava de licença médica. A expectativa é que o tema seja retomado semana que vem.

O projeto faz parte do que ambientalistas apelidaram de "pacote da destruição" –  25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que ameaçam direitos socioambientais e agravam a emergência climática.

Essas medidas visam flexibilizar regras sobre temas como licenciamento ambiental, direitos indígenas, mineração, recursos hídricos e financiamento da política ambiental. Segundo relatório da ONG Observatório do Clima, o pacote tem potencial de causar "dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão".

Protagonismo da bancada gaúcha

Parlamentares do Rio Grande do Sul estão na dianteira de algumas dessas propostas – três são de autoria de políticos do estado, que também ocupam outras funções estratégicas, como relatoria de projetos.

Um deles é o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais – proposto pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS). No fim de março, o projeto foi aprovado na CCJ da Câmara, com o relatório favorável do também deputado gaúcho Lucas Redecker (PSDB-RS).

"Esse projeto representa um impacto gravíssimo para toda a biodiversidade em áreas tão sensíveis e que poderiam estar preservadas, inclusive nessas regiões de encostas, de morros, que são propensas a situações de enchente e de deslizamento", explica Clarissa Presotti, especialista em políticas públicas da ONG ambiental WWF.

Questionado sobre o projeto, Redecker afirmou que o texto "se aplica exclusivamente a áreas antropizadas (previamente consolidadas pela ação humana antes de 2008), visando regularizar as atividades ambientais em propriedades rurais, especialmente a proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e reserva legal". 

Já o PL 1282/2019, apresentado pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), autoriza obras de irrigação em áreas de preservação permanente, o que, segundo o Observatório do Clima, potencializaria a crise hídrica e o conflito pela água no Brasil. O texto foi aprovado no fim de 2023 no Senado e agora está na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) na Câmara, aguardando parecer do relator Afonso Hamm (PP-RS). Segundo Heinze, a mudança na legislação trará ganhos de produtividade na agricultura, sem a necessidade de expandir a área plantada.

Foto aérea mostra área de desmatamento na Amazônia
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, PL pode destruir uma área do tamanho do Tocantins na Amazônianull Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance

Com autoria do deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), o PL 10273/2018 esvazia a taxa de controle e fiscalização ambiental e o poder do Ibama. Seu texto foi aprovado em abril na CCJ da Câmara. De acordo com Goergen, o projeto é necessário "a fim de evitar e superar divergências" ao atribuir a proteção do meio ambiente também para estados e municípios.

Críticos apontam que esses projetos também estão tramitando sem transparência.

"A população do Rio Grande do Sul está desesperada, e uma parte desse desespero é causada pela ação dessas pessoas", afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Ele destaca que nunca houve um volume tão grande de medidas nocivas para o meio ambiente como na atual legislatura, que avançam com muita velocidade.

"O Congresso sequer faz audiências públicas para tentar avaliar a opinião de especialistas sobre aquilo que ele mesmo está propondo. A consequência do que é proposto hoje pelo Congresso na área ambiental, o que aquilo vai causar no país, simplesmente não interessa mais para os legisladores, sobretudo para esse combo que há no Congresso da extrema direita com ruralistas contra a agenda ambiental", avalia Astrini.

Desmantelamento do planejamento ambiental do RS

Na esfera estadual, também há críticas sobre o desmonte de políticas públicas para a área ambiental. Semanas antes dos temporais que inundaram o Rio Grande do Sul, o governo gaúcho sancionou uma lei que permite desmatar Áreas de Preservação Permanente (APPs) para construção de barragens.

"Flexibilizaram leis para aumentar áreas de plantio de soja, desmontaram planos diretores para ampliar a especulação imobiliária em zona ribeirinhas, para implantar minas de carvão e para favorecer a especulação imobiliária", afirmou em artigo o geólogo Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em 2019, o já governador Eduardo Leite (PSDB) cortou ou alterou mais de 400 pontos do Código Ambiental do estado, com o objetivo de flexibilizar as exigências ambientais, concedendo, em alguns casos, a possibilidade de autolicenciamento. À época, o governo estadual afirmou que o novo código resultaria num "melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico" e que as mudanças eram uma "modernização".

Segundo Menegat, há um uso intensivo do solo no estado para monocultura, sobretudo da soja, e uma desestruturação dos planos diretores nas cidades, favorecendo a especulação imobiliária, como a construção de espigões nas margens do lago Guaíba.

Houve ainda um desmonte da própria infraestrutura do estado, o que resultou em falhas nos sistemas de proteção contra inundação em Porto Alegre, com rupturas de diques e casas de bombas que não funcionaram.

Catástrofe no RS: mais de 1,4 milhão de pessoas afetadas

Os temporais que atingiram o Rio Grande do Sul desde o fim de abril deixaram cidades inteiras ilhadas e pessoas isoladas, aguardando resgate por helicópteros, barcos, jetskis e caminhões do Exército, algumas de cima de telhados ou na beira de estradas. Ao todo, 397 dos 497 foram atingidos, afetando diretamente mais de 1,4 milhão de pessoas.

O número de mortos decorrentes dos alagamentos subiu para 90, em ao menos 38 municípios, segundo dados da Defesa Civil. Outros quatro óbitos estão em investigação para confirmar se tiveram relação com as enchentes. Há 131 pessoas desaparecidas e 362 feridas.

O governo do estado fez um alerta nesta segunda (06/05) para o risco de novas enchentes, sobretudo em municípios localizados ao redor da Lagoa dos Patos, no sul. Estima-se que a água represada na região de Porto Alegre deve descer para a lagoa nos próximos dias.

Além disso, a previsão meteorológica era de que os volumes de chuvas na terça excedessem os 100 milímetros em 24 horas, podendo superar os 150 mm até o início da quarta-feira. No entorno da região de Pelotas, Rio Grande, em direção à Campanha e oeste do estado, até a área de Alegrete e São Borja, também estavam previstos temporais, ventos com rajadas acima dos 70 km/h e queda de granizo.

Voluntários e membros de equipes de resgate relatam o drama de procurar sobreviventes em meio a uma tragédia sem trégua prevista.

"É um cenário muito triste, porque à noite é um breu. Eles [membros da equipe de resgate] escutam pessoas pedindo socorro, daí a pouco não ouvem mais, não sabem se a pessoa cansou, se a pessoa morreu", relata Andressa Batista, que teve a casa submersa em Porto Alegre e agora trabalha como voluntária.

"Saí só com o básico, levei meu cachorro, meu gato, vim para cá e o resto estava tudo lá. E agora a água está no teto. Aí perdi os livros da universidade, perdi toda a minha história, debaixo d'água. Vim aqui para ajudar na logística e tentar encontrar voluntários para me ajudar na logística" disse à DW.

Até segunda-feira, o trabalho integrado de militares e civis contava com 3.406 militares da Marinha, Exército e Aeronáutica. Estão sendo empregados 15 helicópteros, um avião de carga, 243 embarcações e 2,5 mil viaturas e equipamentos de engenharia (civis e militares). O Ministério da Defesa estima que as operações de resgate tenham salvo 46 mil vidas.

Brasilien Hochwasser Überschwemmungen
null Diego Vara/REUTERS

A tragédia climática deixou pelo menos 336 municípios em estado de emergência, o equivalente a 67% das cidades gaúchas. O governo estadual classifica a situação como a maior catástrofe climática já vivida na região.

Entre as cidades em situação de calamidade, está a capital, Porto Alegre, e outras localidades populosas como Canoas e Caxias do Sul. Mais de 156 mil pessoas estão desalojadas no estado, e mais de 48 mil estão em abrigos. 

A situação dos desalojados e desabrigados no RS pode ficar mais crítica a partir de quinta-feira. De acordo com o  Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), as temperaturas mínimas em Porto Alegre podem ficar em torno dos 12°C.

Municípios estão com fornecimento prejudicado de água tratada, energia elétrica, sinal de telefone e internet. De acordo com boletim da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), divulgado às 17h de segunda-feira (6), 750 mil imóveis estão desabastecidos em 51 municípios de sua área de atendimento. Estima-se que 85% das pessoas em Porto Alegre esteja sem água potável.

Região metropolitana

A região metropolitana de Porto Alegre é a mais atingida pela falta de água potável, com 490 mil imóveis desabastecidos, em sete cidades. Alvorada, Canoas, Cachoeirinha, Esteio e Sapucaia do Sul estão totalmente sem fornecimento.

Em Porto Alegre, os sistemas de bombeamento de água estão em colapso, ou por inundação ou por falta de energia para prevenção de acidentes. Das 23 casas de bombas da capital, apenas quatro estão funcionando. As ruas estão alagadas e vários bairros, como Menino Deus e Cidade Baixa, estão sendo esvaziados.

O Aeroporto Salgado Filho não voltará a funcionar até pelo menos 30 de maio, conforme informou a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).

Eldorado do Sul, a 12 quilômetros de Porto Alegre, está 95% submersa e isolada pelas águas do Guaíba e do rio Jacuí. Parte dos moradores ficou na estrada que dá acesso à cidade à espera de resgate, sem ter para onde ir nem para onde voltar. Resgates acontecem por meio de helicópteros e caminhões do Exército. 

Cidade vista de cima, com as ruas alagadas
Canoas, na região metropolitana de Porto Algre, é uma das cidades mais afetadasnull Amanda Perobelli/REUTERS

Estradas foram danificadas em todo o estado – rodovias federais apresentam 61 pontos com bloqueios totais ou parciais, conforme balanço de domingo. As estradas estaduais têm 102 interdições totais ou parciais.

Os municípios também estão com dificuldade de acesso a telefonia e dados móveis. De acordo com as operadoras, 46 cidades estão sem serviços da TIM, 45 sem os serviços da Vivo e 24 municípios não conseguem acesso pela Claro.

A recomendação para quem ainda está em áreas de risco é de não ficar no térreo das casas. A maior parte dos resgatados estão sendo levados a Porto Alegre e Canoas.

Lenta redução da água

O nível do Guaíba em Porto Alegre estava em 5,28 metros às 11h desta terça-feira (07/05), segundo o monitoramento em tempo real da Agência Nacional de Águas (ANA). Desde a semana passada, o Guaíba ultrapassou o pico da maior cheia registrada até então, o nível de 4,76 metros, em 1941, quando inundou parte do centro da capital gaúcha.

O limite para inundações do Guaíba é de 3 metros, uma referência que indica possíveis danos aos municípios.

De acordo com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS), a previsão é de lenta redução dos níveis da água, que devem ficar acima dos 3 metros ao longo da semana.

A água de alagamento oferece ainda o risco de doenças, como leptospirose e hepatite A, pois ela se junta ao esgoto.

sf/le

"Não tem mais volta", diz Nobre sobre catástrofes climáticas

Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas extremas chegaram para ficar.

O que chama a atenção, diz Carlos Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.

A antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta: em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.

"Os modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul", afirma Nobre.

O desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. "Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais", diz ele em entrevista à DW.

DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?

Carlos Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023. Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano Pacífico Equatorial.

O El Niño induz uma seca na Amazônia e um aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.

Carlos Nobre olhando para a frente
Carlos Nobre: "Precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta"null Tiziana Fabi/AFP/Getty Images

Essa chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente, cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de bloqueio.

O El Niño já está numa fase de perder força, o jato subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.

As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?

Os modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.

O que chama a atenção é que isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de 2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos extremos] já se anteciparam muito.

No ano passado atingimos o recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu 1,56°C mais quente, é o recorde histórico.

Os modelos indicavam que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como vimos no Rio Grande do Sul.

Com o planeta já perto deste 1,5°C  de aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o Brasil tem que fazer para lidar com isso?

Se os oceanos continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.

Nesse caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos extremos.

O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?

A capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.

Praticamente, consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever recordes, mas eles preveem muita chuva.

Aquele evento extremo de fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas informações.

É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3 quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA já existe, seria importante retomar o papel dele.

Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?

É o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o Brasil pode ser um dos líderes.

Mas estes eventos extremos não têm mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e, lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas, tudo o que a gente viu no Sul.

Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.

Por exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas! Esses eventos vão continuar acontecendo!

Tem também as comunidades que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses brasileiros viverem.

Logicamente, precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que, até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.

É preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas, sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.

 

Como a mudança climática altera o ciclo global da água

O processo pelo qual a água se move através do solo, mares e atmosfera da Terra denomina-se ciclo hidrológico. Seja na forma gasosa, líquida ou sólida, a água é parte do ciclo natural que reabastece continuamente o suprimento necessário à sobrevivência dos humanos e de todos os demais seres vivos.

Dessa reserva finita, 97% é salgada, e o 3% restante, de água doce, serve para beber, banhar-se, irrigar plantações, entre inúmeros outros usos. No entanto, a maior parte está fora de alcance, presa em geleiras ou no subsolo profundo, em aquíferos. Assim, apenas cerca de 1% das reservas hídricas totais está disponível para manter toda a vida no planeta.

Como funciona o ciclo hidrológico?

A água contida em lagos, rios, oceanos e mares é constantemente aquecida pelo sol. À medida que as superfícies se aquecem, ela se transforma em vapor, escapando para a atmosfera, num processo que o vento acelera. As plantas igualmente liberam água pelos poros das folhas e caules, por transpiração.

Uma vez no ar, o vapor esfria e passa a se condensar em torno de minúsculas partículas suspensas de poeira, fumaça e outros poluentes, formando nuvens. Estas se movem em torno do planeta em "rios atmosféricos", uma característica crucial do ciclo global que alimenta os sistemas meteorológicos.

A partir de um certo volume, as gotículas suspensas nas nuvens se fundem, formando gotas maiores. Quando estão pesadas demais, caem ao chão em forma de chuva, neve ou granizo, dependendo da temperatura do ar. Essa precipitação reabastece os rios, lagos e outros corpos hídricos, e o ciclo recomeça.

A água também se infiltra no solo por influência da gravidade e pressão, onde fica coletada em reservatórios e aquíferos subterrâneos. Ela continua penetrando cada vez mais fundo, às vezes ao longo de milhares de anos, antes de escoar para um corpo hídrico, retornando ao ciclo.

Como a mudança climática está perturbando o ciclo hidrológico?

Pesquisas recentes demonstram que em certas regiões o ciclo da água está se acelerando, em reação às mudanças climáticas ditadas pela ação humana. Temperaturas mais altas aquecem a atmosfera inferior, intensificando a evaporação, injetando mais vapor no ar e aumentando a probabilidade de precipitação pluvial, muitas vezes na forma de tempestades intensas e imprevisíveis.

Em contrapartida, o aumento da evaporação também pode agravar a situação em áreas propensas a secas, pelo fato de o líquido escapar para a atmosfera em vez de permanecer no solo, onde é necessário.

Cientistas do Instituto de Ciências Marinhas de Barcelona, Espanha, demonstraram como a mudança climática está acelerando o ciclo através de uma análise da salinidade da superfície oceânica – a qual aumenta à medida que a evaporação se intensifica.

"A aceleração do ciclo hidrológico tem implicações tanto para o oceano, como para o continente, onde as tempestades podem se tornar cada vez mais intensas", advertiu a principal autora do estudo, Estrella Olmedo, num comunicado de imprensa.

"Essa maior quantidade de água circulando na atmosfera também explicaria o incremento das precipitações detectado em algumas áreas polares, onde o fato de estar chovendo em vez de nevar vem acelerando o derretimento."

Seca no reservatório de Gachala, Colômbia, em 2024
Seca atingiu o reservatório de Gachala, Colômbia, em 2024null Jhojan Hilarion/AFP/Getty Images

Como combater a ruptura do ciclo hidrológico?

Está claro que não será fácil cortar as emissões carbônicas dos combustíveis fósseis, e que avanços perceptíveis não virão rapidamente. Mas são possíveis algumas medidas imediatas para estabilizar o ciclo hidrológico.

Restaurar as zonas úmidas e repensar a agricultura, incorporando técnicas de cultivo que conservem a água e fortaleçam o solo, pode ajudar a manter e restaurar a capacidade do solo de absorver, purificar e armazenar água.

Restabelecer um estado mais natural dos rios e hidrovias é outro meio de reverter parte dos danos. Os projetos para remover represas e açudes obsoletos na Europa e outras regiões são um grande passo para a restauração das várzeas, que absorvem água e contribuem para abastecer as reservas subterrâneas.

As cidades podem igualmente reforçar o ciclo hidrológico de modo natural, tornando as superfícies urbanas mais permeáveis. As superfícies porosas das "cidades-esponjas" permitem que água se infiltre por ruas, praças e outros espaços, em vez de ser canalizada para fora. Assim, criam-se reservas para os períodos de seca, ao mesmo tempo que se combatem as inundações.

Tempestade pesada sobre a região de Miesbach, na Baviera, Alemanha
Tempestade pesada sobre a região de Miesbach, na Baviera, Alemanhanull Bernd März/B&S/imago images

O que está em jogo?

Nos próximos anos, as cidades e províncias no divisor de águas das cordilheiras de Hindu Kush e Himalaia, na Ásia Central, talvez precisem passar a adotar soluções desse tipo. Para obter água doce, bilhões de habitantes locais dependem do acúmulo sazonal de neve firme e gelo nas montanhas e geleiras.

Contudo, um terço dos grandes campos glaciais da região devem desaparecer até o fim do século, de acordo com um estudo de 2019, do Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas, no Nepal. E isso, só se a humanidade conseguir manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC em relação à era pré-industrial.

Sem um fluxo consistente de água de degelo, a escassez hídrica se agravará para bilhões de indivíduos. Embora as reservas subterrâneas sejam capazes de compensar parte da escassez, também elas deverão diminuir nas décadas futuras, devido à mudança do clima global.

A agricultura já se tornou mais difícil em regiões como a de Ladakh, administrada pela Índia, na cordilheira do Hindu Kush-Himalaia, onde nas últimas décadas se registrou queda da precipitação de neve e recuo das geleiras.

"Essa é a crise de que não se ouve falar", comenta Philippus Wester Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas. "Os impactos para a população de uma das regiões montanhosas mais frágeis e expostas a ameaças do mundo, irão desde um aumento dos eventos meteorológicos extremos, à redução das safras e maior frequência de desastres."

Como Copenhague se tornou uma "cidade-esponja" contra cheias

Embora seja uma das rotatórias mais movimentadas do leste de Copenhague, o ar em Sankt Kjelds Plads não é pesado, não tem o cheiro e a textura dos gases de escape. E, em vez do rugido dos motores, a paisagem sonora é caracterizada pelo som melodioso produzido por pássaros.

A rotatória, que é cercada por arbustos e árvores, faz parte de um experimento em grande escala para transformar os espaços públicos da capital dinamarquesa. A ideia é tornar Copenhague mais "habitável", criando locais para os cidadãos se encontrarem e um habitat para a biodiversidade, ao mesmo tempo em que cria engrenagens em uma máquina de controle de enchentes.

Essa transformação foi desencadeada pelos eventos de 2 de julho de 2011, quando Copenhague foi atingida pelo que foi apelidado de "a chuva do milênio".

O aguaceiro maciço causou inundação de ruas e casas. E, sem ter para onde escoar, a água permaneceu por dias. Ratos mortos foram vistos flutuando pela cidade, e uma pesquisa posterior revelou que durante os trabalhos de limpeza um quarto dos trabalhadores do saneamento foi infectado com doenças como a leptospirose. Um deles até morreu.

Nos sete anos seguintes, esse tipo de tempestade começou a se tornar cada vez mais comum, com quatro eventos de "chuvas do século" registrados nesse período. Isso custou à cidade pelo menos 800 milhões de euros (R$ 4,3 bilhões) em prejuízos, deixando claro para os formuladores de políticas públicas que era hora de repensar a capital dinamarquesa.

Vista aérea de uma rotunda cercada de árvores, arbustos, gramados e prédios
A rotunda Sankt Kjelds Plads é um dos mais de 250 espaços de Copenhague que foram reformuladosnull City of Copenhagen

Design urbano inspirado na esponja

Nos últimos séculos, o foco do desenvolvimento urbano em lugares como Copenhague foi a criação de "cidades-máquina" que pudessem ser construídas rapidamente e fossem eficientes para habitação, indústria e economia. Mas muitos desses centros urbanos acabaram interferindo no ciclo da água, especialmente aqueles que modificaram leitos de rios ou foram construídos sobre planícies aluviais.

Com o concreto e o asfalto cobrindo áreas antes destinadas à grama e ao solo, a água das chuvas mais fortes ficou sem ter para onde ir. Com muita frequência, isso resulta em enchentes, e cidades do mundo todo estão explorando maneiras de reverter esse tipo de desenvolvimento urbano. E elas fazem isso se transformando em "esponjas" urbanas.

Em outras palavras, essas cidades estão criando espaços e infraestrutura para absorver, reter e liberar a água de forma a permitir que ela flua de volta para seu ciclo.

A China está na liderança, com mais de 60 de suas cidades sendo reformadas e agora incorporando estruturas como biovaletas e jardins de chuva para reter a água. Jan Rasmussen, chefe do "Cloudburst Master Plan" (plano diretor para tempestades) de Copenhague, também viu potencial para a Dinamarca.

"Nossos políticos decidiram que há realmente uma necessidade de escoar a água da cidade muito rapidamente", disse Rasmussen. "Eles perguntaram se poderíamos fazer isso de forma inteligente, se poderíamos expandir o sistema de esgoto. Poderíamos lidar com as chuvas na superfície?"

Absorvendo a água da chuva

Tendo estudado projetos de cidades-esponja em todo o mundo, a equipe de Rasmussen pensou na remodelação de cerca de 250 espaços públicos de forma a ajudar na retenção ou redirecionamento de águas pluviais, incluindo parques, parques infantis e a rotatória Sankt Kjelds Plads. A ideia é usar a capacidade natural de retenção das árvores, dos arbustos e do solo e deixar a água pluvial fluir para locais onde não seja destrutiva.

Uma dúzia de lagos que margeiam a rotatória foi então projetada de forma a reter o excesso de água da chuva no caso de uma tempestade. Assim como outros lagos semelhantes espalhados pela cidade e aberturas largas nas laterais de ruas baixas, eles servem para canalizar a água da enchente para uma rede de túneis que está sendo instalada 20 metros abaixo da superfície.

Desenho mostra uma espécie de piscina cercada de árvores
Como o espaço acima poderia ficar após uma chuva forte e repentinanull Tredje Natur
Ilustração mostra pessoas em uma quadra de esportes ao ar livre abaixo do nível da rua
A ideia é criar espaços públicos que também sirvam para reter água, caso necessárionull Tredje Natur

Durante uma chuva "normal", as águas pluviais são direcionadas para o porto por meio desse sistema de drenagem. No entanto, quando há um excesso, como em um cenário de tempestade, uma estação de bombeamento no porto entrará em ação, forçando para o mar a água acumulada nos túneis, criando assim espaço para mais água da chuva e evitando que as ruas sejam inundadas. Essa estação está sendo construída atualmente e estará pronta em 2026.

"Ainda haverá água nas ruas. Quero dizer, elas não ficarão completamente secas. Mas passaremos de um metro [de água de enchente] para no máximo 20 centímetros", disse Jes Clauson-Kaas, engenheiro da Hofor, o departamento de gerenciamento de água responsável pela construção do túnel.       

Benefícios de longo prazo

Parte do desafio é conseguir a adesão dos moradores locais. E isso nem sempre é fácil quando se trata de fechar parquinhos infantis ou os parques da cidade por longos períodos para transformá-los em zonas de inundação, ou financiar os planos de adaptação através de uma taxa extra nas contas de água.

Mas Clouson-Kaas diz que equipar para o futuro uma cidade propensa a inundações faz sentido do ponto de vista financeiro. "Perdemos cerca de 1 bilhão com esse único evento [em 2011], mas esperamos que haja vários eventos nos próximos 100 anos. Dizem que a perda potencial pode ser de pelo menos 4 ou 5 bilhões de euros. Portanto, se investirmos 2 bilhões de euros, ainda assim valerá a pena", disse ele.

Copenhague está em posição – financeira e política – de investir nessa infraestrutura agora, em vez de lidar com possíveis danos no futuro. A cidade se tornou um lugar na qual as outras cidades buscam um exemplo para aprender sobre os benefícios de se criar uma esponja urbana.

Desastres recentes no RS mataram mais do que soma de 3 décadas

Em menos de um ano, as chuvas intensas no Rio Grande do Sul já fizeram mais de 110 vítimas - mais do que o total registrado em desastres naturais nas três décadas precedentes.

Na catástrofe climática mais recente, classificada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) como o "maior desastre do estado" em termos de prejuízos materiais, chuvas persistentes desde o início da semana deixaram ao menos 37 mortos e 74 desaparecidos. Mais de 30 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas, outras centenas de milhares estão sem água ou luz.

Palco de desastres climáticos recorrentes

O estado no extremo sul do país, que tem sofrido com eventos climáticos extremos recorrentes, é um dos que mais registrou desastres naturais nas últimas três décadas, ficando atrás apenas de Minas Gerais, segundo dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil e do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.

Entre 1991 e 2023, foram cerca de 8,5 mil registros, o equivalente a 12,5% de todas as ocorrências no Brasil – sendo que, pelos dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil, o saldo de mortos nesses desastres em pouco mais de 30 anos foi de 101 até 2022.

Já o governo gaúcho aponta que entre 2003 e 2021, 14 pessoas morreram em desastres naturais no estado.

O RS também viu as ondas de calor dobrarem nos últimos 40 anos, segundo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Especialistas apontam que as mudanças climáticas têm potencializado os efeitos de fenômenos sazonais como o El Niño, que tende a provocar mais chuvas naquela região, e o La Niña, que de 2020 até o início de 2023 castigou os gaúchos com uma estiagem severa e prejuízos bilionários ao setor agropecuário. Em alguns municípios chegou a haver até mesmo racionamento de água.

No desastre climático mais recente, classificado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) como o "maior desastre do estado", chuvas persistentes desde o início da semana deixaram ao menos 37 mortos e 60 desaparecidos. Quase 15 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas, outras centenas de milhares estão sem água ou luz. O nível do rio Taquari subiu ao maior patamar da história, quebrando a marca dos 30 metros.

Estado teve outras três grandes enchentes em junho, setembro e novembro de 2023

Em novembro do ano passado, chuvas mais brandas nas regiões do rio Taquari, Serra Gaúcha e região metropolitana de Porto Alegre provocaram a morte de 8 pessoas e forçaram outras 28 mil para fora de suas casas.

Em setembro, um grande volume de chuvas em um curto espaço de tempo provocou inundações principalmente no Vale do Taquari, fazendo 54 vítimas e desabrigando ou desalojarando mais de 15 mil pessoas, no que foi considerado o maior desastre natural da história do RS desde 1959.

Antes disso, em junho, a passagem de um ciclone extratropical provocou chuvas tão intensas que pessoas chegaram a morrer afogadas dentro de casa devido à subida repentina do nível dos rios. Houve 16 mortos, além de 7,5 mil desabrigados ou desalojados em mais de 40 cidades na região metropolitana de Porto Alegre, no litoral norte do estado e na Serra Gaúcha.

ra/jps (ots)

Alemanha já consumiu em 4 meses o limite de um ano inteiro

A Alemanha atingiu em quatro meses o limite de consumo sustentável para o ano inteiro. Se o mundo inteiro seguisse o exemplo do país europeu, a humanidade precisaria de três planetas para atender à demanda por recursos de forma sustentável.

O cálculo é da ONG americana de meio ambiente Global Footprint Network, e considera a demanda nacional por recursos e serviços ecológicos perante a capacidade de regeneração do planeta.

Os países que mais esbanjam, como Catar e Luxemburgo, já excederam sua cota em fevereiro. Na ponta oposta do fenômeno estão nações como o Cambodja e Madagascar, que devem ficar muito abaixo dos limites de consumo sustentável.

Na Alemanha, o ritmo de degradação planetária está acelerando. No ano passado, o país estourou sua cota no dia 4 de maio. Neste ano, a marca foi batida um dia mais cedo, em 2 de maio – a diferença se deve ao fato de 2024 ser um ano bissexto, com 366 em vez dos usuais 365 dias.

Chamado à ação urgente

"O Dia da Sobrecarga da Terra na Alemanha é um lembrete para mudar as condições subjacentes em todos os setores agora, de modo que o comportamento sustentável se torne o novo normal", afirma Aylin Lehnert em um comunicado da ONG ambientalista alemã Germanwatch.

Segundo Lehnert, a sobrecarga do planeta é uma dívida que precisa ser freada. "Precisamos de um novo freio da dívida", diz, aludindo à restrição de endividamento do governo alemão que brecou investimentos na transição verde da economia.

A Germanwatch aponta a produção e o consumo de carne na Alemanha como um dos maiores motores da demanda excessiva por recursos planetários. O país destina aproximadamente 60% de suas terras cultiváveis à produção de ração animal, além de importar outras milhares de toneladas do exterior.

Uma mão segura um pacote de carne em uma geladeira num supermercado
Produção e consumo de carne é apontado por ambientalistas como um dos fatores que mais contribui para a sobrecarga da terranull INA FASSBENDER/AFP

Entre 2016 e 2018, o total de importações alemãs levou à destruição de 138 mil hectares de floresta tropical mundo afora, segundo dados da Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ).

Boa parte do fardo desse consumismo é carregado pelo Sul Global, que em grande medida vive dentro de limites sustentáveis, mas sofre com a destruição ambiental e os danos provocados pelas mudanças climáticas.

Para a Federação Alemã para Proteção Ambiental e da Natureza (Bund), a Alemanha faz uso irresponsável de seu solo, água e outros recursos naturais.

"Nosso planeta está sobrecarregado. Um país que consome tantos recursos como nós está operando de forma ruim e irresponsável', afirmou nesta terça-feira (30/4) o presidente da Bund, Olaf Bandt.

A ONG ambiental está apelando ao governo alemão para que crie uma lei de proteção ao solo, águas, florestas e madeira.

Mais consumo = mais bem-estar?

Outro estudo divulgado nesta quinta-feira por um think tank berlinense mostra que todo esse consumo excessivo não necessariamente está melhorando as vidas das pessoas.

Compilado pelo Hot or Cool Institute, o "Índice de Felicidade Planetária"combina dados sobre bem-estar, expectativa de vida e pegada de carbono para avaliar quão bem os países estão cuidando de seus cidadãos sem sobrecarregar o planeta.

Suécia e Alemanha, por exemplo, têm níveis muito parecidos de bem-estar geral e expectativa de vida, mas a Suécia conseguiu atingir esse patamar com 16% menos emissões per capita do que a Alemanha e menos da metade da pegada de carbono per capita dos Estados Unidos. Já a Costa Rica tem qualidade de vida semelhante à alemã, mas menos da metade de seu impacto ambiental.

Ainda assim, pelos cálculos da Global Footprint Network, a Suécia estourou sua cota de consumo anual em 21 de abril – antes mesmo da Alemanha –, enquanto a Costa Rica chegará neste patamar em 31 de julho.

Os países mais equilibrados

Além de Suécia e Costa Rica, El Salvador, Nicaragua e Vanuatu, país insular na Oceania, lideram o ranking por exibirem bons índices de qualidade de vida e baixo impacto ambiental.

O índice, que também considera a renda, revela que 10% dos países mais ricos são responsáveis por quase a metade de todas as emissões, mas quase não tiveram ganhos em termos de bem-estar e saúde se comparados a países com níveis baixos de emissão de carbono.

Um bom exemplo disso são as viagens aéreas. Pessoas que voam com frequência emitem muito mais carbono, mas não apresentam ganhos significativos em termos de bem-estar quando comparados aos que voam menos.

Nos Estados Unidos, um estudo de 2020 mostrou que lares mais ricos consomem 25% mais energia que famílias de baixa renda, sendo que ambos tinham níveis iguais de satisfação com a vida.

Diretora administrativa do Hot or Cool Institute, Lewis Akenji urge países a repensar suas prioridades: "Precisamos focar no consumo desperdiçador e na desigualdade, que estão piorando a crise planetária."

 

O que falta para o Brasil ter uma agenda verde efetiva

Às vésperas de receber outra grande conferência climática – a COP30, em Belém, no Pará, em 2025 –, o Brasil se vê às voltas com uma crítica comum da rede de entidades, movimentos e ONGS que participam do debate climático: o fato do país ainda não ter sua própria agenda verde.

Especialistas ouvidos pela DW nas últimas semanas apontam que a inexistência de um documento com metas tem prejudicado as ações da política ambiental brasileira. Para eles, uma agenda poderia ajudar a resolver o problema mais significativo do país nesse campo: a falta de instrumentos que materializem metas climáticas nacionais, como a de reduzir em 43% as emissões nacionais de gases poluentes até 2030, por exemplo.

Esse foi o compromisso que o Brasil assumiu no Acordo de Paris, em 2015, durante a COP21, na capital francesa. É, desde estão, a maior Contribuição Nacional Determinada (Nationally Determined Contribution, ou NDC, na sigla em língua inglesa), como foram chamadas as metas de cada signatário após a reunião, do país.

Mais do que uma "caixa de ferramentas”, os especialistas também acreditam que uma agenda verde funcionaria apontando prioridades e objetivos mensuráveis até um prazo pré-determinado. Sem ela, então é como se o Brasil ainda não soubesse nem para onde ir nem como chegar lá.

"Temos até muitos planos setoriais, muitas ideias, propostas, mas não há nada que explique como e quando vamos efetivá-las”, lamenta a engenheira Cristiane Cortez, que leciona na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo.

"O que temos atualmente são só promessas soltas, sem nenhuma explicação de como faremos elas se materializarem. Nada além de números", corrobora o secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), Márcio Astrini.

Para o jornalista Cláudio Ângelo, também do OC, a formulação de uma agenda brasileira para o clima também deveria responder questões que hoje seguem em branco: desde mapeamentos territoriais sobre impactos em grandes áreas verdes, como a Amazônia, até onde encontrar fontes de investimentos internos e externos.

Autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Cia das Letras, 2016), Ângelo condiciona a inexistência do documento – um big deal, como ele chama – à falta de consensos políticos nos recentes governos.

"Nenhum deles pensou a proteção ao clima como uma oportunidade econômica. Ao contrário, ela foi vista sempre como um entrave ao desenvolvimento”, diz. "Mesmo dentro do atual governo [do presidente Lula, iniciado em 2023], esse assunto não é unanimidade”, completa.

No mundo, os dois modelos mais acabados desse documento, chamado entre especialistas de "agenda de implementação”, são os da França e da Alemanha.

O primeiro funciona como um compêndio de metas a serem cumpridas até 2030, e que atravessa objetivos gerais até setoriais, como descarbonizar totalmente o setor industrial francês. Já a agenda alemã, a Klimaschutzplan, tem 2050 como horizonte final, mas com algumas metas estipuladas já para 2030 – como reduzir em 55% suas emissões de gases-estufa. Para cada um deles foram criadas comissões específicas cuja missão é justamente elaborar planos de ação.

Plano de Haddad

É quase um consenso que o mais próximo que existe de uma agenda brasileira hoje é o Plano de Transformação Ecológica, apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na COP28, em Dubai, nos Emirados Árabes, há alguns meses. O texto é estruturado em seis eixos de ação – como transição energética e desenvolvimento tecnológico, por exemplo – e assume que dependerá de cerca de US$ 160 bilhões (R$ 823 bilhões) por ano em investimentos para se materializar.

Se as avaliações sobre esse plano têm sido mais positivas, ele ainda é cercado de pessimismos sobre sua viabilidade. "Não adianta ter um projeto incrível se as coisas não caminharem”, diz Ângelo. "As intenções são muito boas, mas se ele vai se realizar mesmo depende de consensos dentro do governo”.

Para Márcio Astrini, o ponto alto é a entrada do Ministério da Fazenda no debate – algo que não havia acontecido até agora. "Faltam detalhes importantes, como a distribuição dos investimentos [entre entes privados e o Estado], por exemplo, mas ter trazido a economia para o assunto foi fundamental".

Belém, no Pará
Belém, no Pará, vai sediar a COP 30 em 2025null Marcelo Lelis/Agência Pará

"Sem contar que existe ali toda uma estrutura para descarbonizar a economia até 2050, além de pensar uma nova forma de tributação. Acho que ele [Fernando Haddad] está fazendo isso passo a passo”, observa Alexandre Prado, líder de Mudanças Climáticas da World Wide Fund for Nature (WWF) no Brasil.

Para além do Plano de Transformação Ecológica, outras ações encabeçadas pelo governo também tem sido elogiadas, como a renovação do Plano ABC, voltado para a diminuição de emissões da agropecuária, por exemplo. "Há um forte componente de descarbonização do setor que é muito interessante”, analisa Prado.

Desmatamento como foco

Outro consenso entre os especialistas ouvidos pela reportagem da DW é sobre a operacionalidade de uma agenda verde brasileira. Uma de suas funções centrais, segundo eles, seria direcionar mais recursos, políticas e esforços para o maior fator de emissão de gases do Brasil hoje: o desmatamento.

Em 2022, último ano com dados consolidados pelo Observatório do Clima, o país emitiu 2,3 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa, sendo que 1,12 bilhão delas vieram somente do gás carbônico resultante das áreas desmatadas ao longo do ano. Ou seja, quase metade (48%) das emissões do país saíram apenas desse tipo de ação.

"Essa é uma urgência”, sentencia Cortez, que também assessora o Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP, em São Paulo. "Essa agenda poderia, inclusive, ter mecanismos para evitar novos desmatamentos, além de ir atrás de investimentos focados nas áreas que precisam manter suas florestas”, completa.

Desmatamento no Amazonas
Especialistas apontam que agenda verde poderia direcionar mais recursos, políticas e esforços para o maior fator de emissão de gases do Brasil hoje: o desmatamento.null Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance

Desde o ano passado, a ministra de Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, tem sido perguntada constantemente sobre a manutenção da meta brasileira em zerar totalmente o desmatamento até 2030, e sempre que pode ela a reforça. "É nosso compromisso”, respondeu em fevereiro desse ano, durante um encontro com a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, em Brasília.

Para Márcio Astrini, no entanto, a principal política existente hoje para dar conta dessa demanda é ineficiente: o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criado em 2004 no primeiro governo Lula e que, abandonado no período Bolsonaro, foi retomado no ano passado.

Segundo ele, embora seja uma medida louvável, ela não estipula um fim para o desmatamento na Amazônia, epicentro do problema, mas apenas meios de reduzi-lo. Além disso, é demasiado restrito ao combate às ações criminosas, que hoje correspondem a 95% da derrubada da floresta, segundo pesquisas.

"Isso significa que o Brasil não tem plano algum para simplesmente metade do seu território”, vocifera ele. "O PPCDAm não diz nada sobre a divisão da terra na Amazônia, por exemplo, ou sobre limites de expansão da agropecuária, áreas que serão distribuídas em uma reforma agrária, investimentos em tecnologia. Nós não sabemos nem onde pode passar uma estrada na floresta”.

Outra necessidade apontada é a regulação do mercado brasileiro de carbono – que integra boa parte das agendas globais. Há, atualmente, um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que estabelece parâmetros para compra e venda de títulos verdes, que têm sido feitas em mercado aberto. Nesse caso, as perspectivas são melhores. "O governo estudou bastante antes de fazer a proposta – e a relatoria do projeto no parlamento atendeu a ela”, afirma Cristiane Cortez.

Alexandre Prado, da WWF-Brasil, corrobora. "Eu tenho participado de alguns fóruns em que isso tem sido discutido. As coisas estão andando bem”, revela.

Esforços

Várias fontes ouvidas pela DW nas últimas semanas revelaram que, no trabalho de atualizar as NDCs brasileiras e apresentá-las até setembro deste ano, prazo estabelecido na COP21, em Paris, o Ministério do Meio Ambiente tem trabalhado também em um esboço de agenda dentro do Plano Clima, integrando planos e programas lançados nos últimos anos, como o de Haddad, que não fala sobre desmatamento em nenhum eixo.

As novas metas do país dentro do Acordo de Paris terão o ano de 2035  como horizonte.

Em março, na última reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), representantes da pasta chegaram a dizer que duas dezenas de planos setoriais estão sendo confeccionados. "Pelo que eu sei, eles querem apresentar algo já na COP29”, revela Cristiane Cortez, da FecomercioSP, se referindo à conferência do clima deste ano, que será em Baku, no Azerbaijão.

"Se esses planos tiverem metas e indicadores para avaliar como nós estamos, seria positivo. Hoje, não dá para saber nada sobre eles”, finaliza. "O problema é sempre saber como chegar lá, mas nós sabemos que algo tem sido feito”, corrobora Prado, da WWF-Brasil.

Procurado pela DW, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu às solicitações de respostas até o fechamento da reportagem.

 

Como lidar com o problema dos cachorros de rua

A população canina mundial ultrapassa os 700 milhões, sendo que 75% deles estão nas ruas, ou seja, escapam à supervisão humana, segundo a Organização Mundial de Saúde Animal. Entre os principais problemas relacionados ao abandono desses animais nas ruas estão a reprodução descontrolada, o ataque às pessoas e à fauna nativa e a transmissão de doenças. Quase 99% dos casos de raiva em humanos são transmitidos por mordidas de cães, e os cachorros de rua contribuem para esse quadro.

Como evitar que seu animal de estimação se torne uma praga? Todas as análises apontam para a responsabilidade humana: prestar os cuidados necessários ao bem-estar do animal para que ele não ande sem supervisão humana na rua ou em áreas silvestres. Mas não há consenso sobre o que fazer com os cães de rua já existentes, incluindo aqueles que se tornaram selvagens e agora vivem na natureza.

Este é um problema generalizado na América Latina, com o México assumindo uma posição de destaque. Segundo a Associação de Médicos Veterinários Especializados em Pequenas Espécies do país, 70% dos 28 milhões de cães existentes vivem nas ruas. 

No Peru, o Ministério da Saúde estima que seis milhões de cães estejam nesta situação e, no Chile, um estudo da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Católica indica que 3,4 milhões não têm um tutor conhecido.

Eles sobrevivem em condições precárias, sem vacinas ou cuidados, e protagonizam regularmente casos de ataques a pessoas e a outros animais. Em outubro passado, um guia turístico do norte do Chile morreu após ser atacado por uma matilha.

Ameaça à fauna local

"Esses animais precisam de recursos para viver. Por isso ocupam espaços, mudam seus comportamentos, tornam-se mais agressivos e formam sociedades com animais dominantes, semelhantes aos lobos. Eles comem a fauna nativa e, se não conseguem encontrá-la, entram em conflito com outros animais", diz Jaime Jiménez, pesquisador de vida selvagem da Universidade do Norte do Texas.

O impacto não tem a ver apenas com dieta e ataques. A bióloga alemã Elke Schüttler explica que "pela sua simples presença, esses cachorros podem afugentar espécies de aves. Assim, a simples presença deles desloca a fauna daquele local, que também acaba entrando em competição por alimento em outro lugar". 

Um filhote selvagem na ilha de Navarino, no sul do Chile.
Além de ser cruel com os próprios cães, a presença de cachorros nas ruas também ameaça a fauna localnull Elke Schüttler

Schüttler, que é pesquisadora da Universidade de Magallanes e do Centro Internacional do Cabo Hornos (CHIC), lidera um projeto na Ilha Navarino, no Chile, que busca entender como eles se movem e como é a troca genética entre os cachorros de rua e os animais selvagens.

"Há impactos indiretos como doenças e transmissão de parasitas, além de questões comportamentais de dominância", acrescenta Jiménez.

A polêmica caça aos cachorros

No Chile, a Câmara dos Deputados acaba de rejeitar um projeto de lei que declararia os cães selvagens, isto é, todos aqueles que nascem ou vivem sem supervisão humana, como uma espécie exótica invasora, o que abriria as portas para a sua caça e extermínio. Esta medida, que tem sido utilizada em países como a Austrália, levanta polêmicas.

"Os cães também são animais que sofrem e sentem como nós e como espécies nativas, por isso não é ético tentar acabar com a vida de alguns para salvar outros", argumenta José Binfa Álvarez, chefe de advocacia da Fundação para Animais (APLA), Chile.

Para Jiménez, esse é um assunto complexo, que envolve muitas frentes: "Os defensores dos animais e veterinários estão preocupados com o bem-estar do animal, enquanto os ecologistas estão preocupados com o bem-estar das populações e dos ecossistemas, e quais são as consequências macro do problema. É um tema difícil, até porque matar cães mexe com a ideia de matar animais de estimação."

Pesquisadora mexicana em ciências animais, Eliza Ruiz Izaguirre afirma que, com base em estudos científicos, não é eficaz caçar cães. "Primeiro porque a maioria tem um vínculo com as pessoas, mesmo que pareçam selvagens de longe. Segundo, e mais importante: porque ao deixar um nicho ecológico vazio, ele será rapidamente preenchido por outros cães. Assim, a causa do problema não é atacada."

Mais pesquisa e responsabilidade

Para Binfa, é prioritário aplicar de maneira eficaz a lei e promover medidas como "a educação para a guarda responsável, o controle reprodutivo, o registro dos animais e, sem dúvida, a fiscalização."

"Reconhecemos que os ataques de cães são um problema, mas quando isso está associado a cães que circulam livremente, cujos tutores não exercem a propriedade responsável ou os abandonaram diretamente, devemos atacar a causa, ou seja, a irresponsabilidade humana", acrescenta o representante da APLA.

"Não existe uma medida única eficaz, mas em cada local devem ser tomadas várias medidas que sejam aceitas e apoiadas pela comunidade local. Controlar a população canina com a sua ajuda também pode ser eficiente", afirma Izaguirre. A pesquisadora estuda cães de aldeia na costa mexicana. Lá, para proteger os ninhos de tartarugas, ela recomenda fornecer aos cães alimentos suficientes, ricos em gordura e proteína, e prendê-los de noite, quando eles costumam sair para procurar ovos.

Cachorros de rua comendo
Para os especialistas, mais do que culpar os animais pelos problemas que trazem, é importante responsabilizar os humanos que os colocam nessa situação.null Vahid Salemi/AP/picture alliance

Izaguirre participa há muito tempo do Projeto Mazunte, uma colaboração entre veterinários, estudantes e voluntários dos Estados Unidos, que viajam para comunidades rurais na costa mexicana do Pacífico para realizar esterilizações. A iniciativa já conseguiu controlar as matilhas que antes dominavam as praias e comiam ovos e filhotes de tartarugas marinhas, e hoje há um aumento no número de desovas.

Continuar investigando o tema é fundamental para ter diagnósticos de acordo com realidades específicas e tomar medidas baseadas em evidências. Jiménez recomenda a criação de grupos de trabalho com todos os setores – cientistas, técnicos, ambientalistas, ativistas dos direitos dos animais, agricultores, pecuaristas, comunidades e organizações públicas – para estabelecer programas de investigação e controle. E para isso, o Estado deveria destinar mais recursos.

Educação e conscientização desde a infância, campanhas que aproximam o tema da comunidade, leis mais restritivas, multas mais altas e programas de esterilização em massa, como na Holanda, são ações que contribuem para evitar a presença de cães abadonados nas ruas. 

De cachorro de rua a influencer 

Que embalagem é mais verde: plástico ou papel?

Fazer compras no supermercado envolve uma série de decisões, não só em termos de produtos, mas também de embalagem. Frutas e legumes aparentemente idênticos podem estar acondicionados em papelão ou plástico. É comum se pensar que o papel é melhor para o meio ambiente – mas há motivos para duvidar dessa percepção.

Num estudo de 2023, Tatiana Sokolova, professora associada da Escola de Economia e Gerenciamento Tilburg, na Holanda, confirmou que os consumidores veem embalagens de papel como "algo fundamentalmente bom": "E é absolutamente verdade que papel é mais fácil de reciclar do que plástico. Mas isso não significa que não implique nenhum custo ambiental."

Reciclagem química: uma solução para o lixo plástico?

O setor de polpa de celulose e papel foi responsável por quase 2% das emissões globais de gases causadores do efeito estufa em 2022, de acordo com a Agência Internacional de Energia (AIE), e essa percentagem deverá continuar subindo até 2030. E isso, sem considerar os efeitos do desmatamento.

E não se trata só da produção: Sokolova lembra que embalagens de papel em geral pesam mais do que plástico, portanto os caminhões emitem mais gases-estufa para transportar os artigos até as lojas. E dá mais um exemplo: "Em média, a gente pensa que os copos de papel são bem inofensivos para o meio ambiente. Mas, claro, para conter líquido, em especial líquido quente, eles têm que ser plastificados. Então são bem difíceis de reciclar."

Maior parte do plástico não é reciclada

A produção de matéria plástica a partir de combustíveis fósseis, como o petróleo bruto, gera cerca de 3,5% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2) e outros gases danosos ao clima. E das mais de 400 milhões de toneladas métricas produzidas a cada ano, menos de 10% são recicladas.

Em muitos casos, o lixo plástico da Europa e dos Estados Unidos é transportado por navio para países do Sul Global como Sri Lanka, Malásia ou Indonésia. E mesmo que existam instalações para reciclar papel e plástico, o processo não é assim tão fácil.

"O papelão tende a ser mais reciclável simplesmente porque há instalações para isso em mais locais", comenta Llorenç Milà i Canals, diretor da Iniciativa Ciclo Vital do Programa Ambiental das Nações Unidas. "Enquanto para muitos tipos de plástico – não é um material único – temos muitos polímeros diferentes, e muitos deles não são reciclados em quase lugar nenhum."

Polipropileno, poliestireno, polietileno: estas e outras variedades de plástico são materiais diversos, do ponto de vista químico, e têm seus próprios processos de reciclagem, explica Bethanie Carney Almroth, professora de ecotoxicologia e ciências ambientais na Universidade de Gotemburgo, na Suécia.

O bioplástico é sempre sustentável?

Um dos métodos mais comuns envolve enxaguar o plástico, fragmentá-lo em pequenos flocos e derretê-lo e fabricar novas pastilhas (pellets) para uso na indústria. "Mas o que a gente tem são esses materiais vindos de várias fontes": analisando plástico reciclado do Sul Global, Carney Almroth e seus colegas encontraram não só uma miscelânea de substâncias químicas de diferentes plásticos, mas também outros contaminantes, potencialmente perigosos.

"Coisas como pesticidas, produtos farmacêuticos e aditivos alimentares não são substâncias que deveriam estar no plástico, e definitivamente não deveriam ser empregados em materiais para embalagem de alimentos", enfatiza.

Lixo de plástico e papel
Indonésia: grande parte do lixo europeu e americano vai parar no Sul Globalnull Yuyun Ismawati/2024

Há alternativas ambientalmente corretas?

Papel pode ser fabricado a partir de árvores cultivadas com responsabilidade, colhidas em florestas geridas e replantadas de modo a beneficiar o meio ambiente. Ou ser produzido inteiramente a partir de material reciclado, em vez de virgem.

Contudo, nem papel nem matéria plástica podem ser reciclados indefinidamente, e às vezes o produto resultante é de qualidade muito inferior ao original, maculado por impurezas como tintas ou contaminantes químicos. Plásticos de milho, açúcar ou resíduos de madeira são também alternativas atraentes, por terem uma pegada carbônica menor. Mas apresentam igualmente problemas.

"A indústria do bioplástico gostaria que ele fosse visto como a alternativa verde, a solução para a poluição plástica", observa Carney Almroth. "Mas o problema que é às vezes ignorado ou minimizado é que também esses plásticos contêm produtos químicos."

Substâncias potencialmente tóxicas são adicionadas durante o processo de produção, para estabilizar o plástico ou conferir-lhe determinadas características. Outras podem aparecer como contaminantes ou se formar durante o processamento industrial.

"Não sabemos o que elas são, porque há bem poucos requisitos de transparência e documentação", e o mesmo pode ser dito das embalagens de plástico, ressalta a ecotoxicóloga. Há ainda outros defeitos, frequentemente ofuscados pelo brilho do que os críticos denominam greenwashing (lavagem verde). Entre eles, a extração das matérias primas, desflorestação, uso da terra e segurança alimentar, pois as safras destinadas aos bioplásticos ocupam terra que poderia estar sendo usada para cultivar alimentos.

Da reciclagem à reutilização

Com tantos fatores a considerar, não é fácil afirmar definitivamente quem é melhor do ponto de vista ambiental, se papel ou plástico. Porém esse dilema simplesmente mascara a questão supraordenada: uma cultura do descarte fora de controle.

"Por serem tão baratos, os plásticos são usados em muitos produtos descartáveis, eles não são projetados para serem reutilizados", lembra Sokolova.

Em vez de se preocupar com a escolha de um material ou outro, os especialistas sugerem que seria melhor adotar embalagens reutilizáveis, como garrafas de vidro, ou, idealmente, apenas usar menos de tudo.

"Sempre haverá um jogo de vantagens e desvantagens", diz Milà i Canals, seja nas emissões de gases-estufa, biodiversidade, poluição por microplástico, consumo de água ou incontáveis outros fatores.

"A escolha realmente importante é se distanciar dos produtos descartáveis e adotar os reusáveis. Ou não usar nenhum produto, onde for possível." Isso inclui evitar os vegetais excessivamente embalados do supermercado, cita o colaborador da ONU: "As frutas já vêm super bem empacotadas pela natureza."

Em Berlim, Marina Silva cobra: "Hora é de viabilizar recursos para o clima"

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, disse nesta sexta-feira (26/04) que o momento não é de focar nas discussões sobre decisões a serem tomadas para conter o aquecimento global, mas de cobrar o que já foi conversado e financiar a transição energética.

"A partir de agora, é implementar o que foi acordado. É viabilizar os recursos, os meios de implementação", afirmou durante entrevista coletiva na embaixada do Brasil em Berlim. A ministra esteve na capital alemã para participar do Diálogo de Petersberg sobre Clima, encontro realizado desde 2010 no intervalo entre as conferências do clima das Nações Unidas.

Um dos papéis do Brasil na COP29, que acontece em novembro no Azerbaijão, será o de ir atrás da meta de financiamento dos países desenvolvidos. Os maiores emissores de gases do efeito estufa, e que detêm mais recursos financeiros e técnicos, deverão ajudar no fim do uso de combustíveis fósseis e na mitigação dos efeitos do aquecimento global em países em desenvolvimento, o que a ministra chama de "transição justa".

Um dos entraves nas negociações é a falta de consenso sobre o quanto da meta estabelecida em 2015, de um aporte anual de 100 bilhões de dólares, já foi cumprida. A ministra informou que em junho a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) deverá divulgar um balanço dos pagamentos feitos pelos países desenvolvidos para conter a emergência climática.

Segundo Silva, esse valor está longe de ser o suficiente para resolver a crise climática, mas pode servir como uma especie de "catalizador" para mobilizar todos os recursos necessários, tanto públicos como privados, que "são da ordem de trilhões". "Essa é a grande equação que teremos que resolver a partir da COP29." 

A promessa de disponibilizar 100 bilhões de dólares anuais havia sido feita originalmente na COP15, em 2009. Ela foi reforçada cinco anos depois pelo Acordo de Paris. Originalmente, o objetivo era que, entre 2020 a 2025, as nações mais ricas do planeta financiassem 100 bilhões de dólares anuais para que países em desenvolvimento enfrentassem e se preparassem para as mudanças climáticas. No entanto, o dinheiro ainda não chegou.

Novos aportes no Fundo Amazônia

O Fundo Amazônia, criado em 2008 para captar doações para investimentos em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento no Brasil, deve chegar a até R$ 7 bilhões neste ano, afirmou Silva.

O fundo esteve paralisado durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, e agora passa por uma retomada. Além de Noruega e Alemanha, os dois maiores financiadores, há entrada prevista de recursos do Reino Unido, Japão, Dinamarca e Suíça.

Segundo a ministra, os esforços para redução do desmatamento no Brasil – que no ano passado caiu 50% na Amazônia, mas subiu 43% no Cerrado – foram majoritariamente financiados pelo próprio governo. "Os recursos que recebemos de fora não é para que façamos a redução, é uma espécie de bônus pela redução alcançada."

COP30 no Brasil

Na COP28, nos Emirados Árabes, chegou-se a um consenso de eliminar de forma progressiva os combustíveis fósseis da matriz energética e de triplicar a capacidade de energia renovável até 2030, para evitar o aquecimento global a níveis superiores a 1,5 °C. As chamadas NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), compromissos internos de cada país, devem incluir todos os setores da economia.

A COP29, deste ano, tem foco nas finanças. "Que saiamos do Azerbaijão com uma ideia robusta de implementação, de resultado, e dos meios para isso. O Brasil quer apresentar NDCs à altura do desafio que estamos atravessando com a mudança do clima", afirmou.

A COP30 acontecerá em Belém do Pará, em 2025. Questionada sobre a incoerência de o Brasil sediar o evento e apontar para uma transição energética que elimina os combustíveis fósseis ao mesmo tempo em que o governo traça planos para ampliar a produção de petróleo, Marina Silva disse que os investimentos em energia sustentável estão aumentando, como eólica, solar, biomassa e hidrogênio verde.

Ela citou o acordo feito entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua contraparte colombiana, Gustavo Petro, em visita recente à Colômbia, em que tanto a Petrobras como a petroleira colombiana se comprometeram em fazer um grande investimento em energia renovável, em biodiesel e em hidrogênio verde.

"Veja que já é um caminho de fazer com que, progressivamente, as empresas que exploram petróleo não sejam apenas empresas de explorar petróleo, mas que se tornem gradativamente empresas de energia."

Taxação de super-ricos

Um dos temas que permeou as conversas da ministra durante o evento preparatório em Berlim foi a criação de uma tributação global a super-ricos, que serviria para financiar medidas contra a pobreza e as consequências da crise climática.

A proposta, apresentada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante encontros do G20, foi bem recebida pela ministra alemã do Desenvolvimento, a social-democrata Svenja Schulze, que disse, durante o evento do qual Marina Silva participou, haver "riqueza e dinheiro suficientes no mundo" para tal medida. Já o ministro das Finanças, o liberal Christian Lindner, rejeitou a proposta.

"Usamos a natureza durante séculos para transformá-la em dinheiro. Agora estamos fazendo o caminho de volta, usando dinheiro para ver se a gente recupera ou preserva a natureza", defendeu Silva.

Questionada sobre o avanço da extrema direita na Europa, que nega a crise climática, Marina Silva disse que é um fenômeno que pode comprometer "os avanços sobre o clima, sobre direitos humanos, proteção da biodiversidade, combate ao racismo, combate a formas de preconceito contra as mulheres e a população LGBTQIA+, no mundo inteiro".

"O mundo não tem como manter o mesmo padrão de produção e de consumo do século 20. Agora temos que buscar um novo ciclo de prosperidade. E o bom é que é possível ter um novo ciclo a partir de uma nova forma de usar os recursos naturais. O grande desafio da humanidade é combater a desigualdade e fazer tudo isso protegendo as bases naturais do nosso desenvolvimento."

 

Como a poeira do deserto do Saara chega até a Europa

A poeira do deserto do Saara viajou milhares de quilômetros até chegar a Atenas, na Grécia, na semana passada. O fenômeno natural fez a Acrópole momentaneamente lembrar o planeta Marte, em razão da tonalidade vermelha-alaranjada.

As tempestades que transportam a poeira até as capitais europeias são bastante comuns e acontecem há anos. Elas ocorrem quando ventos em maior altitude atravessam o deserto do Saara durante o tempo seco.

A areia do deserto, que se estende por uma ampla região no norte da África, é formada por diversas partículas diferentes, explica à DW o especialista em poeira e areia do Barcelona Supercomputing Center, Carlos Perez Garcia-Pando.

Algumas partículas são maiores e mais pesadas, sendo estas as primeiras a serem pegas pelos altos ventos, embora não sejam as que acabam atravessando o Mar Mediterrâneo rumo à Europa. Ao contrário: quando essas partículas maiores inevitavelmente caem ao chão, seu impacto quebra outros tufos de areia, que então se dispersa em partículas ultrafinas – são elas que viajam longas distâncias.

Para que as tempestades de areia possam ocorrer, as condições meteorológicas precisam estar secas. Do contrário, essas partículas voltam a formar tufos e se tornam muito pesadas para serem transportadas por distâncias mais longas. As tempestades tendem a se formar em locais onde há pouca vegetação, que poderia interagir com o vento e desacelerá-las.

Como a poeira chega à Europa

Tempestades de areia ocorrem com regularidade no Saara, mas para conseguirem se deslocar por milhares de quilômetros ao norte, elas precisam interagir com um sistema meteorológico que deve fornecer os ventos fortes necessários para cobrir longas distâncias.

Na maioria dos casos, são os sistemas meteorológicos de baixa pressão que transportam a poeira do Saara através do Mediterrâneo até a Europa. Garcia-Pando explica que esse sistemas são energéticos, com fortes ventos em sentido anti-horário. Os sistemas de alta pressão também podem gerar esses eventos, embora a probabilidade seja menor.

Casal observa do alto de um morro a cidade de Atenas em cor vermelha-alaranjada
Assim ficou a vista sobre Atenas no final de abril, com a chegada de partículas ultrafinas vindas do deserto do Saara null ANGELOS TZORTZINIS/AFP/Getty Images

As partículas de poeira que chegam até a Europa conseguem permanecer tanto tempo no ar porque são muito menores do que os grãos de areia. "O que chega até a Europa é uma tempestade de poeira, e não de areia", atesta Stuart Evans, especialista em poeira da Universidade de Buffalo em Nova York.

Poeira nem sempre é problemática

Segundo Garcia-Pando, a análise dessas tempestades de areia não deve gerar temores. Ao contrário, trata-se de compreender o fenômeno e o que ele representa para a sociedade e o clima.

A poeira, argumenta ele, nem sempre é ruim: serve, por exemplo, como uma espécie de nutriente para florestas e oceanos, alimentando-os com ferro e fósforo.

"Isso [tempestades de areia] vem acontecendo repetidamente através da história; a poeira é quase tão antiga quanto a Terra", afirma. "Não é nada de novo."

O que é novo, segundo o pesquisador, é a quantidade de poeira na Terra, que vem aumentando desde os tempos pré-industriais. Isso se deve, em grande parte, ao cultivo humano da terra, mas também às mudanças climáticas.

Para explicar como isso acontece, imagine um tufo de sujeira encrostada. Se pisarmos nessa sujeira, ou um carro passar por cima, inúmeras partículas se romperão, e "todas essas partículas são mais facilmente afetadas pelo vento".

Em relação às mudanças climáticas, o especialista cita como exemplo as fontes de água que secam durante as estiagens. Quando um lago está seco, diz o pesquisador, "os sedimentos que permanecem no lago são muito, muito erosivos e podem ser muito facilmente lançados à atmosfera".

Proteja-se das tempestades de poeira

Mas, a essa altura, os cientistas ainda não estão certos se as mudanças climáticas deverão gerar mais ou menos ventos na Terra, de maneira que é difícil prever o futuro das tempestades de areia ou poeira.

"Essa é uma das incertezas fundamentais que temos ao projetarmos o futuro, compreender como os ventos deverão evoluir em diferentes situações. Não apenas o vento comum, mas também os extremos", diz Garcia-Pando.

O especialista afirma que quem se vir em meio a uma tempestade de poeira na Europa deve seguir as mesmas recomendações de quando a qualidade do ar estiver particularmente ruim: utilizar máscaras e evitar atividades esportivas ao ar livre.

Isso vale ainda mais para pessoas com problemas respiratórios, já que a poeira causa danos à respiração. 

Europa esquenta mais rápido que o mundo – e recordes alarmam

Os efeitos das mudanças do clima global ficam cada vez mais óbvios, e a Europa não é exceção. Isso comprovam os dados compilados no relatório mais recente do Copernicus Climate Change Service (C3S) e da Organização Mundial de Meteorologia (WMO): foram registrados os três anos mais quentes no continente desde 2020, assim como os dez mais quentes desde 2007.

Ao lado de 2020, 2023 foi o ano europeu mais quente, cerca de 1ºC acima do período de referência, 1991 a 2020. Ao todo, tratou-se de um ano complexo e diversificado, resume o diretor do Copernicus, Carlo Buontempo: "Em 2023, houve na Europa os maiores incêndios florestais já registrados, foi um dos anos mais úmidos, com fortes ondas de calor marinhas e inundações devastadoras em larga escala."

Ao todo, as chuvas na Europa estiveram cerca de 7% acima do usual, e um terço dos rios apresentou cheias, em parte severas. Cerca de 1,6 milhão de cidadãos foram afetados por enchentes, pelo menos 40 morreram, segundo estimativas provisórias do Banco de Dados Internacional para Catástrofes (EM-DAT). As tempestades fizeram 63 vítimas, incêndios florestais, outras 44. Os eventos meteorológicos e climáticos na Europa provocaram, ao todo, danos de 13,4 bilhões de euros, mais de 80% devido a inundações.

"A crise do clima é o maior desafio da nossa geração. Os custos das medidas climáticas podem parecer altos, mas os da inação são muito maiores", adverte Celeste Saulo, secretária-geral da WMO.

Enchente na região Karavelovo, na Bulgária
Enchente na região Karavelovo, na Bulgárianull Impact Press Group/NurPhoto/IMAGO

Saúde em perigo, seca e incêndios

Os cientistas alertam, ainda, para um aumento do impacto dos eventos extremos sobre a saúde humana. O número dos mortos devido ao calor cresceu cerca de 30% nos últimos 20 anos. O ano 2023 na Europa também bateu o recorde de dias com calor extremo – o qual a ciência define como uma sensação térmica acima de 46ºC, quando torna-se indispensável tomar medidas para evitar consequências como a insolação.

Europa vive crise antes impensável: falta de água

No auge da onda em julho, 41% do sul europeu esteve exposto a calor forte, muito forte ou extremo, com muitos casos de estresse térmico. O termo descreve os efeitos sobre o corpo humano das temperaturas altas, combinadas com fatores como umidade, velocidade do vento, radiação solar e térmica.

Estresse térmico prolongado pode agravar doenças já existentes, além de elevar a probabilidade de exaustão e insolação, sobretudo em crianças pequenas, idosos e portadores de moléstias preexistentes. Ainda assim, tanto os pertencentes aos grupos de risco quanto parte dos serviços de saúde costumam subestimar os perigos do calor crescente, apontam o C3S e a WMO em seu relatório.

As temperaturas de 2023 afetaram, ainda, todas as geleiras europeias, que perderam muito gelo, nos Alpes até mesmo em dimensão fora do comum – também pelo fato de, no inverno, a precipitação de neve também ter sido excepcionalmente baixa. Nos últimos dois anos, as geleiras alpinas reduziram seu volume em 10%, indica o serviço Copernicus.

Esse fato evidencia as conexões entre calor, neve e seca: devido à camada de neve insuficiente, o nível do rio Po, nos Alpes italianos, permaneceu abaixo da média, e essa água fez falta ao norte da Itália, já afligido pela seca.

Calor e seca também alimentam os incêndios florestais, que em 2023 ocorreram em toda a Europa, consumindo uma área equivalente a Londres, Paris e Berlim juntas. O maior incêndio já registrado na União Europeia foi na Grécia, destruindo uma superfície comparável ao dobro da metrópole Atenas.

Incêndio florestal na Grécia, 2023
Maior incêndio florestal já registrado na União Europeia foi na Grécia, em 2023null Achilleas Chiras/AP/picture alliance

Por que tanto calor na Europa?

A Europa é o continente que se aquece com maior velocidade, cerca de duas vezes mais rápido do que a média global. A vice-diretora do Copernicus, Samantha Burgess, atribui a proximidade ao Ártico, cujas temperaturas sobem quatro vezes mais rápido do que no resto do planeta.

Outro fator seria também a melhora da qualidade do ar na Europa. Esta resulta na presença, na atmosfera, de menos partículas que refletem a luz solar e contribuem para o esfriamento, explica Burgess.

Em contrapartida, nunca houve no continente tanta energia de fontes renováveis: em 2023 elas foram responsáveis por 43% da geração de eletricidade – contra 36% ainda no ano anterior. As tempestades do outono e inverno proporcionaram energia eólica acima do usual, e os níveis altos de alguns rios possibilitaram mais energia hidrelétrica.

Apesar de ter sido o segundo ano com mais energia renovável do que de combustíveis fósseis, danosos ao clima, o relatório do C3S-WMO acusa em 2023 uma elevação das emissões de gases do efeito estufa, corresponsáveis pelo aquecimento do planeta.

O diretor Buontempo considera improvável que os efeitos climáticos prejudiciais vão diminuir, pelo menos no curto prazo. Portanto, acrescenta Burgess, já se pode contar com recordes sucessivos, até que as emissões de gases-estufa atinjam o zero líquido e o clima global se estabilize. A vice-diretora do C3S já antecipa novos recordes de temperatura no próximo verão europeu (junho a setembro), em especial pelo fato de o efeito El Niño ter fim em 2024.

O que o Brasil tem a ganhar apostando mais no etanol

A presença do etanol deve aumentar nos carros movidos a combustão no Brasil. A aposta do governo federal é ampliar a participação do combustível renovável em até 30% na mistura da gasolina vendida nos postos. Desde 2015, a proporção máxima é de 27%.

A mudança está prevista na lei batizada como "combustível do futuro" (PL 4516/23), em discussão no Senado depois da aprovação na Câmara dos Deputados em março passado. Antes da mistura chegar aos postos, porém, será preciso comprovar sua viabilidade técnica, diz a lei.

Para especialistas do setor automotivo, o pedido de testes é uma mera formalidade. A alteração na mistura não deve trazer grandes problemas para os brasileiros que abastecem o tanque somente com gasolina.

"Estamos falando de uma tecnologia dominada no país há 60 anos. Efetivamente, o impacto da adição de 3% a mais de etanol nos motores será baixo e o benefício ambiental é grande", avalia Camilo Adas, conselheiro da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil).

Mas a investida na lei que incentiva o etanol, fonte mais limpa, não significa freio no petróleo. O plano da brasileira Petrobras é abrir uma nova frente de exploração do combustível fóssil, maior responsável pelas emissões de gases do efeito estufa que aceleram as mudanças climáticas.

Até 2028, a petroleira pretende perfurar 16 poços na Margem Equatorial, na bacia marítima da Foz do Amazonas. O pedido de licença está em análise pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Além disso, especialistas ouvidos pela DW apontam que mais etanol na mistura não irá impactar, necessariamente, de forma positiva no bolso dos motoristas e que a possível futura necessidade de mais áreas de cana-de-açúcar pode levar a monocultura a regiões sensíveis. 

Reforço à tradição brasileira

O etanol à base de cana-de-açúcar é uma invenção brasileira desenvolvida em meados da década de 1920. Desde 1931, é adicionado à gasolina – naquela época, um decreto obrigou importadores de petróleo a misturar 5% do álcool ao combustível fóssil.

O impulso maior veio na década de 1970, com a crise mundial do petróleo. O Programa Nacional do Álcool (Proacool) estimulou a produção do etanol para diminuir a dependência brasileira das exportações de petróleo. 

"Esse combustível foi e segue sendo importante como estratégia de diversificação das fontes energéticas, para que o país não seja dependente apenas da gasolina. Ele ajuda também a reduzir emissões por ser um biocombustível", afirma Felipe Barcellos, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema).

No Brasil, a estimativa é que 85% dos carros leves em circulação tenham motor flex, adaptados tanto para etanol quanto para gasolina. Por outro lado, cerca de 30% deles são abastecidos exclusivamente com etanol. A distribuição e os preços do biocombustível sofrem grande variação de estado para estado, a depender da proximidade com a região produtora.

Produzido principalmente a partir da biomassa de cana, o etanol pode ser considerado neutro em emissões de dióxido de carbono, explica Barcellos. No seu crescimento, a cana retira da atmosfera CO2, o que funciona como uma "poupança" mais tarde, quando o mesmo gás é liberado na queima do combustível.

"Etanol é uma molécula incrível. Ela é cheia de energia, líquida como o petróleo, mas é sustentável. Se as usinas forem feitas para capturar carbono, isso melhora ainda mais a performance ambiental", avalia Gonçalo Pereira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Etanol x carros elétricos

Mesmo com montadoras pelo mundo afora anunciado metas para extinguir motores a combustão e investir em carros elétricos, o biocombustível brasileiro deve ter vida longa, prevê Camilo Adas, que tem mais de três décadas de experiência no setor automotivo.

"Discussões e publicações recentes mostram que boa parte das montadoras brasileiras vão adotar múltiplas rotas tecnológicas, independentemente do que outros mercados irão definir. Não tem bala de prata", afirma Adas à DW.

Ônibus elétrico com pintura verde trafegando
Parte da frota do transporte público em São Paulo já é composta de ônibus elétricosnull Oslaim Brito/Imago Images

A depender damatriz energética, adiciona o engenheiro, a eletrificação dos carros não é a melhor solução. Ou seja, um país que tem uma frota grande de elétricos nas ruas, mas gera eletricidade em usinas movidas a carvão não abate tanto suas emissões de CO2.

No Brasil, a expectativa é que as montadoras invistam em carros híbridos, que podem ser movidos tanto a combustível quanto a eletricidade. "É preciso olhar qual a eficácia das rotas tecnológicas. Aumentar a mistura do etanol na gasolina é uma melhoria e tem que ser feita sem paixão, mas com conhecimento e análise de tecnologia", analisa Adas.

Baixo efeito nos preços

Para Luís Augusto Barbosa Cortez, engenheiro-agrônomo e autor do livro The Future Role of Biofuels in the New Energy Transition, Lessons and perspectives of biofuels in Brazil, lançado em 2023, o Brasil só tem a ganhar com a investida, mas os preços para o consumidor final não devem mudar muito.

"Ganha a Petrobras, que compra etanol para a mistura e vende a preço de gasolina, que segue a cotação internacional", analisa em entrevista à DW.

Helder Queiroz, professor da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) e coordenador do grupo de Economia e Energia, concorda que a política é uma solução interessante, mas seu efeito no bolso do motorista é limitado.

"Não dá para dizer se o preço para o consumidor vai melhorar ou piorar, isso vai depender da incidência de carga tributária, do preço do frete e do preço da gasolina", detalha Queiroz, lembrando que o valor do etanol vendido na bomba tem a tendência de acompanhar o da gasolina.

Homem corta cana-de-açúcar em plantação
Cana-de-Açúcar: principal matéria-prima do etanol brasileiro. Incentivo aos biocombustíveis pode se refletir diretamente na dinâmica do uso do solonull Alf Ribeiro/IMAGO

Preocupação com monocultura

A lei "combustível do futuro" inclui ainda a elevação dos teores de mistura de biodiesel no diesel para 20% até 2030. Até 2031, a proporção deverá ser de 25%. Ao contrário do etanol, não será preciso comprovar a viabilidade técnica que leve em conta os impactos técnico-mecânicos, econômicos e ambientais da medida.

"O aumento da mistura do biodiesel é fundamental. Mas há bastante coisa a ser testada, principalmente na cadeia de produção. A regulação é boa, o país pode perder uma grande oportunidade se não olhar para frota específica de veículos", comenta Adas, mencionando os caminhões.

Felipe Barcellos, do Iema, ressalta que o incentivo aos biocombustíveis pode se refletir diretamente na dinâmica do uso do solo. As monoculturas para sua produção, seja cana-de-açúcar ou milho, precisam de grandes extensões de terras e geralmente se concentram nas mãos de poucos donos, o que pode gerar conflitos.

"O etanol não necessariamente cria isso hoje. Ele não pode ser plantado na Amazônia, por exemplo. Mas se o plano é aumentar muito essa participação, é necessário olhar para este potencial impacto e fazer um planejamento de área, até quando esta área pode crescer e para onde, para que não se deixe tudo apenas ao sabor do mercado", diz Barcellos.

Como o petróleo se forma?

Como o lixo europeu vai parar ilegalmente no Sudeste da Ásia

Países do Sudeste Asiático como Malásia, Vietnã, Tailândia e Indonésia estão vivenciando um influxo de carregamentos de lixo ilegal de nações industrializadas, sendo uma parcela considerável traficada da União Europeia. Apesar das normas existentes, os traficantes são incentivados pelo policiamento inefetivo e penas brandas, se apanhados, além da tentação de lucros fáceis.

A Comissão Europeia estima que de 15% a 30% dos lotes de resíduos partindo da UE sejam ilegais, gerando anualmente bilhões de euros em faturamento ilícito. "Uma vez que o lixo é descartado indevidamente, ele se torna um problema de todo mundo", observa Masood Karimipour, representante do Sudeste Asiático na Agência das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC). "Não há como exagerar a urgência de confrontar o tráfico de resíduos."

O relatório da ONU calcula que, entre 2017 e 2021, os membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) importaram, ao todo, 100 milhões de toneladas de lixo de metal, papel e plástico, no valor de quase 50 bilhões de dólares.

Atividade criminosa altamente lucrativa

Nos últimos anos, houve uma transformação significativa do comércio global de resíduos, devido a uma série de medidas impostas em 2018 pela China, a fim de sustar o ingresso de lixo indesejado em seu território.

Reciclagem química: uma solução para o lixo plástico?

O efeito cascata dessas restrições provocou um redirecionamento das correntes globais de resíduos, sobretudo em direção ao Sudeste Asiático, que se tornou a destinação primária para carregamentos tanto legais quanto ilícitos. O Departamento de Estatísticas da Indonésia registrou um aumento súbito das importações de resíduos, com papel e plástico principalmente oriundos da Europa Ocidental.

"Na Indonésia não há nenhum ecossistema que promova consumo, produção e reciclagem sustentáveis", observa Yuyun Ismawati, consultor-chefe da ONG ambientalista Nexus3 Foundation. Além disso, é comum o lixo de papel estar contaminado com plástico, o que representa uma séria ameaça ambiental e sanitária para regiões como Java e Sumatra.

As companhias importadoras de papel ou descartam o plástico problemático ou o doam às comunidades locais, que então realizam triagem e incineração ilegal, emitindo níveis alarmantes de dioxinas e substâncias químicas tóxicas, terminando por infiltrar-se nas cadeias alimentares humanas. A fumaça e a comida contaminada provocam moléstias respiratórias e gástricas entre os habitantes das aldeias, ou mesmo câncer.

Colunas de fumaça preta vistas através de gramado
Emanações da incineração de plástico causam doenças respiratórias e até câncernull Yuyun Ismawati/2024

Apesar de suas consequências funestas para a saúde e o meio ambiente, o tráfico de resíduos ainda é considerado uma atividade criminosa altamente lucrativa, que passa por debaixo do radar no Sudeste Asiático.

Serena Favarin, criminologista da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, Itália, relata que os traficantes utilizam métodos sofisticados e cadeias de abastecimento para escapar dos controles, levando o lixo para países onde as normas são menos rigorosas, e os preços para o descarte ilegal, muito mais baixos.

"O crime não é combatido da mesma forma em países diferentes, o que cria um desalinhamento no modo como o lixo é tratado". Em diversas destinações, por exemplo, os regulamentos sobre o tráfico sequer pertencem ao direito criminal, mas sim às normas civis e administrativas. Então, mesmo que os traficantes as violem aberta e sistematicamente, as penalidades costumam ser mínimas, permitindo que as operações criminosas prosperem.

Necessidade de quadro legal básico harmonizado

Embora o tráfico ilegal de resíduos cause muitos problemas às comunidades, especialistas reconhecem que o gerenciamento legal e bem regulamentado é necessário, mitigando danos ambientais e contribuindo para a economia circular, ao reduzir, reutilizar e reciclar o material excedente.

Como empresária indiana ajuda a resolver o problema do lixo

Por isso, diversas nações e operações policiais internacionais entre a Ásia e a Europa estão agindo para fechar as lacunas que permitem aos criminosos operar e prejudicar o ciclo econômico.

"É importante fortalecer a dimensão transnacional, a fim de ter regulamentações semelhantes entre os países. Com normas semelhantes, é mais fácil dialogar", explica a criminologista Favarin.

Uma harmonização dos quadros legais pode contribuir para a adoção de leis mais fortes e penalidades mais severas para os crimes de tráfico de resíduos. A UE está atualmente atualizando as regras sobre transporte de lixo, com sua entrada em vigor prevista para o fim de abril.

Tecnologias modernas também prometem favorecer a proteção ambiental. "Drones ou imagens de satélite podem ajudar a detectar acúmulos ou grandes montes de lixo em áreas específicas, como aterros ilícitos, ou incinerações ilegais em áreas protegidas", exemplifica Favarin.

Relatório liga bancos a fazendas com ficha suja na Amazônia

Em julho de 2019, dinheiro de origem internacional caiu na conta de uma fazenda conhecida dos órgãos de fiscalização ambiental no Brasil. O empréstimo de R$ 127,5 mil veio do Banco de Lage Landen Brasil (DLL), uma subsidiária do holandês Rabobank, para financiar compra de equipamentos, máquinas e outros itens a uma propriedade no Acre inserida na Floresta Amazônica.

À época, a fazenda acumulava registros de desmatamento sem autorização e uma área embargada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais não Renováveis) desde 2012 por destruição de vegetação nativa. Entre o início do financiamento a julho de 2022, mais de 130 campos de futebol de florestas teriam sido cortados na mesma propriedade, suspeita-se que de forma ilegal.

O caso no Acre não é isolado. Uma investigação feita pelo Greenpeace revelou diversos empréstimos e concessão de crédito feitos por bancos e investidores a fazendas com ocorrência de desmatamento e outros delitos ambientais, segundo o relatório Bancando a extinção, publicado nesta semana.

"O problema não é de um banco, ou de outro, mas de um sistema. É importante que os reguladores atuem para suprir essas lacunas que mostramos no nosso relatório. Uma vez que elas sejam supridas, todo o setor precisa seguir", diz à DW Cristiane Mazzetti, coordenadora da frente de Florestas no Greenpeace Brasil.

Logo do Rabobank em uma parede de tijolos
Subsidiária do holandês Rabobank é apontada pelo Greenpeace como um dos bancos que emprestaram dinheiro a fazendas com ficha suja ambiental na Amazônianull imago/Becker&Bredel

Milhões a desmatadores  

Segundo a política de responsabilidade social, ambiental e climática do Rabobank Brasil, implementada em julho de 2006, o banco veta crédito a pessoas e instituições que tenham envolvimento com desmatamento não autorizado após janeiro de 2005. Mas esse ponto não tem sido observado com afinco, sugere o relatório do Greenpeace.

Em setembro de 2021, o Rabobank Internacional Brasil emprestou quase R$ 1 milhão a um fazendeiro no Pará envolvido em corte ilegal da Floresta Amazônia. Os dados investigados pela ONG apontaram um desmatamento ilegal de 2008 a 2022 que corresponde a 79,4% de área total da propriedade.

O europeu Santander, banco espanhol com ampla oferta de serviços no Brasil, também financiou proprietários rurais que causam destruição na Amazônia, segundo o relatório. Mais de R$ 2 milhões foram concedidos a um fazendeiro no Pará que suprimiu áreas de floresta sem autorização.

Ao todo, a pesquisa identificou 798 propriedades rurais embargadas pelo Ibama que receberam financiamento de instituições financeiras de fora e de dentro do Brasil.

Pessoas caminham em frente a uma agência do Santander
Santander também é citado no relatório como fonte de empréstimos para proprietários rurais que causam desmatamentonull Aleksander Kalka/ZUMA Press Wire/picture alliance

"Desses quase 800 casos, não avaliamos se os embargos vieram antes ou depois de os contratos com os bancos terem sido assinados. As instituições financeiras só observam os critérios quando elaboram o contrato, ainda não há uma exigência de se monitorar a propriedade até que o pagamento do crédito vença", destaca Mazzetti como uma das lacunas.

À DW, o Rabobank afirmou que opera de acordo com todas as regulamentações na concessão de crédito rural. Sobre os casos apontados no relatório, a instituição disse "analisará os dados mencionados no referido estudo e havendo inconsistências com suas práticas adotará medidas cabíveis".

O Santander enviou à DW a mesma nota que encaminhou ao Greenpeace. O banco pediu mais tempo para analisar o relatório e disse estar "aberto ao diálogo construtivo e disposto a oferecer mais informações" sobre sua atuação.

Bancos brasileiros

Dinheiro concedido por bancos brasileiros também financia fazendas com histórico de irregularidades, mostra o relatório. A uma outra fazenda no Acre, o Banco do Brasil emprestou cerca de R$ 1,4 milhão para custear criação de gado, na qual parte da área está dentro de uma floresta pública não destinada, com vários indícios de desmatamento ilegal.

Uma resolução do Conselho Monetário Nacional (n. 5.081, de junho de 2023) proíbe a concessão de crédito a empreendimentos sobrepostos a unidades de conservação, como florestas públicas e terras indígenas.

"Essa resolução já preencheu diversas lacunas, mas ainda existem vários financiamentos ativos de antes dessa norma com vencimentos que ainda virão em alguns anos", diz Mazzetti, ressaltando que o levantamento do Greenpeace mapeou 10.074 propriedades inseridas em unidades de conservação, parcial ou totalmente.

Somente os 12 casos específicos apresentados no relatório receberam mais de R$ 43 milhões. São propriedades com ficha ambiental problemática que incluem desmatamento ilegal, indícios de grilagem, sobreposição com áreas protegidas e produção irregular de gado.

Questionado pela DW, o Banco do Brasil informou que "se abstém de comentar operações e serviços prestados, em respeito ao sigilo bancário, comercial e empresarial". Em nota, a instituição afirmou que "observa critérios socioambientais na análise e condução de empréstimos e financiamentos" e que as "operações de crédito contam com cláusulas que permitem a decretação do vencimento antecipado e a suspensão imediata dos desembolsos em caso de ocorrência de infringências socioambientais".

Falta de transparência 

O relatório foi elaborado após diversas consultas à base de dados do sistema Sicor, gerido pelo Banco Central, na qual os bancos precisam registrar as operações de crédito. Mas essa base não é considerada a mais acessível.

"Precisamos avançar muito nas normas que trazem exigências de ordem socioambiental, seja para o crédito rural, seja para crédito convencional e investimentos. O crédito rural tem regulação um pouco mais avançada, mas tem lacunas, como mostram os estudos de caso que apresentamos", diz Mazzetti. 

O crédito rural é o principal meio de financiamento do agronegócio brasileiro. Por meio dele, instituições financeiras emprestam dinheiro diretamente aos produtores rurais e cooperativas com subsídio de taxas de juros do governo federal.  

No Brasil, 425 instituições operaram o crédito rural. Desse total, 164 ofereceram financiamento a produtores da Amazônia Legal, com destaque a três bancos: Banco do Brasil, responsável por 44,1% dos contratos, Caixa Econômica e Banco da Amazônia, segundo a análise do Greenpeace.

Bagunça territorial 

André Guimarães, diretor executivo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), afirma que o caos fundiário na Amazôniafalhas da implementação do Código Florestal podem dificultar a análise dos bancos na hora da concessão do crédito. Segundo a lei, as propriedades rurais na Amazônia devem preservar 80% de sua área. 

"Há estados amazônicos onde 70% de propriedades rurais não têm documentação. Isso é muito problemático", comenta Guimarães à DW.  

Apesar dos problemas em torno da regularização fundiária e ambiental que o Estado deveria resolver, os bancos deveriam fazer mais, defende o pesquisador do Ipam. 

"Não se justifica investir em fazendas que estão sobrepostas a área de conservação. O Estado tem que cumprir seu papel, mas as instituições financeiras deveriam criar seus próprios modelos de análise mais rigorosos para evitar esses problemas", conclui.

Investigação liga crimes no Cerrado a gigantes da moda na Europa

Até chegarem nas vitrines de gigantes como Zara e H&M, calças, bermudas, camisetas e meias de algodão deixam para trás um rastro de desmatamento, grilagem de terras e violação de direitos humanos no Brasil. Para o consumidor, as peças parecem acima de qualquer suspeita: a maioria estampa um selo de produção sustentável.

A denúncia faz parte do relatório Fashion Crimes da organização Earthsight, publicado nesta quinta-feira (11/04). Ao longo de um ano, uma investigação detalhada focou nos negócios que conectam as lavouras do Brasil, quarto maior produtor da commodity no globo, às marcas europeias.

A ONG analisou o caminho percorrido por 816 mil toneladas de algodão com a ajuda de imagens de satélite, registros de envios de mercadoria, arquivos públicos e visitas às regiões produtoras.

Segundo o relatório, essa matéria-prima foi destinada especialmente a oito empresas asiáticas que, entre 2014 e 2023, fabricaram cerca de 250 milhões de itens para as lojas. Muitos deles, alega a investigação, abasteceram marcas como H&M e Zara, entre outras.

"É chocante ver estas ligações entre marcas globais muito reconhecidas, mas que, ao que tudo indica, não se esforçam o suficiente para ter controle sobre estas cadeias de fornecimento, para saber de onde vem o algodão e quais tipos de impacto ele provoca", diz Rubens Carvalho, chefe de Pesquisa sobre Desmatamento da Earthsight, à DW.

Crimes no Cerrado

O problema, afirma a ONG baseada no Reino Unido, está na origem da matéria-prima. O algodão exportado sai principalmente do oeste da Bahia, região imersa no Cerrado brasileiro muitas vezes desmatado ilegalmente para ampliar o cultivo. Em alta, o corte desta vegetação dobrou nos últimos cinco anos, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Dentre os casos analisados no relatório, está o grupo SLC Agrícola. Fundado em 1977 no Rio Grande do Sul, o grupo diz ser responsável por 11% do algodão brasileiro exportado (safra 2019/2020).

O estudo da Earthsight também diz que, nos últimos 12 anos, estima-se que 40 mil campos de futebol de Cerrado tenham sido destruídos dentro das fazendas do SLC. Em 2020, a empresa, que também planta soja, foi apontada como a maior desmatadora do bioma, calculam pesquisadores do Chain Reaction Research.

Em 2021, o SLC se comprometeu junto a fornecedores com uma política de desmatamento zero. Um ano após a promessa, um relatório da Aidenvironment identificou o corte de 1.365 hectares de Cerrado dentro das propriedades que cultivam algodão, o equivalente a 1.300 campos de futebol. Quase metade estava dentro da reserva legal.

Uma consulta feita pela Earthsight no banco de dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mostra mais de R$ 1,2 milhão de multas aplicadas por infrações ambientais desde 2008 nas fazendas do grupo no oeste da Bahia.

Uma das acionistas da SLC é a britânica Odey Asset Management. Em 2020, em uma entrevista para o diário britânico Financial Times, o fundador da empresa disse que arcar com as penalidades ambientais no Brasil era algo corriqueiro como "pagar multas de trânsito".

Questionado, o grupo afirmou por meio de nota à DW que "todas as conversões de área com vegetação nativa da SLC seguiram os limites estabelecidos por lei". Especificamente sobre a área desmatada em 2022 apontada no relatório da Aidenvironment, a empresa diz que a destruição se deu por "um incêndio natural, não ocasionado para a abertura de novas áreas para produção".

Sobre as multas aplicadas pelo Ibama, a SLC Agrícola diz ter recorrido administrativamente de todas as autuações. "As multas que foram objeto de recurso estão em tramitação e não houve, até o momento, um julgamento definitivo", diz a nota.

"Grilagem verde"

Outro grupo analisado em detalhes é o Horita, original do Paraná e atuante na Bahia desde a década de 1980. Dentre as várias denúncias feitas pela Earthsight está a chamada grilagem verde: imposição de reservas legais, ou áreas de preservação de propriedade privada, em zonas onde vivem comunidades tradicionais. A manobra impede que famílias realizem atividades de subsistência e, nos piores casos, permaneçam nas terras.

O conflito fundiário entre as famílias geraizeiras, como se identificam essas comunidades tradicionais na região, e fazendeiros data de 1970. Na década seguinte, a companhia Delfin Rio compra terras e registra o empreendimento como Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do estado (AATR), o grupo Horita é um dos sócios do complexo de fazendas.

Em 2017, as famílias geraizeiras da zona rural de Formosa do Rio Preto, no oeste baiano, ajuizaram uma ação contra a Estrondo por grilagem de terra e ganharam, em caráter liminar, a posse coletiva de 43 mil hectares que o empreendimento dizia ter comprado. A maior parte está no coração da Matopiba, zona de expansão do agronegócio que integra os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, habitada há mais de 200 anos pelos geraizeiros.

Em 2019, a Operação Faroeste da Polícia Federal revelou um conluio do alto escalão do magistrado baiano para favorecer fazendeiros na mesma região. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), um esquema de compra de sentenças teria movimentado cifras bilionárias em disputas de terras e tinha participação de magistrados, empresários, advogados e servidores públicos. Walter Horita, um dos fundadores do grupo, é um dos réus no processo, ainda em julgamento.

Um dos magistrados acusado de vender sentença para grileiros, segundo a Operação Faroeste, atuou na ação que julgava a posse coletiva dos geraizeiros. Segundo a AATR, a liminar a favor das comunidades só passou a ser cumprida após o afastamento e prisão do juiz.

Procurado pela DW, o Grupo Horita declarou nesta quarta-feira que "aguardará a divulgação do relatório para qualquer nova manifestação, para além das que já foram proferidas pelo seu departamento jurídico, em resposta às acusações da ONG".

"Todas as alegações negativas contra o Grupo Horita constantes da Carta da Earthsight, datada de 23/08/2023, como supostos 'achados', não correspondem à verdade", diz um trecho da resposta enviada à ONG.

Rota até as marcas europeias

Durante a investigação, a Earthsight seguiu a rota de  816 mil toneladas de exportações de algodão que saíram da SLC Agrícola e Grupo Horita entre 2014 e 2023 para os principais destinos: China, Vietnã, Indonésia, Turquia, Bangladesh e Paquistão. Com base em dados que permitem rastreio – o que não ocorre no caso chinês –, as pistas levaram a oito fabricantes de roupas na Ásia.

Todas as intermediárias identificadas (PT Kahatex, na Indonésia; Noam Group e Jamuna Group, em Bagladesh; Nisha, Interloop, YBG, Sapphire, Mtmt, no Paquistão) fornecem produtos acabados a marcas como Zara e H&M, segundo aponta a ONG.

"O algodão que associamos aos abusos de direitos à terra e ambientais na Bahia tem certificação Better Cotton. Essa iniciativa  falhou em impedir que este algodão chegasse aos consumidores preocupados", afirma o relatório da Earthsight.

Criada em 2009 pela indústria e outras organizações, incluindo a WWF, a iniciativa criou um selo para atestar a origem da matéria-prima no intuito de garantir qualidade e respeito ao meio ambiente. No Brasil, segundo dados da Better Cotton, há 370 fazendas certificadas em parceria com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa). 

Etiqueta em camiseta de algodão amarela com os dizeres "algodão 100% orgânico"
Selo de produção sustentável esconde rastro de desmatamento, grilagem de terras e violação de direitos humanos no Brasil, diz estudo da organização não-governamentalnull Ulrich Niehoff/imageBroker/picture alliance

Em 2018, uma análise feita pela Changing Markets Foundation, organização que visa alinhar mercados a padrões de sustentabilidade com sede na Holanda, sobre certificadoras apontou problemas na Better Cotton. "Em geral, os padrões para o algodão certificado são baixos e aplicam-se apenas ao início da cadeia de abastecimento de algodão. Considerar o certificado uma garantia de sustentabilidade é enganoso", dizia o levantamento.

A Better Cotton, sediada em Genebra, disse à DW que acaba de concluir uma auditoria aprimorada feita por terceiros das fazendas envolvidas e que precisa de tempo para analisar as conclusões e implementar mudanças, caso sejam necessárias. "As questões levantadas [pelo relatório] demonstram a necessidade premente de apoio governamental na abordagem das questões trazidas à luz e na garantia de uma implementação justa e eficaz do Estado de direito", diz o e-mail da iniciativa.

Mais controle das cadeias

À DW, a H&M afirmou que "as conclusões do relatório são altamente preocupantes" e que encaram a questão com muita seriedade. "Estamos em estreito diálogo com a Better Cotton para acompanhar o resultado da investigação e os próximos passos que serão dados para fortalecer e revisar seu padrão", respondeu a varejista, também por e-mail.

A Zara disse à DW que leva "as acusações contra a Better Cotton extremamente a sério" e exige que a certificadora compartilhe o resultado de sua investigação o mais rápido possível.  

"Além disso, solicitamos com urgência as providências tomadas pela Better Cotton para garantir a certificação de algodão sustentável nos mais altos padrões", disse a varejista por meio de nota.

Nesta quarta-feira, a Inditex, proprietária da Zara, exigiu mais transparência da Better Cotton após anúncio da divulgação do relatório para esta quinta. A Inditex enviou uma carta à iniciativa com data de 8 de abril, pedindo esclarecimentos sobre o processo de certificação e progressos em práticas de rastreamento de cadeias produtivas. A Inditex não compra o algodão diretamente dos fornecedores, mas as empresas produtoras são auditadas por certificadoras como a Better Cotton.

Para Rubens Carvalho, da Earthsight, responsabilizar os europeus é parte da solução para acabar com o desmatamento e violações de direitos nos centros produtores de commodities, como o Brasil.

"O algodão ainda é pouco regulamentado nos mercados europeus. Eles precisam regular seu consumo e desvinculá-lo de impactos negativos ambientais e humanos. É preciso uma regulamentação séria, que puna em caso de descumprimento. Isso aumenta a pressão sobre os produtores", defende Carvalho.

Como reduzir o impacto da indústria da moda? | Eco Brasil

Óculos ou lentes de contato: o que é melhor para o planeta?

Toda vez que uma pessoa usa lentes de contato novas, ela cria resíduos: o par antigo de lentes de contato, a embalagem do novo par e o frasco de solução salina. 

Tudo isso equivale a cerca de um quilo por ano, sendo que lentes reutilizáveis geram um pouco menos. Com 140 milhões de usuários de lentes de contato em todo o mundo, isso significa muito lixo. 

Mas os óculos têm os seus próprios problemas. Como cerca de metade da população mundial vai precisar de óculos até 2050, descobrir o que é melhor para o meio ambiente pode fazer a diferença.

Lentes de contato criam microplásticos 

Cerca de 20% dos usuários de lentes de contato nos Estados Unidos jogam suas lentes usadas no ralo, de acordo com Charles Rolsky. Ele é o diretor-executivo da organização sem fins lucrativos norte-americana Shaw Institute, que estuda como contaminantes, a exemplo dos plásticos, afetam o meio ambiente e os seres humanos

Como parte da sua tese de doutorado, Rolsky analisou o impacto dos resíduos provenientes de lentes descartáveis e descobriu que algo entre 2 e 3 bilhões desses rejeitos acabam em águas residuais só nos EUA. 

Ele acompanhou a jornada das lentes de contato através de uma estação de tratamento de águas residuais. Os pesquisadores analisaram o produto final do processo, um fertilizante rico em nutrientes chamado biossólido, e descobriram que esses pequenos pedaços de plástico não se decompõem totalmente. 

Para o pesquisador, a constatação de que lentes sobrevivem ao tratamento de águas residuais foi muito reveladora. "Elas são muito porosas. Portanto, há uma chance de que possam estar contaminadas com doenças ou outros tipos de produtos químicos e de que se fragmentem em microplásticos", disse ele. 

óculos
Os óculos também são itens de moda, portanto, armações acabam descartadas quando saem de modanull Manfred Segerer/IMAGO

Microplásticos são minúsculas partículas de plástico que viajam facilmente pelo meio ambiente, especialmente na água. Eles podem entrar na cadeia alimentar e eventualmente retornar aos humanos.

Embora as lentes de contato sejam pequenas, a frequência com que são usadas e o número de pessoas que as utilizam têm um impacto significativo, disse Rolsky à DW. 

Um outro estudo realizado em 2023 descobriu que pelo menos 18 tipos de lentes de contato vendidos nos EUA contêm altos níveis de PFAS (substâncias per e polifluoroalquil), também conhecidos como "produtos químicos eternos”. 

Não está claro se os PFAS afetam diretamente quem usa lentes de contato, mas estes produtos químicos tóxicos podem contaminar o solo e a água e acumular-se em animais antes de potencialmente acabarem dentro dos seres humanos. 

Óculos são melhores que lentes de contato?

É difícil dizer. Poucos fabricantes de óculos reportam publicamente suas emissões de carbono, por exemplo. Mas, uma vez nas mãos dos consumidores, os óculos não produzem muitos resíduos, além de eventuais panos de limpeza. 

O impacto ambiental ocorre principalmente durante a fabricação. As próprias lentes geralmente são feitas de grandes pedaços de plástico, com cerca de oito centímetros de diâmetro. Até 90% desse pedaço original é cortado para formar a lente, de acordo com Andrew Clark, um comunicador científico que ajudou a fundar a consultoria britânica Net Zero Optics. 

A fabricação das armações, que em sua maioria são de plástico, produz uma quantidade de desperdício semelhante à das lentes. A fabricação de óculos também é problemática devido à superprodução, segundo Max Juraschek, cientista da Universidade Técnica de Braunschweig, na Alemanha, que lidera um grupo que pesquisa sistemas de produção sustentáveis. 

"Talvez metade deles seja jogada fora antes de poder ser vendida, porque leva muito tempo (da fabricação até a venda final) e é um produto da moda e talvez ninguém esteja interessado nesta moldura em particular”, disse Juraschek.

Os óculos são basicamente um acessório de moda, e os usuários norte-americanos compram um novo par a cada ano, de acordo com Juraschek. Assim como outros itens do fast fashion, as molduras vão parar em aterros sanitários. 

Que tal reciclar óculos e lentes de contato? 

Os óculos são produzidos a partir de uma gama complexa de materiais, incluindo plásticos que são difíceis de reciclar. "Somos uma indústria muito pesada em plástico, e a maior parte dele é derivada de combustíveis fósseis”, disse Clark. 

"Estamos numa indústria que é muito internacional, grande parte da nossa produção é feita na China e no Oriente Global. Cada passo nessa jornada envolve refinar um produto plástico ou transportá-lo. E isso rapidamente resulta em uma pegada de carbono substancial”, acrescentou Clark. 

No Reino Unido, existem vários programas de reciclagem especializados que afirmam reciclar lentes de contato e suas embalagens, assim como óculos. As lentes de contato não podem ser recicladas juntamente com outros resíduos plásticos porque são muito pequenas e não podem ser separadas.

lente de contato
As lentes de contato devem ser enviadas para instalações de reciclagem especializadas e não podem ser jogadas em lixeiras comunsnull Andreas Berheide/PantherMedia/IMAGO

Quando se trata de óculos, programas especializados de reciclagem tentam separá-los em seus materiais componentes antes de transformar os plásticos em materiais de baixa qualidade, que acabam posteriormente em aterros sanitários. As lentes de vidro são uma alternativa ao plástico, mas também são difíceis de reciclar devido aos revestimentos especiais utilizados.

E os óculos sustentáveis? 

As armações geralmente são feitas de acetato, uma mistura de materiais vegetais e fósseis. Mas os fabricantes de óculos comercializam algo chamado bioacetato. De acordo com Clark, isso não passa de "greenwashing” (propaganda enganosa sobre o comprometimento ambiental de uma empresa), dada a quantidade de plástico que ainda contém.

Então, qual é a resposta: lentes de contato ou óculos? 

Estar atento ao desperdício é uma das decisões mais impactantes que os usuários de óculos ou lentes de contato podem tomar. 

Para quem usa lente, é importante evitar lavá-las na pia – isso contamina as águas residuais e o meio ambiente com microplásticos. E, se possível, encontrar um programa de reciclagem especializado.

Os usuários de óculos podem optar por substituir apenas as lentes e evitar comprar novas armações apenas por moda. 

A equipe de Juraschek descobriu que, ao deslocar a produção de óculos para mais perto dos consumidores e ao usar materiais reciclados locais, o impacto ambiental poderia ser reduzido em 25%. Parte desse sucesso veio da fabricação em pequena escala, que reduziu a superprodução. Mas também descobriram que os clientes tinham uma ligação maior com o produto, uma vez que era local.

Fast Fashion: França quer frear indústria do desperdício

Deputados na França aprovaram uma nova lei que promete frear o consumo de produtos da chamada fast fashion, a moda rápida, baseada na venda de roupas de baixo custo (e com grande impacto ambiental) produzidas geralmente na China.

As novas regras afetarão empresas que lançam um determinado número mínimo de produtos por dia – limite esse que vai ser estabelecido mais para frente por decreto.

O governo tem como alvo as gigantes da moda rápida, como por exemplo a fabricante Shein e a plataforma online Temu, ambas com sede na China, e que disponibilizam por volta de "7.200 peças por dia”, como destacou uma deputada.

Aplicativo da Shein em um telefone
Projeto visa conter atividade das gigantes do setor, como Shein e Temunull Jakub Porzycki/NurPhoto/picture alliance

Segundo a proposta, essas empresas terão de publicar mensagens claramente visíveis em seus websites indicando o impacto ambiental dos seus produtos e incentivando os clientes a reciclar itens – ou então enfrentarão multas de até €15.000 (mais de R$ 82 mil).

Um novo sistema de ecopontos vai avaliar as empresas de moda. Aqueles que tiverem um mau desempenho terão de pagar uma taxa inicial de €5 (R$ 27) e depois, até 2030, até €10 (R$ 54) por artigo.

O governo também vai proibir a partir de 2025 a publicidade de produtos vendidos por essas empresas. A violação dessa lei acarretará multas de até € 100 mil (mais de R$ 546 mil).

O projeto passou com unanimidade na câmara baixa do Senado francês, criando um raro consenso na Assembleia Nacional, onde o governo carece de maioria absoluta e enfrenta frequentemente forte oposição. Agora, a proposta precisa receber luz verde do Senado para poder entrar em vigor já nos próximos meses.

‘Vencemos uma batalha cultural'

Para Julia Faure, designer de moda e presidente do grupo En Mode Climat, que inclui cerca de 600 empresas que produzem moda de forma sustentável, o projeto de lei já é uma "ótima notícia”.

"Vencemos uma batalha cultural, já que o fast fashion é um desastre ambiental, social e cultural que destrói tudo, com exceção do setor de luxo, como um enorme rolo compressor”, disse ela à DW.

Hoje, estima-se que 10% das emissões das emissões de CO2 venham da indústria da moda, certamente potencializadas pelo ritmo de produção em larga escala da moda rápida.

Mas o impacto da fast fashion vai além e inclui a poluição de oceanos, o desperdício de água, a utilização de derivados de combustíveis fósseis nos tecidos, o incentivo ao descarte excessivo de roupas, que na maioria das vezes não é reciclada corretamente e, é claro, as condições de trabalho análogas à escravidão. 

Pilha de lixo têxtil no Chile
O descarte incorreto das roupas é apenas um dos problemas ambientais que envolvem a indústria da moda rápidanull SWR

Faure acredita que o governo está enviando a mensagem correta quando a moda feita de algodão e produzida localmente obtém uma boa pontuação ecológica, enquanto os produtos fabricados longe e a partir de tecidos sintéticos são mal ranqueados.

"No entanto, precisamos de permanecer alertas e garantir que o limite [de peças por dia através] a partir do qual as empresas de fast fashion serão definidas não seja tão alto”, acrescentou.

Vozes contrárias à proposta

O professor de economia na Paris Cité University e fundador da empresa de pesquisa de mercado ObSoCo, Philippe Moati discorda do método do governo.

"O projeto de lei estigmatiza os clientes dessas marcas que, de acordo com um estudo que estamos realizando, são os menos instruídos e menos abastados. É importante que eles possam comprar moda para se sentirem parte da sociedade", disse Moati à DW.

O economista estima que o que chama de "moda ultrarrápida” representa apenas cerca de 3% do mercado de moda francês – não existem números exatos.

Moati defende que os negócios de fast fashion sejam regulamentados de forma mais rigorosa, mas com as ferramentas já existentes.

"O governo deveria implementar leis francesas, como a garantia de dois anos para artigos de moda, a proibição de vender abaixo do custo e a obrigação de calcular descontos usando preços de referência realistas”, observou.

Fachada de uma Loja da Zara em Varsóvia, na Polônia
Marcas como Zara e H&M introduziram a fast fashion na década de 1990, lançando novas coleções todas as semanas, em vez de duas vezes por ano.null Beata Zawrzel/NurPhoto/picture alliance

Shein, Temu, Zara e H&M recusaram ou não responderam aos pedidos de entrevistas com a DW.

Antoine Vermorel-Marques, um deputado no departamento do partido conservador Les Republicains aprova a ideia, mas não concorda com todos os parágrafos do projeto de lei.

"A proibição da publicidade irá bloquear o mercado em vez de o regular. Deveríamos concentrar-nos apenas no sistema de ecopontos que nos permitirá ter em conta as externalidades negativas, ou seja, fazer com que as empresas paguem pelo impacto ambiental e social negativo dos seus produtos, " ressaltou.

"Mais medidas necessárias” para atingir as metas climáticas

Para Pierre Condamine, porta-voz do grupo Stop Fast Fashion, que inclui várias ONG que lutam pela proteção do ambiente, as novas regras não vão suficientemente longe.

"O limite que define o fast fashion deve ser diretamente consagrado no projeto de lei e ser baixo o suficiente para abranger também empresas francesas, como a varejista de artigos esportivos Decathlon”, disse ele à DW.

Loja com descontos e consumidores comprando
Segundo o professor de economia Philippe Moati, o projeto de lei estigmatiza os clientes dessas marcas, que, em sua maioria, são menos instruídos e têm menos recursos.null java

Condamine acrescentou que as empresas de fast fashion deveriam ter a obrigação de publicar os seus números de vendas na França.

"Essa é a única maneira de podermos realmente compreender o que estamos enfrentando e tentar trabalhar para cumprir o Acordo Climático de Paris”, afirmou o porta-voz.

A França pode liderar o caminho

Gildas Minvielle, diretor do observatório econômico do Institut Français de la Mode, uma escola de moda sediada em Paris, acredita que o tempo dirá se a abordagem do governo é a correta.

"Este é um território desconhecido – precisamos testar o que funciona e o que não funciona”, disse ele à DW. "Em qualquer caso, porém, é crucial lembrar os consumidores do impacto devastador do fast fashion no meio ambiente”.

Senado francês
A aprovação parlamentar unânime colocou a França no caminho para se tornar o primeiro país a frear a indústria de Fast Fashionnull Michel Euler/AP photo/picture alliance

Para ele, a votação unânime no parlamento mostra que os políticos franceses compreenderam que há urgência em agir.

"O projeto de lei é uma reação à profunda crise que o setor prêt-à-porter [roupa assinada por alguma marca feita industrialmente] atravessa desde 2022, com inúmeras marcas entrando em falência”, disse ele.

"A França, o lar da moda, poderia agora liderar o caminho. Estas regras deveriam ser alargadas a toda a Europa, uma vez que o mercado da moda é europeu", afirmou.

 

Futurando - Edição de 11/08/2021

Mesmo com avanços na preservação, desmatamento no mundo permanece alto

Não é que o desmatamento seja algo exclusivo de agora. Mais da metade das terras habitáveis ​​do planeta já foram cobertas por florestas exuberantes e os seres humanos vêm alterando as paisagens há pelo menos 10 mil anos. O problema é que a perda florestal acelerou dramaticamente no último século.

De 1900 para cá, uma área do tamanho dos Estados Unidos foi desmatada. A mesma quantidade que foi perdida nos 9.000 anos anteriores, de acordo com a plataforma científica online Our World in Data. E as perdas continuam.

De acordo com um novo estudo da Global Forest Watch publicado pela organização de investigação World Resources Institute (WRI), a cada semana em 2023, o planeta perdeu uma cobertura florestal tropical do tamanho de Cingapura. Isso mesmo com a perda florestal tendo caído em comparação com 2022.

Normalmente, as florestas são derrubadas para limpar terras para a agricultura e pecuária – principalmente para criação de gado, cultivo de soja e extração de óleo de palma – ou para obtenção de madeira.

Desmatamento na Amazônia
Florestas são derrubadas para limpar terras para a agricultura e pecuárianull Andre Penner/AP Photo/picture alliance

Mas essa não é a única causa do aumento no desmatamento. Incêndios florestais também têm tido um grande impacto nessa questão, à medida que as alterações climáticas os tornam cada vez mais frequentes. Incêndios recordes no Canadá levaram a um aumento de cinco vezes na perda de florestas no ano passado.

Visando frear os impactos das mudanças climáticas, a maioria dos países se comprometeu a zerar a perda florestal até 2030. Mas essa meta não está nem perto dos níveis necessários para ser atingida em apenas seis anos.

"O mundo deu dois passos para frente e dois para trás no que diz respeito à perda florestal do ano passado”, disse Mikaela Weisse, Diretora Global de Observação Florestal do WRI, em um comunicado.

Países como o Brasil e a Colômbia reduziram drasticamente as taxas de perda de florestas tropicais, mas os seus ganhos foram em grande parte anulados por enormes aumentos em países como Bolívia, Laos e Nicarágua, de acordo com os dados do estudo pesquisados ​​pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.

Por que as florestas são tão importantes?

Florestas saudáveis ​​garantem que os humanos tenham ar suficiente para respirar, absorvendo dióxido de carbonoe produzindo oxigênio.

As florestas também recarregam a nossa água potável e funcionam como filtros naturais. Seus sistemas radiculares absorvem o excesso de nutrientes e poluentes do escoamento das chuvas antes de entrarem nos aquíferos, mantendo a água segura para consumo.

Essas mesmas raízes protegem contra deslizamentos de terra ao manterem o solo unido, combatem as inundações após fortes chuvas, uma vez que ajudam na absorção de água, e, no caso das florestas de mangue, amortecem as ondas durante as tempestades, atuando como uma fortaleza costeira.

As florestas também desempenham um papel importante na nossa garantia de alimentos, seja de maneira direta, através do abrigo direto de frutas e animais selvagens que as pessoas comem, seja de maneira indireta, através do apoio à agricultura através do abrigo de polinizadores e do fornecimento de água.

Onça-pintada em cima de árvore na Amazônia
As florestas sustentam mais de 80% da biodiversidade terrestrenull Girlan Dias/Icmbio

Elas sustentam diretamente a subsistência de 1,6 milhão de pessoas, fornecendo madeira, combustível, alimentos, empregos e abrigo. Cerca de 300 milhões de pessoas vivem em florestas.

Além das vidas humanas, as florestas sustentam mais de 80% da biodiversidade terrestre, incluindo 80% dos anfíbios e 75% das aves. As florestas tropicais são especialmente pesadas, abrigando mais da metade das espécies de vertebrados do mundo.

Quando as florestas tropicais são derrubadas, cerca de 100 espécies são extintas todos os dias, de acordo com a ONG internacional de conservação WWF. A biodiversidade é fundamental para a sobrevivência contínua da humanidade.

Como as florestas estão ligadas às mudanças climáticas?

As florestas são essenciais para abrandar as mudanças climáticas. Os modelos elaborados pelo órgão científico da ONU, o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), mostraram que parar o desmatamento e restaurar árvores é fundamental para manter o aquecimento do planeta abaixo dos 2 graus Celsius.  Esse é o limite acordado pelos líderes mundiais em Paris em 2015 para evitar os piores efeitos da crise climática.

Isto ocorre porque as florestas são os maiores sequestradores de carbono do planeta, juntamente com os oceanos e o solo. Elas absorvem grandes quantidades dos gases que aquecem o clima, que são em grande parte liberados pela queima de combustíveis fósseis.

Floresta Amazônica vista de cima
Florestas atuam como maiores sequestradores de CO2 do planetanull Bruno Kelly

Mas quando as florestas são desmatadas, não só perdemos uma força potencial de absorção do CO2, como lançamos mais gás carbônico de volta na atmosfera, o que acelera os impactos das mudanças climáticas.

Apesar disso, não é apenas o seu papel na regulação do CO2 que afeta a atmosfera. As florestas também ajudam na criação de nuvens, que refletem a luz solar de volta ao espaço. Elas também atuam como um ar-condicionado natural quando liberam umidade no ar por meio da evaporação. Até mesmo o formato das copas das árvores desempenha um papel complexo nos movimentos do vento e nos sistemas climáticos.

Sons revelam o impacto das mudanças climáticas nas florestas

O que pode ser feito para salvar as florestas?

Reversões no desmatamento são possíveis. Em 2023, o Brasil reduziu a perda de florestas nativas em 36%, enquanto as perdas caíram 49% na Colômbia, em comparação com o ano anterior, em parte graças à ação política.

Os ganhos da Colômbia foram em grande parte impulsionados por um processo de paz dentro do país, com negociações entre diferentes grupos armados a dar prioridade explícita à conservação das florestas.

No caso do Brasil, o presidente Lula fez do desmatamento uma meta políticapor meio do fortalecimento da aplicação da lei, da revogação de políticas ambientalmente destrutivas e do reconhecimento de territórios indígenas. Completamente o oposto do governo federal anterior, cujas políticas ajudaram a impulsionar a perda de florestas sob o pretexto de da busca por desenvolvimento econômico.

Floresta Amazônica vista de cima
Economia global precisa aumentar o valor da floresta de pé em relação aos ganhos de curto prazo oferecidos pelo desmatamentonull cc-by-sa-2.5/Phil P Harris

"Os países podem reduzir as taxas de perda florestal quando reúnem vontade política para fazer isso. Mas também sabemos que o progresso pode ser revertido quando os ventos políticos mudam”, disse Rod Taylor, Diretor Global de Florestas do WRI, numa teleconferência.

De acordo com Taylor, para contrariar este efeito ioiô, é importante que se reconheça o valor que a floresta enquanto está viva. "A economia global precisa aumentar o valor das florestas em pé em relação aos ganhos de curto prazo oferecidos pelo desmatamento de florestas para abrir caminho a explorações agrícolas, minas ou novas estradas”, argumentou.

De que outra maneira as florestas podem ser protegidas?

Algumas formas de fazer isso incluem iniciativas globais que atribuem um valor às florestas com base na quantidade de carbono que elas podem armazenar. Há também esforços de especialistas para pagar diretamente aos residentes e proprietários de terras que ajudam a preservar áreas florestais.

As regulamentações podem ajudar a combater o desmatamento, concentrando-se nas cadeias de abastecimento. O novo regulamento sobre desmatamento da União Europeia, por exemplo, vai pressionar as empresas para garantir que as importações de gado, cacau, café, óleo de palma, borracha, soja e produtos de madeira não provenham de terras recentemente desmatadas.

Apoiar as comunidades indígenas em florestas saudáveis ​​pode ajudar a proteger contra o desmatamento. Segundo o Banco Mundial, cerca de 36% das florestas intactas remanescentes estão em terras indígenas.

O reflorestamento de áreas desmatadas é essencial para alcançar o Acordo de Paris, e muitos países até consideram estabelecer uma floresta onde anteriormente não existia nenhuma.

"São necessários mecanismos globais ousados ​​​​e iniciativas locais únicas para alcançar reduções no desmatamento em todos os países tropicais”, disse o especialista florestal Rod Taylor.

Chilenos se organizam para limpar e reflorestar Santiago

enk

Ondas de calor se tornaram mais frequentes e mais longas

As mudanças climáticas estão fazendo com que as ondas de calor se tornem mais frequentes e mais longas do que há 40 anos, revelou um estudo publicado na Science Advances, na sexta-feira (29/03).

Desde 1979, as ondas de calor se tornaram 20% mais longas, expondo populações por mais tempo a temperaturas extremas, e tornaram 67% mais frequentes. O estudo mostrou que, entre 1979 e 1983, essas ondas duravam em média oito dias. Entre 2016 e 2020, a duração média deste fenômeno passou a ser de 12 dias.

Embora pesquisas anteriores já tenham constatado que a mudança climática está tornando os períodos de ondas de calor mais longos, mais frequentes e mais intensos, o novo estudo se difere por considerar não apenas a temperatura e a área de superfície, mas também a duração do calor e sua propagação pelos continentes, explicam os coautores da pesquisa e climatologistas Wei Zhang, da Universidade Estadual de Utah, e Gabriel Lau, da Universidade de Princeton. 

O estudo também indicou que a Eurásia foi a região atingida pelas ondas de calor mais duradouras. A pesquisa ainda acrescenta que esse fenômeno diminuiu na África, enquanto a América do Norte e a Austrália tiveram os maiores aumentos em magnitude, ou seja, considerando a temperatura e a área de superfície.

"Esse estudo é um aviso claro de que as mudanças climáticas tornam as ondas de calor ainda mais perigosas em vários aspectos", alerta o cientista Michael Wehner, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, que não participou da pesquisa.

Assim como em um forno, quanto maior a duração do calor, mais assada ficará a comida. Nesse caso, são as pessoas, de acordo com os coautores. "E os impactos em nossa sociedade seriam enormes e aumentariam com o passar dos anos", observa Zhang.     

Papel do aquecimento global

A equipe realizou simulações de computador que mostram que essa mudança se deve às emissões que retêm o calor da queima de carvão, petróleo e gás natural. Os pesquisadores também usaram modelos climáticos para determinar como seriam os resultados na ausência de mudanças climáticas causadas pelo homem.

O estudo detectou a pegada das mudanças climáticas ao simular um mundo sem emissões de gases de efeito estufa e concluiu que sem a alteração no clima não haveria as ondas de calor observadas nos últimos 45 anos.

Eles também analisaram as mudanças nos padrões climáticos que propagam as ondas de calor. As ondas atmosféricas que movem os sistemas meteorológicos estão se enfraquecendo e, portanto, não são capazes de mover as ondas de calor com a mesma rapidez, segundo Zhang.

Uma mulher deitada no banco da Praia do Recreio, no Rio de Janeiro
Ondas de calor estão ficando cada vez mais perigosasnull TERCIO TEIXEIRA/AFP/Getty Images

Isso mostra "como as ondas evoluem e se movem em três dimensões e se deslocam por regiões e continentes em locais específicos", explica Kathy Jacobs, cientista climática da Universidade do Arizona que participou do estudo.

As mudanças se aceleraram principalmente a partir de 1997 e, além das causas humanas, o enfraquecimento da circulação do ar na atmosfera superior pode ter um papel importante, segundo o estudo.

"Uma das consequências mais diretas do aquecimento global é o aumento das ondas de calor", acrescenta Jennifer Francis, cientista do Woodwell Center.

As ondas de calor com períodos prolongados e excessivo causam impactos prejudiciais na saúde, na economia, na agricultura, na produtividade do trabalho e em incêndios florestais, entre outros.

"Os resultados sugerem que grandes ondas de calor contínuas, mais longas e mais lentas, causarão impactos ainda mais devastadores nos sistemas naturais e sociais no futuro se os gases de efeito estufa continuarem aumentando e nenhuma medida eficaz para a redução for adotada", concluíram os autores.

Zhang se preocupa ainda com os impactos desproporcionais nas regiões menos desenvolvidas, pois, por exemplo, uma onda de calor recorde que ocorreu na Europa em 2003 causou enormes perdas socioeconômicas e aproximadamente 70 mil mortes. Em lugares com menos estrutura, as perdas serão maiores.  "As cidades que não têm infraestrutura verde suficiente ou não têm muitos centros de resfriamento, em particular para a população desfavorecida, serão muito perigosas", alerta. 

lr/cn (afp,ap,ots)

"A fome é criada antes de a temperatura subir"

A necessidade de transformar a produção de alimentos em algo extremamente lucrativo acelera as mudanças climáticas no mundo e deixa milhares de seres vivos lutando contra a extinção, de acordo com a análise de Vandana Shiva, filósofa, física e diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Déli, Índia. 

Em Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, a autora revisita 40 anos de luta em defesa da soberania alimentar e contra o que chama de ligação entre o capitalismo predatório e a destruição da natureza. 

"Água potável, comida suficiente e poder respirar de forma limpa. Esses são os fluxos básicos que nos dão vida. E, quando se tenta privatizá-los e encerrá-los, então o que está sendo ameaçado é a própria possibilidade de viver. Neste ponto, se fizermos uma avaliação muito honesta, um grande número de nossos semelhantes, de outros seres humanos, bem como de outros seres da Terra estão ameaçados e vivendo uma crise de extinção”, diz Shiva.

Em entrevista à DW, a cientista afirma ainda que o Brasil precisa alterar a lógica da produção em larga escala criada pelo modelo de agricultura industrial globalizada, dando lugar à agricultura ecológica como forma de combater a alta dos preços.

"O erro foi apostar tudo na agricultura industrial, reduzindo a agricultura a uma manufatura, que coloca os combustíveis fósseis e obtém commodities. A globalização reduz ainda mais o sistema alimentar. Comíamos dez mil espécies de plantas e agora comercializamos milho, soja e algodão só porque são geneticamente modificados e trazem royalties para grandes empresas”, afirma.

DW: No seu novo livro, Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, a senhora revisita lutas pelo meio ambiente que combinam física quântica com ciência, tecnologia e política ambiental. Como a senhora vê a evolução desses temas desde que começou a se engajar?

Vandana Shiva: Meus valores são os mesmos. Minha orientação vem das mesmas coisas: a proteção da Terra, a defesa dos Direitos Humanos e a Justiça. Quando comecei, existia um lobby menor como, por exemplo, o madeireiro e da mineração, entre outros. Isso era muito pequeno comparado ao que temos hoje. 

Agora, à medida que a globalização e o neoliberalismo surgiram, passamos ao ponto de grandes empresas quererem controlar toda a vida na Terra através de padrões e organismos geneticamente modificados. Além das companhias, há também um punhado de bilionários utilizando dinheiro de fundos.

A diferença é a constante criação de poder, a globalização do poder e a tentativa de não deixar nenhum aspecto da vida humana livre na Terra. Antes, uma montanha seria ameaçada pela exploração madeireira. Hoje, todo o futuro do planeta está ameaçado por todas as forças da destruição.

Temos que lembrar que fazemos parte da Terra porque essa alienação é o que permite a extração de recursos e o deslocamento de pessoas. Crie nossa resiliência. Crie nossas alternativas e defenda todos os aspectos de nossas culturas.

A diversidade que tivemos no planeta respeitava a vida e é por isso que, neste momento, o colonialismo passa a declarar que todas as culturas indígenas são primitivas, mas são essas culturas que mostrarão o caminho para o futuro. Temos que desafiar a definição de primitivo e a missão civilizadora. Como podem se definir como civilizadores, se destroem o próprio futuro da humanidade?

Você cita o "bioimperialismo", o controle da água e das biotecnologias como um dos perigos do mundo atual. Por quê?

Como cientista e também como ser humano eu vejo que as ameaças são perigosas quando focam na base da vida. A questão da liberdade foi definida apenas como um direito civil, mas não como um direito ecológico de estar vivo.

Água potável, comida suficiente e poder respirar de forma limpa. Esses são os fluxos básicos que nos dão vida. E, quando se tenta privatizá-los e encerrá-los, então o que está sendo ameaçado é a própria possibilidade de viver. Neste ponto, se fizermos uma avaliação muito honesta, um grande número de nossos semelhantes, de outros seres humanos, bem como de outros seres da Terra estão ameaçados e vivendo uma crise de extinção.

Meu coração dói. Minha mente vai para a Amazônia. Você sabe que aí está o ecossistema mais vital do planeta. E são culturas sofisticadas que vivem há milhares de anos.

Hoje eles estão sendo expulsos para a mineração de ouro ou do plantio da soja geneticamente modificada. São as piores atividades humanas invadindo suas terras. A competição deles realmente ocorre neste ponto entre a vida e a morte. E a destruição é motivada pela ganância. 

Então, para mim, a vida está no centro de tudo e os recursos vitais que nos dão vida são um direito humano fundamental, mas é um direito para todos os seres porque todos precisam de água, todos os seres precisam respirar. Todos os seres precisam comer e ter comida. Então esses são os fluxos que nos conectam ao resto da vida. E é isso que temos que defender.

Você citou a região Amazônica e, por lá, nos últimos anos vimos um aumento do desmatamento para dar lugar a agropecuária e a mineração, e uma crise que impacta os povos originários, principalmente os yanomamis. Como podemos crescer economicamente, respeitando esses povos?

Penso que a ideia de que o crescimento, tal como foi inventado durante as guerras, é uma medida fundamental da nossa existência na Terra, é uma falácia dado que essa forma de crescimento foi criada para mobilizar recursos para a guerra.

O crescimento foi definido como retirar a riqueza das pessoas e a riqueza da natureza para montar exércitos maiores. Portanto, a ideia de uma economia para financiar a guerra não pode ser a base. Precisamos financiar a paz, incluindo a paz com a natureza.

Portanto, precisamos de medidas diferentes e é por isso que o movimento pelo decrescimento se tornou tão popular. Isso não significa que as pessoas devam comer menos. Isto não significa que as pessoas não devam ter água, mas significa que esta construção de crescimento permitiu a transferência da riqueza social para as mãos de poucos.

O crescimento não lhe diz como a riqueza flui. Não diz onde vai parar. É preciso uma medida para tratar isso como um benefício para todos. O crescimento da indústria do ouro e da indústria mineradora é, na verdade, um genocídio para esses povos. 

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas o preço dos alimentos pressiona a inflação geral. Como podemos mudar isso?

Acho que a maneira de mudar isso é voltar à verdadeira ontologia da comida. Você sabe, o que é comida? A comida é a base da vida. A comida é a moeda da vida que flui do solo para as plantas e para o nosso intestino e por isso é a conexão da nossa saúde. 

O erro foi apostar tudo na agricultura industrial, reduzindo a agricultura a uma manufatura, que coloca os combustíveis fósseis e obtém commodities. A globalização reduz ainda mais o sistema alimentar. Comíamos dez mil espécies de plantas e agora comercializamos milho, soja e algodão só porque são geneticamente modificados e trazem royalties para grandes empresas.

Nos primeiros dias, quando o Brasil queria permanecer livre de organismos geneticamente modificados, eu fui palestrar para membros do governo. Mas, eles acabaram introduzindo essas sementes e o Brasil se tornou uma das nações mais tóxicas, com enorme uso de pesticidas, doenças, etc. 

E como podemos mudar isso? Eliminando as ilusões de que os produtos químicos nos alimentam. Os produtos químicos destroem a vida. A agricultura é um processo vivo. E a maneira de produzir mais alimentos é regenerar o solo vivo, regenerar a biodiversidade e regenerar os ecossistemas.  

Temos quatro empresas de sementes e agroquímicos mundiais que tentam definir o modelo de como nos alimentamos. Não. Eles são um cartel envenenado. Sua especialidade é fazer venenos e venenos matam.

O que precisamos é de alimentos para a saúde. E então precisamos mudar do modelo de agricultura industrial globalizada à agricultura ecológica e, finalmente, precisamos definitivamente nos afastar das cadeias de abastecimento globalizadas. Isso está matando o mundo de fome, a diversidade de sistemas alimentares locais que fornecem alimentos para todos.

Petróleo ameaça onças e maior manguezal do mundo na Amazônia

Chegadas e partidas da ilha de Maracá, na costa do Amapá, são complexas. Só os barqueiros mais experientes sabem o momento de atracar neste espaço de terra no Atlântico, influenciado por marés que sobem e descem até 12 metros duas vezes ao dia.

Eram 22h quando a reportagem se aproximou da margem, cruzando o igarapé Inferno, acompanhando servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A ilha é uma unidade de proteção integral, chamada de Estação Ecológica Maracá-Jipioca.

O trajeto naquela noite passaria pelo igarapé Purgatório. A expectativa era avistar os únicos moradores carnívoros permanentes da ilha: onças pintadas. Na escuridão, os olhos de coruja, jacaré e arapapá refletiam a luz da lanterna lançada na mata. Na água, algas bioluminescentes brilhavam como um pisca-pisca quando encontravam o casco do barco.

A ilha localizada na bacia marítima da Foz do Amazonas tem uma das maiores concentrações de onça pintada do mundo. Cerca de 175 quilômetros mar adentro, a indústria do petróleo aguarda liberação para abrir uma nova fronteira de exploração.

A situação preocupa quem vive, cuida e pesquisa a região, que tem as correntes marítimas mais fortes do país. Ainda não se sabe, por exemplo, qual seria o impacto na costa amazônica em caso de um vazamento de petróleo.

"Não existem estudos suficientes, nem embarcação apropriada. Um derramamento coincidindo com a maré cheia vai atingir os manguezais, os lagos, os campos inundados, seria impossível retirar este óleo", diz Iranildo da Silva Coutinho, analista ambiental do ICMBio e chefe da Estação Ecológica Maracá-Jipioca.

Medo do impacto

O pedido para perfurar poços de petróleo na bacia marítima da Foz do Amazonas, também chamada de Margem Equatorial, está em análise. A brasileira Petrobrás tenta destravar a licença junto ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), depois da última negativa que recebeu, em maio de 2023.

Arapapá em arvóre
Exploração de petróleo ameaça animais da região, como o arapapánull Nádia Pontes/DW

O plano da petroleira prevê um investimento de 3,1 bilhões de dólares na região até 2028 e abertura de 16 poços – a começar pelo o FZA-M-59. Em 2018, a francesa Total, que também estava na corrida, desistiu da empreitada após a negativa do Ibama, na sequência da descoberta de um recife de corais até então desconhecido pela ciência.

Em Oiapoque, o município mais ao Norte do país, Luene Karipuna é a principal fonte de informação para seu povo sobre todo esse processo. Os moradores da Terra Indígena Juminá são os que estão mais próximos do bloco 59, a cerca de 140 a 150 quilômetros de distância do projeto.

"Há pouca informação. A propaganda diz que o empreendimento seria a salvação para todos os problemas, mas a gente não acredita. Temos medo de como seremos impactados, isso traz muita traz insegurança e dúvida para o território e para nossa costa", diz Luene à DW, às margens do rio Flexal, na cidade de Amapá, base para acessar a ilha de Maracá.

Um mergulho no desconhecido

Luene acabara de desembarcar de uma expedição pela costa quando conversou com a DW. Ela passou dias a bordo do veleiro Witness, do Greenpeace, que navega por pontos estratégicos colhendo dados científicos e depoimentos dos moradores sobre esta região ainda desconhecida.

Luís Roberto Takiyama, pesquisador do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa) também passou dias embarcado. Para investigar as correntes marítimas da região, ele soltou derivadores no mar, ou seja, boias de 20 centímetros que ficam na superfície e simulam a dispersão de poluentes.

"Já se sabe que há a possibilidade de um vazamento de petróleo chegar na costa. A ilha de Maracá, que é isolada, recebe muito lixo que vem do mundo todo, trazidos pelos ventos e correntes. Temos muita preocupação com esta área costeira, que tem as maiores marés do Brasil e a maior área contínua de manguezal do mundo", explica Takiyama. "Nossa intenção é contribuir para aumentar o conhecimento", adiciona.

A geóloga Valdenira Ferreira dos Santos foi uma das primeiras a apontar a alta sensibilidade da costa amazônica ao derramamento de petróleo. Em 2011, ela coordenou um esforço para localizar as áreas ecologicamente sensíveis à poluição num projeto chamado de Cartas de Sensibilidade a Derramamentos de Óleo (Cartas SAO).

"A costa é baixa, tem o cinturão de mangue e é marcada pela macromaré. A sensibilidade é alta não só no Amapá, mas em toda a costa da foz do Amazonas. Isso significa que, se o petróleo chegar ali, é quase impossível de limpar", afirma Santos.

O perigo de um desastre, diz a geóloga, já ronda a região antes mesmo da abertura dos poços. É que o tráfego de embarcações transportando petróleo já é intenso. "O risco é real e não estamos prestando atenção. Com uma possível exploração, o tráfego de navios vai aumentar ainda mais. Não há planos de contingência para a região em caso de vazamento", alerta Santos. "A gente teve muito medo de aquele vazamento que aconteceu na costa do Nordeste em 2019 chegar aqui", revela.

O que diz a Petrobrás

A Petrobras, no entanto, afastou o risco de vazamentos caso a exploração do poço 59 seja autorizada pelo Ibama. "Hoje, com todo o sistema de segurança operacional, com todos os procedimentos operacionais, com todos os equipamentos que são o estado da arte para a perfuração de poços, a probabilidade de termos vazamento que gere dano ambiental é remotíssima", afirmou a gerente de Licenciamento e Meio Ambiente da Petrobras, Daniela Lomba, à DW.

Neste momento do projeto, afirma a Petrobras, os povos indígenas que moram na costa não serão consultados. O projeto em análise pelo Ibama, diz Lomba, trata da perfuração de poço em fase de pesquisa exploratória, para avaliar se existe ou não petróleo ou gás.

"Quando a gente olha as características do nosso projeto, que é a perfuração de um poço distante da costa em que a gente não está trazendo nenhuma infraestrutura nova, como porto ou aeroporto, não se aplica consulta prévia aos povos indígenas", diz Lomba. A Petrobras alega que o momento adequado para a consulta prévia às comunidades sobre a atividade seria após as descobertas de óleo e gás, na fase de desenvolvimento da produção, caso a atividade traga impactos diretos.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê que povos indígenas e comunidades tradicionais sejam consultados sempre que alguma obra, ação, política ou programa afete essas populações – independentemente de se tratar de iniciativa pública ou privada. É a chamada consulta livre, prévia e informada, adotada no país na forma do decreto 10.088, de 05 de novembro de 2009.

Em 2015, uma portaria interministerial estabeleceu que a necessidade da consulta prévia tem que ser apresentada no momento inicial do processo de licenciamento ambiental pelos órgãos que emitem a licença, o que não foi o caso no processo atual. Consultado, o Ibama não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Estudo falho

O oceanógrafo Nils Edvin Asp Neto, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), passou quase um ano decifrando as cerca de 5 mil páginas referentes ao Estudo de Impacto Ambiental que a Petrobras apresentou ao Ibama. A empresa brasileira "herdou" o estudo da britânica BP, que havia pedido anteriormente autorização para explorar o mesmo bloco 59.

A Petrobrás afirma, por exemplo, que as correntes marítimas seguem direção em sentido contrário à costa brasileira. Segundo Asp, o estudo de impacto ambiental, e mesmo o atual conhecimento científico da região, é bastante limitado. "A simulação de eventuais vazamentos feita diz que o petróleo não chegaria na costa, mas com a ação das ondas e fortes marés na região isso é possível e até mesmo provável", analisa.

Veleiro Witness
Repórter embarcou a bordo do Witness a convite do Greenpeacenull Nádia Pontes/DW

Segundo a avaliação técnica do especialista, essa falha é suficiente para o veto ao licenciamento. "Quando se diz que o petróleo não chega na costa, a empresa não precisa, por exemplo, oferecer planos de contingência para os ecossistemas daquela região em caso de vazamento", explica o oceanógrafo.

O consenso entre os pesquisadores que atuam no Norte do país é que há muitas lacunas de conhecimento sobre a costa amazônica. O financiamento de pesquisas nesta parte do país é baixo. Ciente desta brecha, a Petrobras, ao mesmo tempo em que busca autorização para extrair petróleo, planeja uma série de editais para patrocinar pesquisas científicas.

"Petróleo não combina com a Amazônia"

O veleiro Witness, do Greenpeace, também quer contribuir para a coleta de dados científicos sobre as correntes oceânicas superficiais. A organização, fundada em 1971, não aceita dinheiro de empresas e se financia com doações de pessoas físicas.

"Estamos num momento de transição energética, devemos investir em energias renováveis. É um contrassenso o presidente Lula assumir esse discurso nas conferências do clima e, ao mesmo tempo, apoiar um projeto de exploração de petróleo numa região tão sensível como essa", pontua Enrico Marone, porta-voz de oceanos do Greenpeace, a bordo do veleiro.

Iranildo da Silva Coutinho, chefe da Estação Ecológica Maracá-Jipioca, defende que a área seja melhor conhecida antes de qualquer passo. "É preciso saber os valores que ela tem: sentimental, ecológico, econômico. Temos que entender como funcionam os serviços ambientais e como eles podem ser valorados e trazer benefícios para a região sem necessariamente gerar o efeito drástico que a exploração de petróleo pode trazer", diz.

Luene Karipuna diz saber que muitos são a favor da chegada da indústria petroleira na região com a expectativa de que haverá emprego e mais dinheiro circulando. Mas para ela e seu povo, o petróleo não é bem-vindo.

"O petróleo não combina com o nosso modo de vida, com a biodiversidade, não combina com tudo o que vem acontecendo no Brasil e no mundo em relação às mudanças climáticas", explica a sua oposição, lembrando que a queima de combustível fóssil é a principal fonte de gases de efeito estufa, que aquecem o planeta e aceleram as mudanças climáticas.

*A repórter embarcou a bordo do Witness a convite do Greenpeace.

Dessalinização: Opção viável para a escassez de água?

Desde os marinheiros da Grécia Antiga que ferviam a água do mar até os romanos que usavam tubos de barro para filtrar o sal, tornar a água salgada potável por meio da dessalinização tem uma longa história.

As formas modernas dessa técnica milenar, no entanto, são agora o "presente e o futuro do enfrentamento da escassez de água", segundo Manzoor Qadir, vice-diretor do Instituto Universitário das Nações Unidas para Água, Meio Ambiente e Saúde.

Embora 70% da superfície da Terra seja coberta por água, apenas cerca de 1% dos 326 milhões de trilhões de galões – ou seja, 1.260 milhões de trilhões de litros – da água do planeta é potável. Um recurso limitado e cada vez mais escasso.

Populações em crescimento, água doce distribuída de forma desigual e secas cada vez frequentes, associadas às mudanças climáticas, estão levando estiagem e sede a muitas partes do mundo.

Um quarto da população mundial vive em países que enfrentam "estresse hídrico extremo", que pode ser definido como um local que usa pelo menos 80% de todo o seu abastecimento de água durante um ano. E isso pode levar esses lugares ao risco de ficarem sem água, inclusive forçando governos a restringir severamente o fornecimento.

Mesmo em cenários climáticos otimistas para limitar o aquecimento global, projeta-se que 1 bilhão de pessoas estejam nessa situação até 2050.

Por esse motivo, muitos países já complementam seus suprimentos de água importando líquidos, reciclando águas residuais ou por meio de dessalinização.

Indústria em crescimento

Apesar das críticas em relação aos custos, ao alto consumo de energia e ao impacto ambiental, especialistas dizem que a dessalinização "é uma indústria em crescimento" que tem progressivamente se expandido nas últimas duas décadas.

"E o motivo é que a escassez de água está instigando isso. Há cada vez mais usinas de dessalinização surgindo e sendo solicitadas", afirma Qadir.

As usinas de dessalinização removem o sal da água usando destilação térmica, que envolve o aquecimento do líquido e a coleta do vapor, ou por meio de osmose reversa, em que a água é filtrada à medida que é empurrada por uma membrana semipermeável. Atualmente, 56 bilhões de litros de água dessalinizada podem ser produzidos todos os dias, o que equivale a cerca de 7 litros por pessoa no planeta.

Das cerca de 16 mil usinas em operação em todo o mundo, 39% delas estão no Oriente Médio, que, juntamente com o norte da África, é a região com maior escassez de água do mundo.

Em termos globais, apenas cerca de 0,5% de toda a água utilizada vem da dessalinização. Mas em países como Qatar e Bahrein, o número é bem maior: 76% e 56%, respectivamente.

Segundo Qadir, ainda que formas alternativas de obtenção de água potável possam desempenhar um papel importante, como a indução de chuvas artificiais ou o transporte de icebergs para regiões áridas, elas ainda não conseguem atender totalmente à demanda mundial.

Cada vez mais eficiente

A dessalinização precisa de muita energia, e a maior parte dela vem de usinas elétricas movidas a combustíveis fósseis que emitem gases de efeito estufa.

Um estudo realizado em 2021 concluiu que as quatro usinas de dessalinização do Chipre, o país mais quente e seco da União Europeia (UE), foram responsáveis por 5% do consumo total de eletricidade e 2% das emissões de gases de efeito estufa. As usinas abastecem a pequena nação insular com cerca de 80% de sua água potável.

O aumento da eficiência energética, no entanto, é um dos fatores que impulsionam o crescimento do setor, de acordo com Hugo Birch, editor de dessalinização e reaproveitamento de água da Global Water Intelligence, uma plataforma de informações dessa área.

A maioria das novas usinas de dessalinização usa osmose reversa em vez de processos térmicos, o que é muito mais eficiente em termos de energia, segundo Birch. Uma mudança que pode, potencialmente, reduzir pela metade os custos de eletricidade.

Estimativas apontam que a energia necessária para a dessalinização por osmose reversa caiu quase 90% entre 1970 e 2020. Previsões indicam que nos próximos 20 anos os avanços tecnológicos podem reduzir os custos da água dessalinizada em 60%.

Disponível para todos?

Embora os custos de produção de água dessalinizada tenham diminuído significativamente (para cerca de US$ 0,50 por metro cúbico atualmente), esse "ainda é um negócio de países ricos", conforme Qadir. "O principal problema é que ainda não é acessível para países de baixa renda."

Mais de 90% da dessalinização é realizada em países de renda média-alta e alta. E a previsão é de que regiões de países pobres, como a África Subsaariana, devem se tornar "pontos críticos" de escassez de água até 2050.

Embora pequenas usinas de dessalinização movidas a energia solar ou eólica estejam sendo desenvolvidas nessas áreas, Qadir não acredita que a água esteja chegando às comunidades marginalizadas, que são justamente as que mais precisam.

Poluição ameaça ecossistemas marinhos

Uma das principais preocupações ambientais com a dessalinização é a descarga da salmoura no meio ambiente, o que pode causar "poluição marinha, poluição da água do subsolo e salinização do solo", aponta Argyris Panagopoulos, engenheiro químico da Universidade Técnica Nacional de Atenas.

Estima-se que 70% da produção global de salmoura seja proveniente do Oriente Médio, a mesma região que também produz uma grande quantidade de água dessalinizada.

Birch afirma que isso pode ser explicado, em grande parte, pelo fato de as usinas de dessalinização do Oriente Médio usarem principalmente água do mar, que é mais salina do que a água salobra usada com frequência, por exemplo, nos Estados Unidos. Ele acrescenta que essas usinas geralmente têm um mecanismo de difusão integrado para garantir que a salmoura não seja despejada em uma única área.

Novas tecnologias de tratamento de salmoura estão surgindo, o que poderia ajudar a reduzir o volume de poluição, além de recuperar materiais valiosos, como minerais, sais e metais, observa Panagopoulos.

Futuro sustentável?

Em relação ao tratamento da salmoura e à consequente mudança para fontes de energia verde, ainda há espaço para melhorias, de acordo com Panagopoulos: "A dessalinização deu passos significativos nos últimos anos, mas ainda há desafios a serem superados antes que ela possa ser considerada totalmente sustentável do ponto de vista ambiental."

Ainda assim, Qadir acredita que a dessalinização irá desempenhar um papel fundamental no enfrentamento da futura escassez de água pelo fato de não ser afetada pelas mudanças climáticas: "Independentemente do fato de haver chuvas ou secas... Há a água do mar... Então, essa é, na verdade, a melhor parte da dessalinização."

O pesquisador que pisou em cobras para estudar suas picadas

Um pesquisador do Instituto Butantan, em São Paulo, optou por um método incomum para descobrir quando e por que cobras peçonhentas dão picadas: ele pisou ou chegou muito perto desses animais dezenas de milhares de vezes.

O biólogo João Miguel Alves Nunes usou mais de 100 jararacas em sua pesquisa, uma espécie de serpente encontrada em toda a América do Sul e responsável por picar cerca de 20 mil pessoas por ano. Os resultados obtidos no estudo foram publicados na prestigiada revista científica Nature.

O que o estudo mostrou?

Em entrevista à revista Science, o brasileiro afirmou que, até então, havia poucas pesquisas sobre os fatores que levam as cobras peçonhentas a morderem.

Alves Nunes explica que seu método de pisar nos animais ou muito perto deles –  com botas especiais de proteção – permitiu-lhe refutar a suposição comum de que as jararacas mordem apenas quando são tocadas.

"Eu pisei perto das cobras e também levemente em cima delas", conta o pesquisador. "Não coloquei todo o meu peso sobre o pé, portanto não machuquei as cobras. Testei 116 animais e pisei 30 vezes em cada animal, totalizando 40.480 pisadas."

A probabilidade de uma jararaca morder foi inversamente proporcional ao tamanho dela, de acordo com Alves Nunes. Em outras palavras, quanto menor o animal, maior a chance de ele cravar as presas em alguém.

A fêmea da espécie também é mais agressiva que o macho, segundo o estudo, especialmente quando são jovens e durante o dia.

As cobras ainda eram mais propensas a morder quando o tempo estava mais quente, que é quando os répteis de sangue frio estão mais ativos e têm mais energia.

As chances de ser mordido também aumentam se as cobras são tocadas na cabeça, em vez de no meio do corpo ou na cauda, segundo a pesquisa.

Qual a importância do estudo?

Alves Nunes afirma que as informações obtidas com o estudo podem ajudar a mitigar o problema das picadas de cobra no Brasil. "Com nossas novas descobertas, podemos prever onde as picadas podem ocorrer e planejar melhor a distribuição do antiveneno", disse ele.

"Combinando nossos dados com os dados de outros estudos que mostram a distribuição de cobras, podemos identificar os locais onde os animais têm maior probabilidade de serem agressivos. Por exemplo, locais mais quentes com uma população maior de cobras fêmeas devem ser prioridade para a distribuição de soro antiveneno."

A jararaca é uma das principais responsáveis por acidentes com picadas no país, representando cerca de 90% dos atendimentos relacionados a serpentes peçonhentas.

Pesquisador alérgico a antiveneno

Alves Nunes conta que se sentiu "100% seguro" ao pisar nas cobras ou perto delas por conta das botas que usava –  que, segundo ele, foram escolhidas com base na orientação de colegas experientes do instituto.

No entanto, embora as jararacas não tenham conseguido perfurar as botas, ele acabou sendo mordido ao fazer experimentos com uma cascavel e teve de receber tratamento no hospital.

"Felizmente, eu estava no melhor lugar que poderia estar", disse o pesquisador, referindo-se ao instituto que é líder no desenvolvimento de soros antiveneno.

Mas a mordida revelou uma característica infeliz para um pesquisador de cobras: "Infelizmente, descobri que sou alérgico tanto ao antiveneno quanto às toxinas das cobras. Tive que tirar uma licença médica de 15 dias", contou ele à Science.

Por outro lado, mais uma vez demonstrando sua paixão pelo conhecimento a qualquer custo, Alves Nunes está transformando o infortúnio em uma boa causa científica.

"Agora estou comparando a força da mordida de cascavéis e jararacas com a resistência de diferentes materiais e calçados a elas."

"A gente cria os animais para matar. Mas não para ver sofrer"

Do telhado de casa, onde se abrigava para fugir água que avançava em sua propriedade em Cruzeiro do Sul (RS), Mauro Gilberto Soares, 61 anos, viu um porco nadando contra a correnteza por cerca de uma hora. "Parecia que ele pedia socorro. E me senti culpado por não oferecer um lugar seguro", lamentou o produtor rural. Soares, sua família e alguns vizinhos foram resgatados após passarem uma noite no sótão da residência, mas praticamente todos os animais de produção foram levados pela força do rio Taquari.

Assim como os humanos, os animais têm sofrido com as enchentes que assolam o estado gaúcho. O resgate do cavalo Caramelo, em Canoas, que passou quatro dias ilhado e foi retirado de cima de um telhado, assim como o salvamento de inúmeros bichos de estimação, têm comovido pessoas de todo o Brasil e do mundo.

Já foram resgatados cerca de 12 mil animais, segundo o governo do estado, a maioria cachorros e gatos, mas ainda é incalculável o número de bichos de produção da pecuária perdidos nas enchentes. No campo, há uma mistura de dor pela morte de vacas, bois, touros, porcos e galinhas e pelos prejuízos dos produtores rurais.

Mauro Gilberto Soares demorou a sair de sua propriedade justamente por causa dos animais de criação – 44 vacas e 15 porcos. Abriu o chiqueiro e tentou colocar os bichos em um lugar mais seguro. Nada adiantou. "Foi aterrorizante. A gente cria os animais para matar. Mas não para ver sofrer. Dói muito, é muito triste", contou.

As mortes e a fome

A Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul informou, por e-mail, que "liberou a movimentação de animais que estavam em áreas de risco de alagamento e junto com voluntários tem auxiliado nos transportes desses animais quando necessário".

Disse também que o Comitê de Crise da Causa Animal "resgata os animais de produção quando são encontrados com os demais, mas essa ação tem sido feita mais pelos órgãos de segurança, ONGs e entidades, com o apoio da Secretaria da Agricultura quando solicitado, como aconteceu na região de Guaíba e Eldorado do Sul."

De acordo com a bióloga Patricia Tatemoto, PhD em Medicina Veterinária e gerente de pesquisa e bem-estar animal da ONG Sinergia Animal, há evidências científicas robustas de que ao menos todos os animais vertebrados sentem dor e são capazes de entender que estão em situações desafiadoras. Embora seja difícil mensurar o tamanho do sofrimento dos bichos nas enchentes, a especialista chama atenção para aqueles que vivem confinados.   

"Grande parte dos animais na pecuária são criados em altas concentrações e são impossibilitados de fugir ou de buscar abrigo em áreas mais elevadas, como fariam na natureza. Eles não têm opção. Ficam presos em galpões ou até mesmo em gaiolas individuais, como é o caso das porcas gestantes e de centenas de bezerros na indústria do leite. Em caso de enchente, esses animais podem agonizar por horas ou até dias antes de se afogar", explica a bióloga.

Homem com três cachorros na carroceria de uma caminhonete
Mais de 12 mil animais, a maioria gatos e cachorros, foram resgatados das enchentesnull ANSELMO CUNHA/AFP

Além das mortes, as consequências para o bem-estar animal e para os produtores rurais vão durar meses, analisa a professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Liris Kindlein. Os animais que conseguiram fugir de áreas alagadas, por exemplo, provavelmente perderam peso, ficaram desidratados e sofreram estresse.

Além disso, devido à falta de logística, com estradas obstruídas e falta de grãos, muitos animais correm o risco de passar fome. "É um grande problema. Eles vão ter jejum, vão passar fome. Vai afetar o bem-estar animal com certeza. Quando se coloca comida, eles competem, então tem mais arranhões, prejuízos de bem-estar animal", frisa Kindlein. 

Segundo o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Eugênio Zanetti, há uma campanha para que produtores de outros estados enviem pré-secados, uma espécie de pasto armazenado em rolos que serve de alimento. "Há muitas regiões onde não têm água, têm lama, e o gado não tem nem onde colocar a boca. E os silos de silagem foram perdidos", explica Zanetti.

O clima e os prejuízos

Um estudo do Observatório do Clima lançado em outubro do ano passado estimou que a produção de alimentos representou, em 2021, 73,7% das 2,4 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa lançadas pelo Brasil na atmosfera. O principal poluente são os desmatamentos usados em sistemas alimentares, seguidos pela agropecuária, principalmente o rebanho bovino.

Paradoxalmente, o setor é prejudicado pelos efeitos das mudanças climáticas causadas pela emissão de gases do efeito estufa, como pode ser visto no Rio Grande do Sul. Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontam que a agricultura e a pecuária estão entre os principais prejudicados, com R$ 1,8 bilhão e R$ 207,8 milhões de prejuízos, respectivamente – os números sobem em cada nova atualização.

Quanto tempo será preciso para reconstruir o RS?

Em Taquari, por exemplo, 83 mil aves morreram afogadas na Avicampo Ovos. O sócio-proprietário Fabio Frühauf contou que a empresa investiu no ano passado em sistema automatizado e fábrica de rações. "Foram 10 anos de trabalho perdidos em um dia", afirma. Eles estimaram um prejuízo de R$ 4 milhões. Agora, a empresa está pensando em investir em uma nova área. 

Para o vice-presidente da Fetag-RR, Eugênio Zanetti, é preciso um estudo aprofundado para analisar os riscos para as propriedades rurais. "Teve áreas que em setembro, novembro e agora foram levadas embora. Tem que pensar em realocar esses agricultores para que eles possam reconstruir em um local mais seguro. Mas, sem dúvida, o produtor vai precisar de muita ajuda, com linhas de crédito e juros subsidiados para poder reconstruir".   

O produtor rural Mauro Gilberto Soares já saiu da localidade atingida pelas enchentes, na Linha Lotes, nas proximidades do rio Taquari. Agora, está em uma propriedade que sua esposa recebeu de herança, em um local mais alto do município, mas menor e sem a infraestrutura adequada. Entre os animais, levou a única que sobrou, uma leitoa moura, uma raça mais rústica que corre risco de extinção no Brasil. "Ela subiu nos galpões. Não sei como conseguiu chegar lá em cima sem se afogar", contou. 

O que fazer no futuro

Uma das inúmeras questões que ficam das chuvas no Rio Grande do Sul é o que fazer para salvar os animais de criação e garantir o seu bem-estar durante tragédias climáticas. A pasta da Agricultura gaúcha informou que "atua com planos de contingência que visam a defesa sanitária animal, englobando enfermidades como febre aftosa, peste suína, gripe aviária, entre outros", sem especificar a situação das enchentes. O Ministério da Agricultura e Pecuária não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Foto mostra vista aérea de duas pistas de uma rodovia parcialmente alagada, com muita água dos dois lados
Rodovias alagadas ou destruídas impedem que alimento chegue aos animais de produção, que poderão passar fomenull Nelson Almeida/AFP

A bióloga Patricia Tatemoto acredita que sejam necessárias algumas medidas. Para a especialista, deveria haver um sistema de alerta eficiente para que os produtores rurais pudessem ser informados com antecedência dos eventos extremos e, no mínimo, pudessem deixar seus bichos livres.

Além disso, a bióloga sugere a formação de uma rede articulada entre os produtores. "Com a informação sobre os eventos extremos, eles poderiam embarcar seus animais de áreas de risco e levá-los para fazendas mais resilientes. Seria um primeiro passo. E daria para pensar já", reflete.

Na cidade gaúcha de Triunfo, há uma solução parecida. Há 20 anos, a empresa Ramos Transporte Aquaviários, contratada pela prefeitura, resgata animais em algumas ilhas no rio Jacuí. "Como na região desembocam os rios Taquari e Jacuí, quando chove forte no centro do estado a gente avisa os produtores que vai ter enchente e começa os salvamentos", conta Luís Henrique Velho Ramos, 30 anos.

Mesmo que desta vez a enchente tenha sido mais forte, a empresa tirou cerca de 600 animais, principalmente bois e vacas, usando balsa e rebocador. Na última viagem que fizeram, no dia 9 de maio, auxiliaram em um salvamento que não fazia parte do contrato com a prefeitura.

Na ilha, bois e vacas estavam quase completamente encobertas pela água, tendo que levantar a cabeça para poder respirar. Conseguiram tirar 80 indivíduos, alguns com mais de 500 quilogramas. Como eram cinco da tarde e escurecia, o que dificultava a navegação no rio, precisaram deixar para trás cerca de 20 animais. "A gente não gosta de ver bicho morrer", lamentou Ramos.

Por que o Rio Grande do Sul está tão exposto às catástrofes

Ainda não se sabe a dimensão da tragédia provocada pelas inundações históricas que começaram na região central do Rio Grande do Sul no início da semana e que chegam à capital, Porto Alegre. Equipes de resgate não conseguiram adentrar muitos dos locais atingidos, afirma a Defesa Civil estadual à DW.

Até este sábado (04/05), mais de 57 mortes em decorrência das enchentes haviam sido confirmadas pela Defesa Civil. Outros 67 seguem desaparecidos. Nos últimos dias, metade da chuva prevista para todo o ano de 2024 caiu no estado, segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB).

Em Porto Alegre, voluntários recebem quem chega das ilhas do entorno. Embarcações transportaram para a capital mais de 500 pessoas evacuadas. Um centro de treinamento esportivo se transformou em abrigo provisório.

"A situação está terrível. A gente está sem estrutura, no escuro praticamente. Tem muita gente vindo para cá", diz à DW Paula Brust, uma das voluntárias que acolhem quem chega.

Para quem atua no monitoramento da situação, a perplexidade e o cansaço pelas horas ininterruptas de trabalho são grandes.

"Estamos ainda sem acreditar no volume de chuvas registrado. Nós pensamos até, inicialmente, que nossos equipamentos estavam com defeito", resume Franco Buffon, superintendente da região Sul do SGB.

A situação é considerada tão grave que, mesmo se não chovesse mais nos próximos dias, o quadro seguiria muito dramático. A previsão é que mais chuvas atinjam a região.

Fuga e choque

Em Porto Alegre, o nível do Lago Guaíba atingiu marca recorde, superando os 5 metros neste sábado, nível acima do da cheia histórica de 1941. Naquele ano, a água atingiu a marca de 4,76 metros e deixou 25% da população da cidade desabrigada.

O Guaíba, que até cruzar a capital é chamado de Rio Jacuí, recebe toda a água que cai no centro do estado. Porto Alegre é a última cidade do percurso até o seu deságue no Atlântico.

Em municípios menores ao longo de rios que fazem parte da mesma bacia hidrográfica, comunidades inteiras parecem ter sido varridas do mapa. Em Estrela, o Rio Taquari chegou à marca recorde de 33 metros. Isso acontece apenas seis meses depois de ele ter alcançado sua cota máxima, que era de 29,53 metros. Quando a água ultrapassa os 19 metros, o rio extravasa e atinge casas e uma indústria próxima.

Vista aérea da cidade de Porto Alegre alagada com águas do Lago Guaíba
Nível do Lago Guaíba atingiu maior nível em 83 anos e invadiu centro de Porto Alegrenull Gilvan Rocha/Agencia Brasil/picture alliance

Com a catástrofe, muitos equipamentos que fazem medição se perderam. Buffon, do SGB, conta que postes instalados às margens dos rios provavelmente foram levados pela enxurrada, e sensores que ficam em contato com a água são atingidos por grandes objetos que vão parar na água: rochas, veículos, escombros de casas.

Em São Leopoldo, banhada pelo Rio dos Sinos, também parte da bacia hidrográfica do Guaíba, famílias que sempre acreditaram morar em bairros seguros deixam suas casas. A bióloga Daiana Schwengber correu de Porto Alegre para ajudar os pais no interior e agora todos estão abrigados na casa de amigos.

"A água subiu muito rápido. Começamos a bater palma em frente à casa das pessoas para ajudar a Defesa Civil a alertar as pessoas para que todos saíssem. Foi muito triste. Muitas pessoas idosas, todos chocados", relatou Schwengber à DW sobre a situação em São Leopoldo.

Sobreposição de fenômenos climáticos

Marcelo Seluchi, coordenador do Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, Cemaden, diz que a semana de chuva era aguardada, mas não no volume registrado. A explicação está numa sobreposição de fenômenos climáticos que transformou a região central do Rio Grande do Sul num "alvo".

Uma onda de calor estranha para o mês de maio no centro do Brasil, causada por área de alta pressão, funciona como uma "parede" e não deixa as frentes frias que vêm do Sul avançarem. Como houve uma sequência de frentes frias barradas, toda a água se precipitou no Rio Grande do Sul e causou chuvas por horas e horas consecutivas. Ao mesmo tempo, ventos que chegam do Norte e transportam a umidade da Amazônia pelos chamados rios voadores encontraram o mesmo alvo.

"Provavelmente, há influência ainda do El Niño que está desaparecendo agora em maio. As ondas de calor ainda estão intensificadas em função dele", avalia Tércio Ambrizzi, pesquisador do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, USP.

Para Seluchi, nenhum lugar do mundo resistiria a uma situação destas. "Talvez deveria haver planos de contingência, planos de prevenção, que são feitos na época seca. Não se faz de uma semana para outra. Isso, sim, está faltando", analisa.

Tragédia anunciada

Todos os alertas de ocorrência de eventos climáticos extremos têm sido ignorados pelo poder público no Rio Grande do Sul, segundo Miriam Prochnow, da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida, Apremavi.

"As cidades ignoram que isso tem que ser levado em conta quando se faz planejamento urbano. Não pensam em retirar pessoas de área de risco, permitem ocupação em áreas onde a enchente já chegou. É ignorar a crise climática solenemente", diz Prochnow à DW.

Karina Lima, geógrafa que pesquisa tempestades severas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, ressalta que o estado está numa zona muito afetada pelo El Niño e La Niña – e que os governantes sabem disso.

Pessoas andam sobre telhados de área alagada
Pessoas sobre telhados em Encantado: metade da chuva prevista para todo o ano de 2024 caiu no RS em apenas alguns diasnull Diego Vara/REUTERS

"Modelos matemáticos já preveem há muito tempo que o RS continuará a tendência de aumento da precipitação média anual e da precipitação extrema, ou seja, mais chuvas concentradas e severas. Com certeza se investe muito pouco em um estado que está tão vulnerável a eventos extremos", afirma Lima.

Para Clóvis Borges, diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), o Rio Grande do Sul perdeu há muitas décadas a resiliência para enfrentar os extremos climáticos.

"Foi o primeiro estado a cobrir todo território com propriedade agrícola. Eliminaram praticamente suas áreas naturais", diz Borges, lembrando que restam 7% da área original de Mata Atlântica no RS e que o bioma Pampas é um dos mais ameaçados.

"Uma fração das mortes, do prejuízo econômico que se vê agora, é por causa do descumprimento da legislação ambiental. Se a classe política continuar relegando isso, vamos passar por situações mais duras", prevê Borges.

"O negacionismo precisa ser deixado de lado, já que as catástrofes estão ficando cada vez mais intensas", diz Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

"Os atuais governos, tanto do estado quanto da prefeitura da capital e outras cidades do interior, estão sob comando de negacionistas climáticos. Isso fica exposto pelas políticas que eles encaminham”, declara Lacerda à DW.

Lacerda cita como exemplo um projeto de lei de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), aprovado na Câmara dos Deputados em março último. A medida autoriza o corte de vegetação nativa não florestal – como Pampa, parte do Cerrado e do Pantanal. Na prática, mais de uma área equivalente aos estados do Rio Grande do Sul e Paraná de mata nativa podem sumir do mapa se a lei passar no Senado.