"Não ser o único afetado é um fator protetor no trauma coletivo"

Quando a água arrastou casas e ceifou vidas no Rio Grande do Sul, quando subiu até o teto e impediu pessoas de trabalharem ou desfrutarem da segurança do lar, ela também provocou impactos profundos na saúde da mente. Muitas pessoas viram suas memórias afetivas e os frutos de anos de esforço desfazerem-se em poucos dias. Milhares estão desalojados ou desabrigados, sem saber quando vão poder retornar às suas casas e, muitas vezes, sem recursos para recomeçar.

"Para algumas pessoas, é muito mais do que algo material, é como se fosse a representação da sua vida. É como se a minha vida, as minhas memórias materiais, as lembranças dos meus filhos, dos meus nascimentos, tudo tivesse sido levado embora; e tudo foi, de alguma forma, levado embora", afirma o psicólogo Christian Haag Kristensen, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (NEPTE/PUC-RS).

O grupo capacita e orienta voluntários que prestam os primeiros socorros psicológicos às vítimas da enchente em diferentes abrigos na cidade de Porto Alegre e na região metropolitana.

Em diferentes medidas, a catástrofe tocou todos os gaúchos, que lidam agora com os sentimentos de ansiedade, impotência e angústia. 

Em entrevista, Kristensen explica os impactos da tragédia na saúde mental, as dimensões de um trauma coletivo, e como as pessoas e comunidades podem se fortalecer para enfrentar o momento. 

DW: Que efeitos na saúde mental um estresse traumático do nível das enchentes no Rio Grande do Sul pode causar?

No curto prazo, temos um grande evento estressor considerado primário: a ameaça à vida, o ser arrastado pela correnteza, o ferimento, ficar sem água, sem luz, sem comida. Mais adiante, ocorre um segundo impacto, um estressor secundário, que é a pessoa querer voltar para casa, mas não ter mais casa, não ter mais trabalho. Na dinâmica de eventos estressores climáticos extremos, um se soma ao outro.

O que vimos nas pessoas nessas primeiras semanas foram reações agudas de estresse que são até esperadas, como reações emocionais intensas; reações cognitivas como confusão mental e dificuldade em tomar decisão; reações físicas intensas como cansaço, fadiga, tensão muscular, além de um impacto nas relações interpessoais. Essas reações, que são até, digamos, normais para o momento, vão diminuir com o passar do tempo para a maior parte das pessoas, que aos poucos recuperarão seu funcionamento saudável. A maior parte das pessoas não vai adoecer.

Que emoções ou sintomas, se não receberem o devido cuidado, podem se agravar ou transformar-se em quadros crônicos?

Uma parte das pessoas vai manter reações muito intensas por muito tempo. E aí nós podemos já estar falando de sinais e sintomas que vão configurar transtornos mentais mais adiante. O que é mais comum em um médio prazo – daqui a 12 meses, aproximadamente – é um aumento nos quadros de ansiedade e transtorno de ansiedade.

Além disso, algumas pessoas já estão precisando de um nível de atenção em saúde mental especializado por estarem tendo quadros psicóticos, quadros dissociativos – que é quando a pessoa tem um certo rompimento com a realidade –, ou por estarem começando a fazer uso de substâncias como o álcool para lidar e aclamar o fator estressor, o que pode virar um problema crônico.

É importante lembrar que uma parte muito grande das pessoas já tinham problemas psicológicos prévios que agora se agravaram. Isso pode ocorrer até mesmo com aquelas que não foram diretamente afetadas pelas enchentes, mas estão em contato com as notícias e com o sofrimentos dos outros.

Que estratégias de enfrentamento ao trauma as pessoas podem usar? Tanto as que passaram diretamente pelos impactos das enchentes, como quem tem amigos que estão nessa situação crítica?

O primeiro passo é normalizar a resposta. É entender que eu passei, ou meu amigo passou, por algo muito grave, que representou um risco à vida, à integridade física, que já está promovendo um prejuízo imenso do ponto de vista de estrutura. Então, é normal que, frente a uma ameaça, eu possa ter pesadelos, pensamentos intrusivos; possa me sentir ansioso quando começa a chover, por exemplo, já que ativa uma memória dolorosa. Tudo isso é esperado. É importante dizer, até para si mesmo: olha, eu te entendo, está bem se sentir assim, a maioria das pessoas se sente assim nesse momento.

Outro ponto importante seria poder ter uma rotina – se não for a sua rotina de antes, alguma rotina. E também, aos poucos, poder ter alguma atividade física. Além disso, é fundamental se reconectar com o seu grupo de apoio: familiares, círculo de amigos, grupo da igreja, líder comunitário, etc. Também é benéfico não ficar exposto de forma excessiva a notícias e mídias sociais, vendo imagens da enchente. A memória que fica da situação traumática não precisa ser reativada o tempo todo, especialmente fora de um contexto terapêutico.

E como lidar com o sentimento de incerteza, já que muitas pessoas estão em abrigos e não sabem até quando vão ter de ficar lá?

A pessoa que passa por uma situação desse tipo fica com uma necessidade aumentada de segurança. E ela busca por certezas, e às vezes busca na relação com o voluntário ou o socorrista. Uma das piores coisas que se pode fazer na tentativa de ajudar o outro é prometer algo que você não pode cumprir, porque você não sabe o que vai de fato acontecer.

Aos poucos as incertezas vão diminuir – e para aqueles que não diminuir, é preciso aprender a tolerar a incerteza. Nós já praticamos isso constantemente nas nossas vidas. Nossa mente trabalha com ideias de futuro que não sabemos se de fato irão ocorrer.

Mas também é importante frisar que precisamos trabalhar no sentido de esperança: porque as coisas em algum grau irão, aos poucos, melhorar. Em algum grau, nós teremos reconstrução. Em algum grau, nós teremos um retorno a situações de normalidade.

Barco em uma rua inundada. A embarcação está lotada e muitas pessoas em volta, dentro da água, esperam por ajuda.
Centenas de pessoas tiveram de ser resgatadas em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegrenull Amanda Perobelli/REUTERS

E o sentimento de impotência, de querer fazer alguma coisa e sentir que não consegue ajudar, como lidar com a angústia que pode vir disso?

Eu acho que são três coisas: angústia, o senso de impotência, e a culpa. A angústia, em algum grau, nos move. E em um grau muito elevado, nos paralisa. Ter essa ansiedade de querer ajudar, que está na mesma direção de um desejo de ajudar o próximo, é uma das coisas mais importantes nesse momento.

Então, o que eu posso fazer? Talvez eu não vá até o Rio Grande do Sul entrar na água para socorrer pessoas, mas o que eu posso fazer? Uma doação? Posso fazer isso à distância? Posso ajudar a disseminar informações de boa qualidade? Posso ligar para o meu amigo que está no estado e perguntar como ele está? Aí temos que lidar com os limites de cada um, e não se sentir culpado porque não está contribuindo de uma certa maneira.

Vale ressaltar que estamos vivendo uma fase aguda da catástrofe. Nós vamos ter um longo caminho pela frente e muitos meses para poder ajudar.

Como uma comunidade lida com um trauma que é coletivo?

Um aspecto muito relevante é que há um "fator protetor" nessa coletividade. Traumas de natureza interpessoal – aquele dano que uma pessoa faz à outra – tendem a provocar prejuízos maiores do ponto de vista da saúde mental. Situações traumáticas como essa que nós estamos vivendo são muito impactantes, mas a ideia de que eu não sou o único afetado por isso, isso não aconteceu por algo que eu fiz ou deixei de fazer, é um grande fator protetor.

Eu acho que esse senso de comunidade é a base na qual vai se dar a reconstrução e a superação, inclusive psicológica, desse trauma que tocou a todos. A perspectiva de superação também é coletiva.

São os grupos que vão se reorganizar, os líderes comunitários, os agentes de saúde que conhecem cada uma daquelas pessoas. E eles, dentro de uma perspectiva de gestão pública de saúde mental, serão decisivos.

São muitas as perdas e os lutos. Nas comunidades que foram realmente arrasadas, como lidar com a perda das referências, da memória, da própria identidade?

Temos cenários muito distintos. Vai ter aquela comunidade onde as pessoas vão, aos poucos, retornar aos seus lares, limpá-los. Isso vai ser um longo processo, mas a sua casa está lá, a loja onde trabalhava está lá, o posto de saúde está de pé. Mas algumas comunidades foram devastadas, só sobraram escombros. Aí a atenção para a saúde mental deve ser muito maior.

Para algumas pessoas, é muito mais do que algo material, é como se fosse a representação da sua vida. É como se a minha vida, as minhas memórias materiais, as lembranças dos meus filhos, dos meus nascimentos, tudo tivesse sido levado embora; e tudo foi, de alguma forma, levado embora.

Nesses casos que são muito extremos – e não são poucos –, vamos precisar dar um novo significado ao que está sendo construído, de que isso possa representar em algum grau a superação, o esforço individual e coletivo. Será necessário um esforço grande de ressignificação.

Como já tivemos uma tragédia grave de chuvas no estado em 2023, existem relatos de crianças que entram em pânico quando começa a chover. Como ajudar os pequenos a lidar com esses gatilhos?

Em primeiro lugar, é importante a criança estar em um contexto de segurança. E muitos abrigos estão muito bem organizados para propiciar certo lazer às crianças. Outro aspecto importante é poder explicar aquilo para a criança, dizer: "Olha, a chuva, assim como o sol, faz parte." Mas quando a criança fica muito ativada, você pode até usar uma técnica de distração ativa, desfocar a atenção da criança para outro estímulo. E, eventualmente, até alguma técnica de relaxamento, como exercícios de respiração, adaptada de forma lúdica.

Historicamente, o Rio Grande do Sul é o estado com a maior taxa de suicídios do Brasil. De acordo com levantamento de 2020, esse número era de 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o dobro da média nacional. Que medidas serão necessárias para cuidar da saúde mental no estado?

Nesse momento temos a centralização desse cuidado na Força Nacional do SUS, que está trabalhando junto com a Secretaria Estadual de Saúde e as coordenadorias regionais das áreas mais afetadas, capacitando o quadro técnico do ponto de vista de saúde mental e já dispondo de voluntários – que são profissionais de saúde do SUS – para ficarem localizados naquelas regiões. Isso já está em curso, o que é algo muito positivo. O grande desafio, na minha opinião, nem é tanto agora, mas no longo prazo. Como é que a gente reconstrói os dispositivos de saúde mental nas comunidades mais atingidas? Isso será fundamental.

Alguns desses quadros de estresse pós-traumático e transtornos depressivos estão muito associados ao risco de suicídio. Algo que contribui tanto para a ideação quanto para a tentativa de suicídio é a desesperança. Então é um momento de estar atento e dizer para as pessoas que nós podemos ter esperança, de que muitas dessas experiências emocionais negativas são transitórias.

 

Em meio à enchente no RS, corte internacional virá ao Brasil avaliar crise climática

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) realizará no Brasil, a partir da próxima sexta-feira (24), uma série de audiências públicas como parte de um processo em que decidirá qual deve ser o papel do Estado diante do impacto das mudanças climáticas.

O convite à corte, cuja sede fica na Costa Rica, partiu do governo brasileiro.

A viagem coincide com o momento em que o Rio Grande do Sul enfrenta a pior catástrofe climática de sua história – cuja magnitude, segundo especialistas, é resultado das mudanças climáticas e do desmonte de políticas de proteção ambiental e de prevenção de desastres.

Segundo a corte, a visita é uma oportunidade de "testemunhar em primeira mão as consequências do impacto da crise climática nas regiões mais vulneráveis".

A primeira audiência será realizada na sexta-feira em Brasília e, depois, continua do dia 27 a 29 de maio em Manaus. Um total de 116 delegações serão ouvidas. Os encontros serão transmitidos nas redes sociais da corte.

As audiências subsidiarão um parecer da IDH sobre "Emergência Climática e Direitos Humanos", a ser elaborado a pedido de Chile e Colômbia, que querem "esclarecer as responsabilidades estatais, tanto individualmente quanto coletivamente, em lidar com a emergência climática" à luz dos direitos humanos segundo o direito internacional.

Segundo a IDH, este é o processo judicial mais participativo de sua história, com 262 contribuições escritas de mais de 600 atores. Antes, em abril, a corte esteve em Barbados para discutir o mesmo tema.

Preocupação com devastação da Amazônia

Em solicitação feita por Chile e Colômbia à corte em 2023, os dois países demonstram preocupação com a devastação da Amazônia, dado que a "região dos Andes é uma das zonas mais sensíveis do mundo a migrações e deslocamentos associados à mudança climática" e, na Colômbia, o aumento da temperatura acima de 1,5ºC "aumentará a intensidade e frequência de temperaturas extremas, tormentas, inundações, deslizamentos de terra e ondas de calor".

"Debater este tema perante uma Corte regional permite, ademais, abordar não apenas as obrigações nacionais ou regionais, mas também aquelas vinculadas à cooperação internacional e as obrigações compartilhadas, mas diferenciadas, a partir de uma perspectiva de direitos humanos", argumentam os dois países.

Quais questões serão analisadas pela IDH

Entre as perguntas que os juízes da corte terão de responder estão questões como qual é o "dever dos Estados de prevenir os fenômenos climáticos gerados pelo aquecimento global (...) à luz do Acordo de Paris e do (...) não aumento da temperatura global além de 1,5°C"; que medidas concretas os países devem adotar para minimizar o impacto da emergência climática; que respostas devem dar para " prevenir, minimizar e abordar as perdas e danos econômicos e não econômicos"; em que medida o acesso à informação ambiental constitui um direito fundamental, necessário à garantia de outros direitos básicos "à vida, à propriedade, à saúde, à participação e ao acesso à justiça"; quais são as obrigações dos Estados em termos de "proteção e reparação adequada e oportuna em função da violação de seus direitos devido à emergência climática"; papel na proteção de ativistas ambientais, dentre outras.

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O pesquisador que pisou em cobras para estudar suas picadas

Um pesquisador do Instituto Butantan, em São Paulo, optou por um método incomum para descobrir quando e por que cobras peçonhentas dão picadas: ele pisou ou chegou muito perto desses animais dezenas de milhares de vezes.

O biólogo João Miguel Alves Nunes usou mais de 100 jararacas em sua pesquisa, uma espécie de serpente encontrada em toda a América do Sul e responsável por picar cerca de 20 mil pessoas por ano. Os resultados obtidos no estudo foram publicados na prestigiada revista científica Nature.

O que o estudo mostrou?

Em entrevista à revista Science, o brasileiro afirmou que, até então, havia poucas pesquisas sobre os fatores que levam as cobras peçonhentas a morderem.

Alves Nunes explica que seu método de pisar nos animais ou muito perto deles –  com botas especiais de proteção – permitiu-lhe refutar a suposição comum de que as jararacas mordem apenas quando são tocadas.

"Eu pisei perto das cobras e também levemente em cima delas", conta o pesquisador. "Não coloquei todo o meu peso sobre o pé, portanto não machuquei as cobras. Testei 116 animais e pisei 30 vezes em cada animal, totalizando 40.480 pisadas."

A probabilidade de uma jararaca morder foi inversamente proporcional ao tamanho dela, de acordo com Alves Nunes. Em outras palavras, quanto menor o animal, maior a chance de ele cravar as presas em alguém.

A fêmea da espécie também é mais agressiva que o macho, segundo o estudo, especialmente quando são jovens e durante o dia.

As cobras ainda eram mais propensas a morder quando o tempo estava mais quente, que é quando os répteis de sangue frio estão mais ativos e têm mais energia.

As chances de ser mordido também aumentam se as cobras são tocadas na cabeça, em vez de no meio do corpo ou na cauda, segundo a pesquisa.

Qual a importância do estudo?

Alves Nunes afirma que as informações obtidas com o estudo podem ajudar a mitigar o problema das picadas de cobra no Brasil. "Com nossas novas descobertas, podemos prever onde as picadas podem ocorrer e planejar melhor a distribuição do antiveneno", disse ele.

"Combinando nossos dados com os dados de outros estudos que mostram a distribuição de cobras, podemos identificar os locais onde os animais têm maior probabilidade de serem agressivos. Por exemplo, locais mais quentes com uma população maior de cobras fêmeas devem ser prioridade para a distribuição de soro antiveneno."

A jararaca é uma das principais responsáveis por acidentes com picadas no país, representando cerca de 90% dos atendimentos relacionados a serpentes peçonhentas.

Pesquisador alérgico a antiveneno

Alves Nunes conta que se sentiu "100% seguro" ao pisar nas cobras ou perto delas por conta das botas que usava –  que, segundo ele, foram escolhidas com base na orientação de colegas experientes do instituto.

No entanto, embora as jararacas não tenham conseguido perfurar as botas, ele acabou sendo mordido ao fazer experimentos com uma cascavel e teve de receber tratamento no hospital.

"Felizmente, eu estava no melhor lugar que poderia estar", disse o pesquisador, referindo-se ao instituto que é líder no desenvolvimento de soros antiveneno.

Mas a mordida revelou uma característica infeliz para um pesquisador de cobras: "Infelizmente, descobri que sou alérgico tanto ao antiveneno quanto às toxinas das cobras. Tive que tirar uma licença médica de 15 dias", contou ele à Science.

Por outro lado, mais uma vez demonstrando sua paixão pelo conhecimento a qualquer custo, Alves Nunes está transformando o infortúnio em uma boa causa científica.

"Agora estou comparando a força da mordida de cascavéis e jararacas com a resistência de diferentes materiais e calçados a elas."

Fake news viram arma política na tragédia climática do RS

Em meio ao desastre climático no Rio Grande do Sul, aumentou a disseminação de desinformação sobre as enchentes por influenciadores e parlamentares de extrema direita, cujas postagens nas redes sociais estão sob investigação da Polícia Federal. Nas publicações, eles exaltam o trabalho de voluntários e atacam a ação de governos e Forças Armadas. 

"A desinformação no Brasil é um fenômeno político. Dependendo da ideologia que a pessoa segue, escolhe certas fontes. A mediação dos algoritmos sugere outros conteúdos e outras pessoas para seguir nessa linha. Então, cai no buraco de uma teoria da conspiração ou desinformação não por ignorância, mas pelos seus valores", analisa o professor de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Yurij Castelfranchi. A catástrofe ambiental, diz, agravou esse fenômeno.

Castelfranchi é coautor de uma pesquisa recém-lançada que avaliou o consumo de informações pelos brasileiros. O estudo, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, constatou que o meio ambiente e as mudanças climáticas estão entre os temas de maior interesse do público (76,2%). No entanto, metade dos entrevistados disse já ter se deparado com fake news, e 9% admitiram compartilhar esses conteúdos mesmo sabendo disso.

Desinformação para propagar visão "anti-Estado"

Segundo especialistas, catástrofes climáticas como a enfrentada pelo Rio Grande do Sul favorecem a circulação de desinformação, propagada por perfis alinhados à extrema direita. "Pegam no imaginário de uma população extremamente carente, que já tem péssimas experiências com o setor público e que vai acreditar que há essa sabotagem do Estado. Isso cria uma má vontade em relação ao trabalho da polícia, do Exército, e fortalece os amadores e influenciadores", explica Fabrício Pontin, professor de Relações Internacionais da Universidade LaSalle, de Canoas (RS), região atingida pelas chuvas.

O aumento na disseminação de fake news sobre a tragédia climática foi constatado pelo grupo de pesquisa da USP Monitor Político, que analisa a polarização do debate político. Emnota técnica, eles apontam que "a profusão de mensagens indicava que o fenômeno era muito significativo", com praticamente uma em cada três mensagens publicadas no X (antigo Twitter) adotando um tom "anti-Estado".

Antagonismo entre voluntários e governo

Entre as postagens falsas compartilhadas estão a que relatava que a entrada de caminhões com doações para as vítimas tinha sido barrada pela Receita Federal e que voluntários em barcos e helicópteros foram impedidos de realizar resgates. Outra dizia que a cantora Madonna doou R$ 10 milhões às vítimas. Em comum, as publicações exaltam a solidariedade de voluntários em oposição a uma suposta falência do Estado.

Homem carrega idoso no colo. Atrás deles há uma rua completamente inundada
Homem carrega idoso resgatado em Porto Alegre: voluntários têm papel importante, mas não agem no vácuonull Diego Vara/REUTERS

Outra notícia falsa de alcance local alega que pessoas com uniforme do Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae) de Porto Alegre estão assaltando casas. Como resultado, moradores passaram a barrar os servidores públicos.

"As consequências políticas desse tipo de disseminação são enormes, são danosas, podem custar vidas. Estamos gastando o dobro de energia para alertar sobre notícias falsas ao invés de orientar as pessoas sobre como devem deixar suas casas", alerta Pontin.

Segundo o professor, os grupos que espalham fake news testaram vários tipos de notícias falsas. As mais bem sucedidas não promoviam o negacionismo climático, mas sim o discurso de que a atuação do governo está atrapalhando o trabalho dos voluntários.

"Tem um interesse muito claro de agentes políticos em fazer circular informação que ataque o grupo político oposto", afirma o jornalista Alisson Coelho, que atua desmentindo esses boatos em Novo Hamburgo (RS). "A ideia de que o Estado só atrapalha é mais próxima da centro-direita."

Coelho diz que esse tipo de conteúdo começou a ser compartilhado em perfis pequenos, com até 2 mil seguidores, mas explodiu quando foi amplificado por influenciadores e políticos, reforçando a polarização entre direita e esquerda.

Tragédia climática como plataforma de campanha

Para especialistas, a mobilização da desinformação sobre a tragédia climática pela extrema direita é uma estratégia para ganhar espaço nas eleições municipais de outubro.

Essa tendência de compartilhamento organizado de notícias falsas é observada no Brasil desde 2016, e se intensificou nas campanhas eleitorais.

Doutor em comunicação e professor da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), Christian Gonzatti explica que a performance digital dos políticos visa manter o eleitorado engajado. "Precisam desse diálogo com o público para ter poder. Apelam à ideia de um perigo que precisa ser denunciado para ganhar visibilidade e depois convertê-la em outras formas de poder."

Segundo Pontin, esses grupos por onde a desinformação circula amplificam perfis de possíveis candidatos que defendem pautas neoliberais de redução do Estado e negacionismo climático. O discurso cola no público "não porque são contra o meio ambiente, mas porque têm medo das consequências de ter que mudar o paradigma". "Assim, criam-se lideranças que podem ser candidatas na eleição", diz.

Por que as plataformas alimentam essa dinâmica

Segundo Gonzatti, a própria arquitetura da informação das redes sociais favorece a circulação de notícias falsas. "As redes são construídas para manter os usuários o máximo de tempo possível consumindo conteúdo em sequência. Por isso não vão confrontá-las na sua visão de mundo, porque precisam desse ambiente que prende a atenção. Isso dá retorno financeiro para as plataformas", afirma.

Pontin explica que a reprodução de fake news em grupos de mensagem ajuda a manter os participantes coesos. "Quando o conteúdo começa a se propagar e viralizar dentro dessas comunidades, a opinião se consolida. E isso tem consequências enormes, pois se isso se dá em cima de uma notícia falsa, fica muito difícil reverter isso."

Ele aponta que a disseminação de notícias falsas, além de estratégia política, é também um modelo de negócios. "As plataformas recompensam a atenção, só que não fazem distinção entre atenção ruim e boa. O conteúdo que gera atenção é recompensado, e as plataformas o mantém em circulação. Por mais que tentem fazer uma checagem, algumas com maior ou menor boa vontade, há um incentivo para que produtores façam esse tipo de conteúdo e recebam valores por isso." 

Ações governamentais

A narrativa de omissão por parte das autoridades é falsa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nomeou o ministro Paulo Pimenta para a secretaria extraordinária de reconstrução do Rio Grande do Sul, e anunciou um pacote de R$ 50 bilhões que prevê, entre outras medidas, o pagamento de benefícios e auxílios às pessoas afetadas pelas enchentes.

O resgate e medidas de infraestrutura demandam um grande aparato. Segundo balanço do Exército, mais de 33 mil militares, policiais e agentes estão envolvidos nas ações de socorro ao estado, que teve 461 cidades atingidas pelas enchentes. Para isso, foram destinadas à operação 5,1 mil viaturas e 90 equipamentos de engenharia, além de 80 aviões, 410 embarcações, seis navios multitarefas e nove hospitais de campanha. O governador Eduardo Leite (PSDB) estima em R$ 19 bilhões os custos da reconstrução do estado.

O governo reagiu à campanha de fake news sobre a tragédia denunciando o caso à PF. Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), o objetivo é "evitar que o esforço de enfrentamento da calamidade seja prejudicado pela desinformação". O inquérito tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sob relatoria da ministra Cármen Lúcia.

Governos contribuíram para a catástrofe climática

Apesar de os governos estarem reagindo ao desastre climático, eles ignoraram alertas de pesquisadores do clima e contribuíram para o desmonte de políticas ambientais.

A ONG Observatório do Clima mapeou 25 projetos de lei e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que enfraquecem a proteção ao meio ambiente. As medidas preveem a redução da reserva legal na Amazônia, obras de irrigação em áreas de proteção permanente e relaxamento das regras de licenciamento ambiental, dentre outras mudanças.

O que está por trás do aumento das catástrofes climáticas

Casos alarmantes de desastres climáticos não saem do noticiário mundial: enchentes no Rio Grande do Sul, seca na Amazônia, inundações e ondas de calor na África, calor extremo na Ásia.

A Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada às Nações Unidas, alertou que, até agora, 2024 tem sido um ano particularmente ruim em termos de clima extremo, com secas, calor excessivo e inundações causando graves danos à saúde e aos meios de subsistência.

"Quase todas as regiões do mundo registraram eventos climáticos e meteorológicos extremos de diferentes naturezas", afirma Álvaro Silva, especialista em clima da OMM, à DW.

E embora nem todos os eventos climáticos extremos possam ser atribuídos à mudança climática, eles estão se tornando mais frequentes e mais perigosos devido às emissões de gases de efeito estufa provenientes da queima de carvão, petróleo e gás.

No ano passado, o Hemisfério Norte teve o verão mais quente dos últimos dois mil anos e, globalmente, 2024 está a caminho de ser ainda mais quente.

A ligação entre mudanças climáticas e o tempo

A mudança climática aumenta a evaporação das águas e coloca mais vapor de água na atmosfera. Isso causa chuvas mais intensas e enchentes em algumas áreas, e secas mais extremas em outras.

Temperaturas mais altas levam a ondas de calor mais frequentes. Esse fator somado a temperaturas oceânicas também mais altas causam estragos nos padrões climáticos globais, resultando em efeitos díspares em todo o planeta.

"Não é apenas sobre a frequência e a intensidade que se ouve falar, mas também sobre as mudanças no tempo e na duração desses extremos", diz Silva. "Não sabemos mais o que é normal no clima, porque vemos uma tendência crescente de eventos extremos."

A influência da mudança climática é evidente quando se observam as tendências climáticas a longo prazo, mas só recentemente foi possível determinar seu papel em eventos climáticos específicos.

A DW analisou três grandes eventos climáticos deste ano para verificar se a mudança climática foi um fator decisivo: as enchentes no Rio Grande do Sul, as ondas de calor na Índia e os tornados nos Estados Unidos.

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O papel nas enchentes do Rio Grande do Sul

As piores enchentes da história do Rio Grande do Sul deixaram cerca de 150 mortos, mais de 100 desaparecidos e mais de 600 mil desalojados ou desabrigados. A vida pública está praticamente paralisada. Ao todo, mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas diretamente pela tragédia.

Cientistas já apontaram os efeitos da mudança climática, além do fenômeno climático El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico nessa época do ano, para explicar as enchentes.

Um estudo publicado pelo grupo francês Laboratório de Ciências Climáticas e Ambientais (LSCE, na sigla em francês) concluiu que as fortes chuvas no estado podem ser atribuídas principalmente à mudança climática causada pelo homem.

A World Weather Attribution (WWA) – uma iniciativa de cientistas que investiga em que medida a mudança climática desempenhou um papel nos recentes eventos climáticos extremos – está trabalhando em seu próprio estudo. Mas a líder da WWA, Friederike Otto, afirma que as enchentes anteriores no Brasil estavam claramente ligadas à mudança climática.

Somada ao clima, a vulnerabilidade também desempenha um papel muito importante nos danos causados pelas enchentes, com alguns engenheiros apontando a falta de preparação e problemas de infraestrutura na região.

O papel nas ondas de calor na Índia

Em abril e maio, a Índia, juntamente com muitas partes da Ásia, sofreu com uma onda de calor sufocante. As temperaturas em algumas partes do território indiano chegaram a 47 °C, causando mortes e miséria generalizada.

Mulher anda na rua com lenço cobrindo a cabeça e o rosto
As temperaturas em algumas partes do território indiano chegaram a 47 °Cnull Debarchan Chatterjee/NurPhoto/picture alliance

A onda de calor, inclusive, pôs em xeque o comparecimento às urnas nas eleições gerais da Índia, que ocorrem ao longo de seis semanas, de 19 de abril a 1º de junho, e são as maiores do mundo.

Vários políticos, funcionários, eleitores e gerentes de campanha ficaram doentes devido ao calor, incluindo um ministro que desmaiou no palco.

"Mais de 900 milhões de eleitores precisam sair ao ar livre e fazer fila (...) por horas e horas sob o sol", afirma Leena Rikkila Tamang, diretora de Ásia na ONG IDEA, uma organização pró-democracia com sede na Suécia. "Vemos uma clara queda no comparecimento dos eleitores em comparação com as eleições de 2019."

A onda de calor na Índia foi 45 vezes mais provável e 0,85 °C mais quente devido à mudança climática, de acordo com a World Weather Attribution (WWA).

"Não há absolutamente nenhuma dúvida de que, enquanto continuarmos queimando combustíveis fósseis e, com isso, aumentando a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, essas ondas de calor se tornarão mais frequentes, mais severas e mais duradouras", diz Otto, que lidera a organização.

Os danos causados por condições climáticas extremas dependem da vulnerabilidade da população. Mesmo um aumento de temperatura aparentemente baixo pode causar grandes danos.

"Em países como a Índia e outras partes do sul da Ásia, onde muitas pessoas trabalham ao ar livre, elas estão muito mais expostas e mais vulneráveis até mesmo a mudanças relativamente pequenas no calor extremo", afirma Otto.

O papel nos tornados nos EUA

Os Estados Unidos registraram um grande número de tornados neste ano. Em um período de quatro dias, mais de 100 tornados atingiram a região Centro-Oeste e as Grandes Planícies, "causando danos significativos e perda de vidas", segundo as autoridades.

O Serviço Nacional de Meteorologia em Omaha, no estado de Nebraska, estabeleceu um recorde ao emitir 48 alertas de tornado em um único dia.

Tornado nos EUA
Em apenas quatro dias, EUA registraram mais de 100 tornados no Centro-Oeste e nas Grandes Planíciesnull Scott Schilke/Sipa USA/picture alliance

Mas as causas dos tornados são muito difíceis de determinar, porque eles são muito localizados. Os estudos para apontar ligações com a mudança climática funcionam melhor em eventos de grande escala em grandes áreas, como ondas de calor ou frio extremos e secas.

Com exceção dos ciclones tropicais no Atlântico Norte, a mudança climática não foi associada ao aumento da velocidade do vento, especialmente sobre a terra, de acordo com Friederike Otto.

"Como não vemos mudanças em outros tipos de velocidade do vento ou outros tipos de tempestades, eu não esperaria ver uma grande mudança, mas isso pode ser bem diferente no caso dos tornados, pois eles também são um fenômeno diferente."

Essencialmente, os cientistas não sabem dizer que tipo de papel a mudança climática desempenhou nos tornados americanos ou se desempenhou de fato algum.

Clima extremo sempre existiu?

A história está repleta de exemplos de condições climáticas extremas, mesmo antes de as engrenagens da Revolução Industrial começarem a girar e a humanidade começar a queimar os combustíveis fósseis responsáveis pela mudança climática.

Esses eventos são fenômenos naturais, mas a mudança do clima claramente os tornou muito mais frequentes e muito mais extremos, garantem os especialistas.

Antes da década de 1990, cerca de 70 a 150 eventos climáticos e relacionados à água eram registrados por ano. Desde 2000, 300 eventos extremos têm sido registrados anualmente. Mesmo com a subnotificação no passado, "a diferença é inquestionável", diz Silva, da OMM.

"A gente cria os animais para matar. Mas não para ver sofrer"

Do telhado de casa, onde se abrigava para fugir água que avançava em sua propriedade em Cruzeiro do Sul (RS), Mauro Gilberto Soares, 61 anos, viu um porco nadando contra a correnteza por cerca de uma hora. "Parecia que ele pedia socorro. E me senti culpado por não oferecer um lugar seguro", lamentou o produtor rural. Soares, sua família e alguns vizinhos foram resgatados após passarem uma noite no sótão da residência, mas praticamente todos os animais de produção foram levados pela força do rio Taquari.

Assim como os humanos, os animais têm sofrido com as enchentes que assolam o estado gaúcho. O resgate do cavalo Caramelo, em Canoas, que passou quatro dias ilhado e foi retirado de cima de um telhado, assim como o salvamento de inúmeros bichos de estimação, têm comovido pessoas de todo o Brasil e do mundo.

Já foram resgatados cerca de 12 mil animais, segundo o governo do estado, a maioria cachorros e gatos, mas ainda é incalculável o número de bichos de produção da pecuária perdidos nas enchentes. No campo, há uma mistura de dor pela morte de vacas, bois, touros, porcos e galinhas e pelos prejuízos dos produtores rurais.

Mauro Gilberto Soares demorou a sair de sua propriedade justamente por causa dos animais de criação – 44 vacas e 15 porcos. Abriu o chiqueiro e tentou colocar os bichos em um lugar mais seguro. Nada adiantou. "Foi aterrorizante. A gente cria os animais para matar. Mas não para ver sofrer. Dói muito, é muito triste", contou.

As mortes e a fome

A Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul informou, por e-mail, que "liberou a movimentação de animais que estavam em áreas de risco de alagamento e junto com voluntários tem auxiliado nos transportes desses animais quando necessário".

Disse também que o Comitê de Crise da Causa Animal "resgata os animais de produção quando são encontrados com os demais, mas essa ação tem sido feita mais pelos órgãos de segurança, ONGs e entidades, com o apoio da Secretaria da Agricultura quando solicitado, como aconteceu na região de Guaíba e Eldorado do Sul."

De acordo com a bióloga Patricia Tatemoto, PhD em Medicina Veterinária e gerente de pesquisa e bem-estar animal da ONG Sinergia Animal, há evidências científicas robustas de que ao menos todos os animais vertebrados sentem dor e são capazes de entender que estão em situações desafiadoras. Embora seja difícil mensurar o tamanho do sofrimento dos bichos nas enchentes, a especialista chama atenção para aqueles que vivem confinados.   

"Grande parte dos animais na pecuária são criados em altas concentrações e são impossibilitados de fugir ou de buscar abrigo em áreas mais elevadas, como fariam na natureza. Eles não têm opção. Ficam presos em galpões ou até mesmo em gaiolas individuais, como é o caso das porcas gestantes e de centenas de bezerros na indústria do leite. Em caso de enchente, esses animais podem agonizar por horas ou até dias antes de se afogar", explica a bióloga.

Homem com três cachorros na carroceria de uma caminhonete
Mais de 12 mil animais, a maioria gatos e cachorros, foram resgatados das enchentesnull ANSELMO CUNHA/AFP

Além das mortes, as consequências para o bem-estar animal e para os produtores rurais vão durar meses, analisa a professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Liris Kindlein. Os animais que conseguiram fugir de áreas alagadas, por exemplo, provavelmente perderam peso, ficaram desidratados e sofreram estresse.

Além disso, devido à falta de logística, com estradas obstruídas e falta de grãos, muitos animais correm o risco de passar fome. "É um grande problema. Eles vão ter jejum, vão passar fome. Vai afetar o bem-estar animal com certeza. Quando se coloca comida, eles competem, então tem mais arranhões, prejuízos de bem-estar animal", frisa Kindlein. 

Segundo o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Eugênio Zanetti, há uma campanha para que produtores de outros estados enviem pré-secados, uma espécie de pasto armazenado em rolos que serve de alimento. "Há muitas regiões onde não têm água, têm lama, e o gado não tem nem onde colocar a boca. E os silos de silagem foram perdidos", explica Zanetti.

O clima e os prejuízos

Um estudo do Observatório do Clima lançado em outubro do ano passado estimou que a produção de alimentos representou, em 2021, 73,7% das 2,4 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa lançadas pelo Brasil na atmosfera. O principal poluente são os desmatamentos usados em sistemas alimentares, seguidos pela agropecuária, principalmente o rebanho bovino.

Paradoxalmente, o setor é prejudicado pelos efeitos das mudanças climáticas causadas pela emissão de gases do efeito estufa, como pode ser visto no Rio Grande do Sul. Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontam que a agricultura e a pecuária estão entre os principais prejudicados, com R$ 1,8 bilhão e R$ 207,8 milhões de prejuízos, respectivamente – os números sobem em cada nova atualização.

Quanto tempo será preciso para reconstruir o RS?

Em Taquari, por exemplo, 83 mil aves morreram afogadas na Avicampo Ovos. O sócio-proprietário Fabio Frühauf contou que a empresa investiu no ano passado em sistema automatizado e fábrica de rações. "Foram 10 anos de trabalho perdidos em um dia", afirma. Eles estimaram um prejuízo de R$ 4 milhões. Agora, a empresa está pensando em investir em uma nova área. 

Para o vice-presidente da Fetag-RR, Eugênio Zanetti, é preciso um estudo aprofundado para analisar os riscos para as propriedades rurais. "Teve áreas que em setembro, novembro e agora foram levadas embora. Tem que pensar em realocar esses agricultores para que eles possam reconstruir em um local mais seguro. Mas, sem dúvida, o produtor vai precisar de muita ajuda, com linhas de crédito e juros subsidiados para poder reconstruir".   

O produtor rural Mauro Gilberto Soares já saiu da localidade atingida pelas enchentes, na Linha Lotes, nas proximidades do rio Taquari. Agora, está em uma propriedade que sua esposa recebeu de herança, em um local mais alto do município, mas menor e sem a infraestrutura adequada. Entre os animais, levou a única que sobrou, uma leitoa moura, uma raça mais rústica que corre risco de extinção no Brasil. "Ela subiu nos galpões. Não sei como conseguiu chegar lá em cima sem se afogar", contou. 

O que fazer no futuro

Uma das inúmeras questões que ficam das chuvas no Rio Grande do Sul é o que fazer para salvar os animais de criação e garantir o seu bem-estar durante tragédias climáticas. A pasta da Agricultura gaúcha informou que "atua com planos de contingência que visam a defesa sanitária animal, englobando enfermidades como febre aftosa, peste suína, gripe aviária, entre outros", sem especificar a situação das enchentes. O Ministério da Agricultura e Pecuária não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Foto mostra vista aérea de duas pistas de uma rodovia parcialmente alagada, com muita água dos dois lados
Rodovias alagadas ou destruídas impedem que alimento chegue aos animais de produção, que poderão passar fomenull Nelson Almeida/AFP

A bióloga Patricia Tatemoto acredita que sejam necessárias algumas medidas. Para a especialista, deveria haver um sistema de alerta eficiente para que os produtores rurais pudessem ser informados com antecedência dos eventos extremos e, no mínimo, pudessem deixar seus bichos livres.

Além disso, a bióloga sugere a formação de uma rede articulada entre os produtores. "Com a informação sobre os eventos extremos, eles poderiam embarcar seus animais de áreas de risco e levá-los para fazendas mais resilientes. Seria um primeiro passo. E daria para pensar já", reflete.

Na cidade gaúcha de Triunfo, há uma solução parecida. Há 20 anos, a empresa Ramos Transporte Aquaviários, contratada pela prefeitura, resgata animais em algumas ilhas no rio Jacuí. "Como na região desembocam os rios Taquari e Jacuí, quando chove forte no centro do estado a gente avisa os produtores que vai ter enchente e começa os salvamentos", conta Luís Henrique Velho Ramos, 30 anos.

Mesmo que desta vez a enchente tenha sido mais forte, a empresa tirou cerca de 600 animais, principalmente bois e vacas, usando balsa e rebocador. Na última viagem que fizeram, no dia 9 de maio, auxiliaram em um salvamento que não fazia parte do contrato com a prefeitura.

Na ilha, bois e vacas estavam quase completamente encobertas pela água, tendo que levantar a cabeça para poder respirar. Conseguiram tirar 80 indivíduos, alguns com mais de 500 quilogramas. Como eram cinco da tarde e escurecia, o que dificultava a navegação no rio, precisaram deixar para trás cerca de 20 animais. "A gente não gosta de ver bicho morrer", lamentou Ramos.

Catástrofe no RS deve ter impacto na inflação e no PIB

O Rio Grande do Sul é tradicionalmente conhecido como um dos grandes produtores do agronegócio brasileiro, e os efeitos das históricas enchentes no estado foram prontamente alvos de preocupação para o setor. O impacto nas colheitas de arroz, soja e trigo deve ser sentido na inflação em todo o Brasil, o que também deverá ocorrer no caso do leite e de outros produtos. Além disso, a atividade industrial gaúcha também foi fortemente afetada – nove em cada 10 empresas do estado estão em cidades atingidas pelas enchentes, de acordo com levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs). Este cenário deve ter repercussões para a atividade econômica do Brasil como um todo.

Além da grande presença na alimentação dos brasileiros, o arroz chama a atenção pelo forte componente doméstico da produção do estado. O Rio Grande do Sul é responsável por mais de 70% da produção brasileira do alimento que, no último ano, representou apenas 1,4% das exportações gaúchas, segundo dados do Comex, sistema para consultas e extração de dados do comércio exterior brasileiro. Embora 80% do arroz já tivesse sido colhido, nos últimos dias o Brasil se mobilizou pela importação do grão, enquanto supermercados pelo país restringiram as compras, temendo desabastecimento em razão de danos aos estoques e à cadeia de distribuição.

Homem posa para foto em meio a uma lavoura de milho alagada
O agricultor Ademilson Tardetti teve sua lavoura de milho destruída em Guaíbanull Amanda Perobelli/REUTERS

O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea) identificou impactos em outros itens relevantes da dieta comum dos brasileiros: leite e frango. Em ambos os casos, a infraestrutura afetada, incluindo danos no processamento, devem ser responsáveis por alguma escassez, chegando ao consumidor final com alta de preços. No caso do frango, granjas já relatam dificuldade para receber alimentos para os animais devido aos problemas nas estradas.

"O viés inicial para a economia brasileira é de efeitos temporários em 2024 de maior pressão de alta na inflação de alimentos e de bens manufaturados, além de alguma moderação no ritmo de crescimento do PIB nacional", aponta o Rabobank, em relatório assinado pelos analistas Maurício Une e Renan Alves.

No último relatório Focus, os analistas de mercado consultados pelo Banco Central projetaram uma alta no índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) de 3,76% em 2024, um pequeno aumento ante os 3,72% da semana anterior. Desde o meio do último ano, os riscos inflacionários do fenômeno El Niño vinham sendo apontados por analistas. Até as chuvas no Rio Grande do Sul, algumas estimativas chegaram a reduzir suas previsões para a inflação, o que foi revertido nos últimos dias.

Grande impacto nas cadeias de fornecimento

A analista de grãos da StoneX Ana Luiza Lodi afirma que os impactos devem afetar não apenas as plantações, mas as cadeias de fornecimento como um todo, lembrando dos prejuízos nos silos e às indústrias que usam a soja, como o caso da proteína animal – e isso sem falar nas estradas, rodovias e pontes. No caso da soja, a expectativa antes das enchentes era de uma exportação de 23 milhões de toneladas, que foi reduzida para 20 milhões. O chamado complexo da soja, que abrange ainda o farelo, é o maior produto de exportação do Brasil, tendo a China como principal compradora.

Além disso, ela aponta uma possível perda na qualidade em parte da safra, o que deve impossibilitar a exportação em alguns casos. Em 2023, o produto foi responsável por 18% das vendas internacionais do estado, o que representou um ingresso de US$ 4,1 bilhões para o Rio Grande do Sul.

Foto aérea mostra uma rodovia ao lado de uma plantação de arroz alagada
Embora o arroz seja uma cultura molhada, plantações em Eldorado do Sul chegaram a ficar submersas em 2 metros de águanull NELSON ALMEIDA/AFP

No caso do trigo, a expectativa é de queda de 6,9% na produção da safra, que será prejudicada ainda pelos impactos da chuva também em Santa Catarina. Por sua vez, para o milho, as perdas não tendem a ser tão relevantes, já que uma parte importante já havia sido colhida. Com chuvas ainda previstas para os próximos dias, Lodi afirma que é difícil estimar o tempo para uma normalização no Rio Grande do Sul. Segundo a Empresa de Extensão Técnica e Extensão Rural (Emater-RS), 76% da soja e 83% do milho plantados no estado já tinham sido colhidos antes das enchentes.

Nos últimos anos, os produtores do estado já haviam sofrido com fenômenos climáticos. No entanto, nas colheitas anteriores, ao contrário deste ano, o que ocorreu foi uma forte seca no Sul do país, impulsionado pela La Niña, que, ao contrário do El Niño, tende a causar períodos mais secos nesta parte da América do Sul.

Outro ponto a ser levado em consideração é a perda de tratores, caminhões e outras máquinas agrícolas que podem atrapalhar o plantio de algumas culturas, como o trigo. Mesmo nas áreas em que a água já baixou, o solo continua exarcado e ainda é cedo para saber as condições de plantio para as próximas safras.

Apesar do cenário de constantes problemas para o plantio, Lodi não acredita que haja grande estímulo para produtores deixarem de investir na atividade ou mudar o uso do solo. A analista lembra que a soja é muito relevante para o estado, contando com uma cadeia já pronta, que torna difícil que a produção seja substituída.

Impacto na indústria

Dos 497 municípios gaúchos, pelo menos 447 (cerca de 90%) foram afetados pelas enchentes, de acordo com o governo do Estado. Isso representa, segundo a Fiergs, 94,3% de toda a atividade econômica estadual. "Os locais mais atingidos incluem os principais polos industriais do Rio Grande do Sul, impactando segmentos significativos para a economia do Estado", afirmou o presidente em exercício da Fiergs, Arildo Bennech Oliveira, em comunicado.

Homem caminha por uma lavoura de milho destruída
Lavoura de milho destruída pela enchente na cidade de Guaíbanull Amanda Perobelli/REUTERS

A tragédia levou à paralisação de fábricas de diversos setores, de montadoras a utensílios domésticos. Empresas desligaram as máquinas e concederam férias coletivas ou deram folga aos empregados, como no caso da Tramontina e da fábrica local da General Motors. O tema chegou a atingir os vizinhos, com a Fiat suspendendo sua atividade industrial em Córdoba, na Argentina, pela falta de insumos vindos do Sul do Brasil.

Riscos ao sistema financeiro

De acordo com a ata da última reunião do Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central, os desdobramentos da tragédia seguirão sendo acompanhados para definir a política monetária.

A catástrofe ocorre em um momento no qual cresce a discussão pelo mundo sobre a necessidade de bancos centrais levarem em conta as mudanças climáticas, já que os eventos extremos cada vez mais recorrentes afetam grande parte de sua área de atuação. Além de influenciar na inflação, em tragédias como a do RS, corridas bancárias, com grande volume de saques simultâneos, podem gerar algum estresse, que coloca riscos ao sistema financeiro em efeito cascata.

A Oxford Economics acredita que as enchentes no RS serão um obstáculo significativo ao crescimento nos próximos meses. Em relatório, a consultoria lembra que o governo federal anunciou um pacote de expansão fiscal de 0,5% do PIB, mas ainda vê riscos de impacto negativo para sua projeção de crescimento do PIB brasileiro de 1,2% neste ano, que já é mais baixa do que outras projeções.

Em um primeiro momento, o pacote anunciado pelo governo federal para reconstrução do Rio Grande do Sul foi de R$ 52 bilhões. Por sua vez, uma série de integrantes do governo afirmou, ao longo dos últimos dias, que o tema não deverá alterar a trajetória fiscal do país. Desta forma, os gastos não deverão entrar no limite orçamentário de 2024, o que traz dúvidas sobre o efeito para as contas públicas.

"A cultura do Brasil saiu da UTI"

"Quiseram nos dizimar, mas estamos aqui, mais firmes do que nunca". A frase, dita em tom de euforia, é do cineasta cearense radicado em Berlim Karim Aïnouz, que concorre à Palma de Ouro, do Festival de Cannes, com o filme Motel Destino.

O filme estreia em Cannes na próxima quarta-feira (22/05) e a expectativa é grande. Afinal, Karim não é novato no festival. Em 2019, ele ganhou a mostra Um Certo Olhar com o filme A vida invisível de Eurídice Gusmão. Ano passado, concorreu à Palma de Ouro com Firebrand, uma produção inglesa.

Estreado por Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier, Motel Destino conta a história de um homem que se esconde em um motel e tem um caso com a mulher do dono do estabelecimento, um ex-policial. O filme foi rodado no Ceará com uma equipe local.

Karim Aïnouz
Karim Aïnouz fimou "Motel Destino" no Ceránull Maria Lobo

Em entrevista à DW, Karim fala sobre Motel Destino, sobre o chamado "apagão" da cultura provocado durante o governo de Jair Bolsonaro e a volta com força do cinema brasileiro, refletida no Festival de Cannes.

DW: O Festival de Cinema de Cannes começou nesta terça-feira (14/05) no sul da França, com o seu filme Motel destino, que é um filme brasileiro, entre os concorrentes da competição oficial. Você, Karim, é um brasileiro radicado em Berlim e já foi premiado na mostra paralela Um Certo Olhar. Agora, volta ao festival com uma história de amor estrelada por Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier. Como é, para você, voltar para Cannes, desta vez na competição oficial?

Karim Aïnouz: Eu estou muito feliz. E o que acho mais interessante agora é estar aqui com esse filme que foi feito no Ceará, no local onde eu cresci, com uma equipe e um elenco de lá. Isso para mim é histórico. Não é uma conquista minha, é de todo mundo, de uma equipe e de um projeto. Há 15 anos, montamos uma escola de cinema lá com fomento público. [Karim e os cineastas Marcelo Gomes e Sérgio Machado são idealizadores do Lab Cena 15, um laboratório de formação de roteiristas na Escola Porto Iracema das Artes, em Fortaleza].

Esse filme mostra como é importante os trabalhos a longo prazo, já que grande parte da equipe foi formada lá. E acho importante também que foi feito com uma equipe do Ceará, que é um lugar totalmente fora do eixo Rio-São Paulo e muitas vezes marginalizado. Quando eu comecei a fazer cinema, era inimaginável pensar em fazer cinema no Ceará. Acho que nunca houve um filme do Ceará em Cannes. Agora, vamos ter um tapete vermelho quase só com cearenses. Isso para mim é muito importante e histórico.

Ano passado você concorreu à Palma de Ouro com Firebrand, uma produção inglesa. Esse ano está com um filme brasileiro depois do governo Bolsonaro, que provocou um chamado "apagão" no cinema. Como é para você estrear uma produção brasileira depois desse período?

Eu acho incrível que depois de quatro anos de fascismo a gente tenha conseguido se recuperar tão rápido. Foram anos de terror, onde a cultura foi dizimada. E hoje, tão pouco tempo depois, temos seis filmes brasileiros em Cannes e ainda teremos o filme sobre o Lula [o documentário Lula, dirigido por Oliver Stone] em uma exibição especial.

Isso mostra que temos uma capacidade de regeneração muito grande, temos muita fome de viver e também capacidade de ter esperança. Parece piegas isso, mas é também uma coisa muito concreta. Tivemos um momento de terror. Quiseram dizimar a gente, mas estamos aqui, mais firmes do que nunca.

Como enxerga o fomento à cultura no governo atual? O que falta para o Brasil nesse contexto, tanto fora do país quanto internamente?

Eu acho que as políticas de fomento estão de volta. Se elas são boas ou não, ainda não deu tempo de saber. Esse filme, para você ter uma ideia, é um projeto que ganhou a lei do incentivo da Ancine em 2017. Mas aí veio o fascismo, a tentativa de dizimar a cultura e ficamos anos sem receber o incentivo. Eu já tinha desistido. Achava que nunca mais ia fazer esse filme. Fui surpreendido quando o incentivo foi aprovado. Isso é muito simbólico, mostra como com uma canetada podem acabar com tudo e também como é possível voltar com os incentivos rápido, até mesmo burocraticamente. A cultura do Brasil saiu da UTI.

Li que você disse que esse é seu filme mais engraçado e erótico. Isso é também uma resposta ao ultraconservadorismo que vivemos no governo Bolsonaro e que continua nos rondando com tanta força?

Eu acho que sexo e comédia têm a ver com a vida. Não são questões morais, são sinais de vida. Depois desses quatro anos de tanto terror e energia de morte, cheguei no set querendo mostrar cor e vida. É um filme onde explode cor, explode tesão, explode humor. É um filme muito inspirado em pornochanchadas e naqueles programas policiais que passam na TV tipo meio dia. É um policial erótico.

A pornochanchada foi uma grande inspiração para mim nesse filme, porque esse era um gênero B, mas era também uma forma de resistência à ditadura. Mostrar sexo era uma forma de confrontar o regime. Era super machista, isso não se discute. Mas tudo era machista naquela época.

A personagem principal do filme é uma mulher em um relacionamento abusivo. Então a causa feminina está presente de novo em um filme seu. O que te interessa tanto no universo das mulheres?

As mulheres sempre me interessaram, mas nesse filme é o seguinte: o relacionamento entre os personagens é de um jovem que se esconde em um motel e tem um caso com a mulher do dono de motel. Mas esse relacionamento tóxico é entre um jovem desamparado e uma mulher desamparada. A minha ideia é mostrar o desamparo dos dois e também a união. Acho que a gente tem que parar de brigar e se unir.

Eu sempre falei muito sobre mulheres. Mas agora quis tentar também entender o lado masculino, entender até o macho tóxico, algo que não tinha explorado. Nesse filme faço uma espécie de anatomia do macho tóxico. Essas pessoas foram criadas em um sistema patriarcal barra pesada. Quis tentar entender isso.

O filme se passa em um motel, uma particularidade do Brasil. O que te fascina nesse tipo de ambiente?

O motel é um lugar onde tudo é permitido. É uma arena dramatúrgica muito brasileira. Sim, é algo que só tem no Brasil. Acho que só tem uns na Colômbias, em Tóquio. Mas o motel como instituição, com essa arquitetura toda especial, isso é uma coisa nossa. Uma verdadeira invenção brasileira. E que me permitiu usar muita fantasia neste filme. Por exemplo, no motel aparecem uns bichos...

Quais são as suas expectativas para o festival?

Estou muito ansioso para ver o filme do Lula. Também estou muito entusiasmado para ver Baby, o filme do Marcelo Caetano, para ver o filme brasileiro que está na seleção de curtas, o Amarela de André Hayato Saito, e as produções de todos os brasileiros que estão aqui. Porque é uma retomada. Não é só o Motel. Estamos de bando. Minha expectativa é ver como o mundo vai reagir a esse novo Brasil. Cinema é coletivo. Não existe cinema individual. Estamos aqui juntos!

Ridley Scott abre o jogo sobre Hollywood

Por que sistema contra cheias não funcionou em Porto Alegre

No centro histórico de Porto Alegre, a inundação demora a recuar. Depois do pico da enchente atingir o recorde histórico de 5,3 metros em 5 de maio, algumas bombas entraram em operação, mas ainda há poucas áreas secas.

O aeroporto segue alagado. No Mercado Público, bancas que sofreram com a cheia de 1941, até então a pior da história, ainda estão submersas. A marca que indicava onde o nível da água chegou naquela época dentro do centro de abastecimento mais antigo do Brasil, fundado em 1869, foi superada em quase um metro pelas chuvas de 2024.

O prédio está a poucos metros do muro da Mauá, um paredão de concreto de seis metros – três deles enterrados no solo. Ele faz parte de um sistema de proteção construído para poupar a capital do Rio Grande do Sul de inundações de até seis metros. Mas no momento crucial, a estrutura fracassou.

"O sistema falhou miseravelmente", lamenta Walter Collischonn, professor de engenharia ambiental e engenharia hídrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Como hidrólogo gaúcho, esse fracasso me envergonha", diz à DW.

Anel de proteção: engenharia contra inundações

O projeto foi feito pouco mais de duas décadas depois da grande enchente. A execução começou no início dos anos de 1970. A arquiteta Lígia Bergamaschi Botta ingressou na secretaria municipal de planejamento urbano em 1969 e diz que a obra veio na sequência de um aterramento, que "ganhou" mais área para a zona central.

"O prolongamento da faixa de terra se deu numa costa baixa, com plano de construção de parques, prédios comerciais e de serviços públicos", diz Botta à DW.

O sistema combinava uma série de obras de infraestrutura que formariam um anel em torno da parte mais urbanizada à época e com perspectiva de expansão. Foram projetados 68 quilômetros de diques para barrar a água que transbordasse do rio Jacuí e do Guaíba. Novas avenidas e estradas surgiram sobre os diques.

No meio do caminho, estava a antiga avenida Mauá. A solução para fechar o anel de proteção foi construir um muro de pouco mais de dois quilômetros de extensão todo de concreto para suportar a carga trazida por uma cheia. Ele tinha portões – para permitir a passagem de um lado para o outro – que seriam lacrados com chapas de metal para barrar a entrada da água em caso de alerta de inundação. O projeto previa ainda 20 casas de bomba para jogar para fora do anel de proteção água e esgoto em excesso que entrasse na cidade.

"As falhas se deram nos pontos de abertura do muro. A água passou por cima em alguns pontos. As comportas não foram bem vedadas. E no momento crucial não teve energia elétrica para bombear água de dentro para fora do sistema. Foi um descuido de décadas", analisa Collischonn.

Botta lamenta o descaso e a falta de confiança na ciência. "Lamentavelmente, todo o sistema não teve uma manutenção adequada. As comportas já estavam bastante abauladas. Faltavam parafusos. Um dos portões veio abaixo com a força da água", diz.

Derrubar ou não?

Apesar das falhas, a ausência do muro da Mauá teria provocado ainda mais perdas, avalia Botta. Nos últimos anos, a estrutura projetada para funcionar como uma cortina de proteção era o centro de uma campanha para sua demolição. O atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, sugeriu em vários momentos a sua destruição alegando que o paredão atrapalhava a vista do Guaíba.

"Era um bombardeamento de grupos interessados em derrubar. Se ele fosse destruído, todo o sistema seria anulado", adiciona Botta.

Quanto tempo será preciso para reconstruir o RS?

Natural de Lajeado, cidade no vale do rio Taquari atingida duramente pelas chuvas extremas recentes, Collishonn conviveu com enchentes na infância. O campo de esporte da escola era inundado com frequência, e a memória de pessoas que perdiam tudo segue viva. Foi nesta região onde mais pessoas morreram durante as cheias em 2024.

"No vale, não existe sistema de proteção. O nível da água lá pode subir 15 metros em 24 horas pela situação natural da geografia. Mas na área da região metropolitana de Porto Alegre, o nível não sobe tão rápido assim. Então dá tempo para se preparar", pontua o pesquisador.

O sistema projetado na década de 1960 ainda é considerado atual por fontes ouvidas pela DW. "Existem outros muito mais complexos e caros. São soluções que exigem obras de grande vulto. Mas o nosso sistema funciona bem em países como Holanda", analisa Botta.

Collishonn defende o reforço das estruturas de proteção e uma compreensão da sociedade sobre seu funcionamento. "No sul do Brasil, as estimativas são de que as cheias vão aumentar. O que está acontecendo nos últimos anos pode ser o cenário do século 21", afirma com base num projeto em andamento entre a universidade e Agência Nacional de Águas que projeta as vazões máximas dos rios por influências das mudanças climáticas.

Questionada pela DW, a prefeitura de Porto Alegre não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Como reconstruir no atual cenário

A engenharia, sozinha, não vai salvar as cidades dos impactos trazidos peloseventos climáticos extremos. Segundo especialistas ouvidos pela DW, a gestão dos riscos e a honestidade dos governantes – sobre o que eles irão fazer de fato para proteger os habitantes – são primordiais.

"Engenharia é muito importante, prevenção e educação também são muito importantes", avalia Pedro Chafre, pesquisador do laboratório de hidrologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mencionando ainda mapeamento de áreas de risco e implantação de sistema de alerta.

"Tem que se reavaliar as estruturas que existem, entender se elas estão dimensionadas de maneira apropriada considerando as mudanças climáticas e os regimes de cheia já observados", pontua Chaffre, referindo-se a pontes, aeroportos, subestações elétricas, estações de tratamento de água, esgoto e outras estruturas que mantêm cidades funcionando.

O roteiro para manter as cidades seguras, diz Botta, já é conhecido há tempos. "O planejamento urbano tem que ser levado a sério. Existem leis sobre áreas que não devem ser ocupadas. Mas as autoridades fazem vista grossa", justifica.

Como exemplo, a arquiteta cita o caso de Eldorado do Sul, município que surgiu como assentamento irregular construído numa área vulnerável a cheias. Depois das chuvas extremas recentes, ele foi praticamente destruído.

Para Collischonn, enquanto todos tentam nomear os responsáveis, a culpa não é exclusiva de um governo, ou de outro. "É um descaso da nossa geração com legado que a geração passada, que tinha sofrido a pior enchente, nos deixou. Agora uns acusam os outros. Mas o fracasso é nosso como sociedade", diz.

Enchentes no Rio Grande do Sul: o que deu errado?

Quando as chuvas no Rio Grande do Sul começaram, Roberlaine Ribeiro Jorge estava em uma viagem de negócios à Europa e aos Estados Unidos. Ao retornar, o professor universitário encontrou seu estado natal numa situação deplorável. "Pensei que era mais um período de chuvas intensas. Era inimaginável a proporção que chegou", diz o especialista em recursos hídricos e higiene ambiental. "Eu trabalho na área, então faz parte da nossa rotina lidar com esses fenômenos climáticos. Mas foi assustador."

As piores enchentes da história do Rio Grande do Sul deixaram cerca de 150 mortos, mais de 100 desaparecidos e mais de 600 mil desalojados ou desabrigados. A vida pública está praticamente paralisada. Ao todo, mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas pela tragédia diretamente.

Eventos climáticos extremos, como ondas de calor e chuvas fortes, não são raros no sul do país, e houve uma série deles somente nos últimos meses. Sabe-se que a mudança climática intensifica esses eventos extremos; sabe-se também que eles estão sendo exacerbados atualmente na região pelo fenômeno climático El Niño. Isso levanta a questão: não era possível ter se preparado melhor?

Sistema de defesa civil pouco preparado

O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva já reconheceu as deficiências na defesa civil, dizendo que o país "não estava preparado" para um desastre dessa magnitude. Segundo uma pesquisa do instituto Quaest, a maioria dos brasileiros também acredita que a tragédia poderia ter sido evitada.

Mas onde exatamente ocorreram as falhas? Os alertas meteorológicos de que haveria chuvas fortes foram emitidos com cerca de cinco dias de antecedência, explica Gean Michel, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mesmo assim, pouco foi feito até o início efetivo das chuvas intensas em 29 de abril. A preparação de longo prazo para eventos climáticos extremos também foi inadequada. 

"Há quase um século, nós sabemos que problemas como esse podem acontecer na região. Então não existe absolutamente nenhuma justificativa para que não tenhamos tomado as medidas corretas para que estivéssemos prevenidos e preparados", afirma Michel. "Precisamos, em primeiro lugar, ter uma defesa civil, um sistema de defesa civil muito bem preparado nas diversas escalas."

Em 2012, uma lei nacional estabeleceu a criação de um sistema de defesa civil, que a organiza em vários níveis. Ela previa a instituição de um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNDC), visando identificar as áreas sujeitas a riscos de desastres no Brasil. Mas 12 anos depois, esse plano nunca foi lançado. "A lei existe, ela vale, mas ainda não foi de fato implementada", critica o especialista em desastres ambientais.

Michel explica que em municípios pequenos, por exemplo, a Secretaria de Defesa Civil muitas vezes consiste em apenas uma pessoa que tem pouca ou nenhuma experiência em gerenciamento de risco de desastres. "E geralmente não é um cargo permanente que exista um concurso público. Então, muitas vezes, a pessoa vai ficar só quatro anos e não consegue acumular conhecimento para ser aplicado em gestão de risco de desastres no município."

Barcos atracados na enchente, ao lado da Usina do Gasômetro em Porto ALgere
Eventos climáticos extremos não são raros no país. Não era possível ter se preparado melhor?null Marcelo Oliveira/ZUMAPRESS/picture alliance / ZUMAPRESS.com

Problemas estruturais

Os problemas estruturais também ficaram evidentes durante o atual desastre no Rio Grande do Sul. As estruturas existentes para proteção contra inundações, incluindo diques, comportas e bombas, não recebem manutenção adequada ou sequer são renovadas há décadas.

"Em Porto Alegre especificamente, o limite de inundação [desses sistemas de proteção] seria de seis metros. E o nível da água ficou em 5,35 metros. Ou seja, antes de atingir a cota, o sistema colapsou", explica Roberlaine Jorge, que leciona na Universidade Federal do Pampa.

As bombas, por exemplo, não foram capazes de bombear a água para fora da cidade porque estavam inundadas e não funcionaram debaixo d'água. A tecnologia já avançou há muito tempo: no cultivo de arroz, por exemplo – um fator econômico importante no Rio Grande do Sul, que responde por 70% da produção nacional do cereal –, agora são usadas bombas localizadas em um tipo de bote inflável que sobem com a água à medida que o nível aumenta.

Jorge avalia que também são necessárias mudanças na área de planejamento urbano. Muitos moradores vivem muito perto da água, algumas vezes até contrariando as normas. Segundo ele, engenheiros, arquitetos e ambientalistas devem se perguntar cada vez mais como a urbanização e a impermeabilização do solo podem ser melhor gerenciadas.

Por que o Rio Grande do Sul nunca mais poderá ser o mesmo

Além disso, falta uma boa comunicação por parte do poder público para instruir a população sobre como reduzir riscos e como se comportar em determinadas situações. Gean Michel alerta para a importância de uma cultura de prevenção, que é muito abordada no Japão, por exemplo, em vista dos muitos terremotos e tsunamis, mas que ainda é incipiente no Brasil.

Uma tragédia com muitos culpados

Por fim, Michel diz que não dá para apontar um único culpado pelas enchentes devastadoras, mas que há uma parcela de culpa em cada esfera que deveria atuar na gestão de riscos.

"O governo federal teve culpa principalmente por não ter investido o quanto deveria em gestão de risco de desastres. O governo estadual também tem sua parcela de culpa por não ter se organizado. E os governos municipais vão ter sua parcela de culpa por não terem implementado."

O especialista lembra que o desastre na região serrana do Rio de Janeiro em 2011 funcionou como uma alavanca para a proposição de medidas e políticas de prevenção de desastres, mas que esse investimento foi diminuindo com o passar dos anos.

"Desde 2011, nós tivemos uma crescente no investimento em gestão de risco de desastres, mas só por um período. Depois que esse desastre foi 'esquecido', os investimentos começaram a baixar. Nos governos, por exemplo, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, os investimentos foram ruins", afirma. "A expectativa é que o atual governo volte a investir fortemente nisso. O que precisamos fazer é saber investir esse dinheiro de maneira correta na gestão de risco, focando na prevenção."

O fato de as fortes chuvas no Rio Grande do Sul terem causado tantos danos e custado tantas vidas deve-se, em última análise, à combinação de muitos fatores diferentes. A esperança continua sendo a de que o desastre climático leve a uma reformulação duradoura na política, em vez de uma reformulação temporária, como sempre aconteceu no passado.

 

"Não dá para imaginar que podemos seguir a vida normal"

Depois de inundações devastarem o Rio Grande do Sul, vídeos com declarações de 2022 do ecólogo Marcelo Dutra da Silva viralizaram nas redes sociais. No vídeo de um discurso durante uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Pelotas, ele previa as possíveis enchentes no estado.

No discurso, ele fala sobre a mudança no padrão de chuvas no estado, chances de inundações em mais cidades gaúchas e questionava quais providências seriam adotadas para prevenir possíveis desastres. Professor da Universidade Federal do Rio Grande (UFRG), Marcelo Dutra da Silva realizou um levantamento de indicadores de temperatura e precipitação ao longo de 50 anos (1971 a 2021), e constatou a elevação nesses padrões, que levaram a verões mais quentes e invernos menos intensos. Segundo ele, essa combinação somada ao avanço da área urbana contribuiu para as enchentes.

Em entrevista à DW, ele defende medidas de mitigação e adaptação para responder a novos eventos extremos em planos diretores de cidades. "Não dá para imaginar que podemos seguir a vida normal, que este evento não vai se reproduzir mais. Isso seria errar de novo", ressalta

DW: Há anos, o senhor faz alertas sobre mudanças no padrão de chuvas e enchentes. Haveria tempo hábil para implementar algum tipo de medida para mitigar os efeitos do desastre?

Marcelo Dutra da Silva: Tivemos um evento em 2022, e outros em 2023, e lá para cá, nós fizemos muito pouco, praticamente nada, não nos preparamos para isso, pelo contrário. Os indicadores mostravam que havia uma possibilidade de acontecer eventos repetidos. Mesmo que este evento não tivesse sido tão grande, se tivesse sido parecido com o de 2023, já seria importante o suficiente para fazer algo para diminuir os riscos.

As cidades do Vale do Taquari ainda estavam se reconstruindo. Depois de serem atingidas em 2023 mais de uma vez, agora foram severamente devastadas. Isso quer dizer que não dá para cometer esse erro de continuar tentando não reconhecer que as mudanças climáticas estão no nosso cotidiano. Precisamos começar a fazer melhor e diferente.

O atual desastre tomou praticamente todo o estado no Rio Grande do Sul. Na fase de reconstrução, o estado pode se tornar um exemplo para outras cidades no Brasil?

Percebemos que os gastos em recuperação de estragos são muito maiores do que o investimento em contextos para evitar que isso se repita. Não se tem considerado a necessidade de prever novos eventos, então as cidades não estão sendo preparadas para esses novos eventos e simplesmente se reproduz os erros sucessivos.

Isso não pode mais acontecer. Todos os municípios precisam de planos diretores, porque ele é o plano de cidade. Todos os municípios vão ter que incluir ou revisitar os seus planos, seus planejamentos, seus instrumentos de planejamento e incluir um instrumento importante, que praticamente nenhum município possui, que é um plano de emergência climática.

Todo o município precisa de um plano de emergência climática. Sem este plano fica muito difícil reconhecer regiões mais vulneráveis.

Já atingimos um ponto de não retorno?

Sempre tem o que fazer. O que não dá para imaginar é que podemos seguir a vida normal, que este evento não vai se reproduzir mais. Isso seria errar de novo. Eles vão continuar acontecendo. O que não tem retorno é essa mudança, ela vai continuar. Precisamos atenuar os efeitos. Do ponto de vista climático, a realidade está posta, e essa não tem volta. Mas o que pode ter volta é a nossa atitude em relação a essa resposta.

O senhor pode detalhar esse plano de emergência climática?

O plano de emergência climática precisa conversar intimamente com os demais instrumentos de planejamento, mas especialmente com o plano diretor. Há uma necessidade de vários instrumentos e todos eles devem de alguma forma se conversar.

Mas o plano de emergência climática é significativo na medida em que eu reconheço as zonas de maior vulnerabilidade no contexto daquele município. Quando se olha para os municípios do Vale do Taquari, se eles estiverem muito próximos ou inseridos no leito do corpo hídrico, não se pode mais ter esta situação, há uma vulnerabilidade muito grande.

Então, um plano de emergência climática significa que esses locais mais vulneráveis precisam ser devolvidos para a natureza, e aquela parcela urbana migrar para uma outra região mais segura dentro do mesmo contexto. Tem gente que me pergunta se essa mudança é pegar a cidade daqui e transferir de estado, mas não. O que estou dizendo sobre a cidade se reposicionar dentro do contexto é para se reposicionar numa parcela de terreno mais segura, uma cota mais segura, mais distante daquela zona de risco que frequentemente é atingida por chuvas volumosas.

Essa perspectiva de desastre emitida pela ciência tem sido ignorada?

Já era ignorada antes e está sendo ignorada agora. Não é hábito das administrações públicas escutarem o parecer de quem estuda, de quem de quem entende um pouco das questões ambientais, porque essa pessoa é vista normalmente como alguém que é anti-desenvolvimento ,anti-cidade ou ‘anti' alguma coisa.

Como a política respondeu a esses alertas?

Ao longo do tempo, leis e normas foram flexibilizadas, e ficou fácil avançar sobre o terreno, sobre áreas que não se recomendam. Havia impedimentos, havia entraves e aos poucos esses impedimentos e entraves encontrados na lei, sobretudo nos planos diretores, foram sendo suprimidos e retirados. Isso acontece dentro das casas legislativas. É lá nas câmaras de vereadores que essas votações ocorrem e que essas vulnerabilidades são ampliadas, porque quem mexe nisso, mexe sem entender e sem compreender que avançar sobre determinados terrenos é um verdadeiro perigo.

Isso ocorreu em vista de um projeto eleitoral?

Está ligado a muitas coisas, à negação, à falta de compreensão, à ignorância pura. Na prática o que interessa é que isso nos levou a ter situações como as que vivemos hoje, de pura apreensão, tentando apagar um incêndio, e pior, esse incêndio está nos pegando.

Enchentes vão deixar "cicatriz eterna", diz Jorge Furtado

O cineasta Jorge Furtado é conectado a Porto Alegre por sua certidão de nascimento e por sua obra. Seus filmes são conhecidos por usar bairros da capital gaúcha como cenário, desde Ilha das Flores – filmado em uma das ilhas do Guaíba que estão agora submersas – ao 4°Distrito, ao lado do lago, também debaixo d'água.

O cineasta mora no Bairro Rio Branco, em um ponto alto da cidade, em um andar alto de um prédio. Está seguro, mas tem passado os dias engajado em campanhas de doação, e acompanhando, apreensivo, a subida no nível do lago Guaíba, que vê da janela de seu apartamento.

"Só estando aqui para entender. A imprensa está cobrindo muito bem, mas o volume, o tamanho da coisa, não cabe na tela. Vai ser um marco, uma cicatriz eterna na história da cidade", afirma.

Jorge Furtado
"Só estando aqui para entender", conta Jorge Furtadonull Privat

Em entrevista à DW, Furtado fala sobre a dimensão da tragédia, o impacto para a cidade e para o setor cultural, e lembra da infância ouvindo histórias sobre a grande enchente de 1941.

DW: Como o senhor vê a situação que está se desdobrando ao seu redor?

Jorge Furtado: O Brasil já viveu muitas tragédias, deslizamentos, alagamentos. O que há de totalmente inédito na tragédia gaúcha é a sua proporção. Nunca aconteceu nada parecido na história do Brasil.

Já passamos de meio milhão de pessoas desabrigadas, longe de casa, que perderam tudo, que não têm para onde voltar. E esse número não para de crescer. É como se uma cidade como Santos, Niterói, Feira de Santana, sumisse.

Aqui, todo mundo conhece alguém que perdeu tudo. Só estando aqui para entender. A imprensa está cobrindo muito bem, mas o volume, o tamanho da coisa, não cabe na tela. Vai ser um marco, uma cicatriz eterna na história da cidade.

Eu não tinha nascido na grande enchente de 1941, mas sempre ouvia histórias a respeito na infância, as pessoas criaram expressões. Imagina com essa, que foi ainda maior.

Que histórias o senhor ouvia sobre a enchente de 1941? A que expressões se refere?

Surgiu uma expressão que falava no "abobado na enchente". Na minha infância se dizia, "ó o abobado da enchente!". Era alguém que ficava parado, ouvindo, sem reação. Essa expressão durou. Eu imaginava que era referência a alguém parado observando o desastre, vendo tudo alagado.

Cena de "Ilha das Flores"
Apesar do nome, o filme "Ilha das Flores", de 1989, dirigido por Jorge Furtado, foi filmado em outra ilha do Guaíba, a dos Marinheiros. Ambas estão completamente submersas. null Casa de Cinema de Porto Alegre

Mas agora a expressão mudou de sentido para mim. Acho que fala dos sem esperança da enchente. São pessoas que não tem para onde ir, que ficam vagando pela cidade, que moravam nas zonas de risco, em condições precárias, e perderam tudo. Porque nessas horas, claro, os mais pobres perdem muito mais e sofrem muito mais. E agora chegou o frio. Ainda por cima vão enfrentar o frio rigoroso do inverno gaúcho.

Essa tragédia causa uma ruptura para a cidade e sua memória, representada em seus prédios, museus, centro histórico?

A cidade pode ser reconstruída. As vidas perdidas, essas não podem. E as memórias também – tem gente que perdeu fotografias, álbuns de família, documentos. Mas a cidade vai ser reconstruída, e temos que reconstruir de outro jeito. Temos que repensar a cidade. As pessoas não vão querer voltar, construir coisas, planejar um futuro em um lugar que pode ser destruído de novo daqui a pouco. Temos que repensar tudo.

Diante dessa perspectiva de reconstrução, assusta pensar no que as mudanças climáticas podem trazer de imprevisível, de inesperado?

Temos que repensar o que chamamos de inesperado. Na verdade, era esperado. Há anos que o governo relaxa as leis de proteção ambiental, das matas ciliares. Que dá incentivos para o carvão. Está permitindo cada vez mais desmatamento. Só andamos para trás nesse sentido, no Rio Grande do Sul também, há muito tempo.

Cena do filme "Antes que o mundo acabe", de 2009
Cena do filme "Antes que o mundo acabe", de 2009, com direção de Ana Luiza Azevedo e com roteiro de Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. A passarela da imagem foi destruída para construção de corredor humanitário na entrada de Porto Alegre, ao lado da rodoviária que está debaixo d'água. null Casa de Cinema de Porto Alegre

No momento em que o Porto Alegre está embaixo d'água, o Congresso tem um projeto de lei que me deixa abismado. Na Amazônia, a lei diz que o proprietário só pode desmatar 20% do terreno e tem que manter 80% de floresta. Há um projeto para mudar isso para 50%-50%. Se com a lei atual já se destrói desse jeito, imagina o que vai acontecer com a Amazônia se aumentar a margem legal para 50%?

Estão fazendo isso, e chove no Sul. Chove torrencialmente. Tudo está ligado. A Amazônia e o Sul estão ligados por uma corrente de ar úmido que vem do Norte. O que acontece na Amazônia acontece aqui. Acontece no mundo inteiro.

Porto Alegre tem um histórico de alagamentos, e tem um sistema de proteção para drenar água e evitar enchentes. O sistema falhou?

Houve descaso e despreparo, e falta de manutenção do sistema de diques e bombas para proteger a cidade. Quando alagou, não funcionaram. Chegamos a ter só quatro das 23 casas de bombas funcionando.

Houve um momento que nos marcou muito aqui. A água entre o muro e a cidade estava em um nível maior do que a água entre o muro e o rio. Ou seja, o muro estava impedindo que o centro da cidade esvaziasse. Em vez de proteger a cidade do rio, ele funcionou como um aquário.

Cenas do filme "O Homem que Copiava", de 2003
Cenas do filme "O Homem que Copiava", de 2003. Ponte do Guaíba, onde foi filmada cena com o ator Lázaro Ramos, foi interditada por tempo indeterminadonull Casa de Cinema de Porto Alegre

Não era inesperado. Aconteceu em 1941 e veio a acontecer agora. Mas, agora, já aconteceu três vezes – duas no ano passado, e agora ainda pior.

Os gaúchos, que sabem que aconteceu em 2023 e estão vendo que aconteceu em 2024, estão bastante preocupados com o que possa vir a acontecer em 2025. Pode ser que demore – tomara – para acontecer de novo. Mas pode acontecer de novo.

O senhor acha que a proporção dessa catástrofe pode ajudar a determinar um ponto de inflexão na política, no Congresso, onde os temas ambientais são defendidos por uma absoluta minoria?

As pessoas não se importam em proteger as florestas, os rios. Querem vender soja, arroz e trigo, ou seja o que for, no mês que vem, na semana que vem, para a China. O imediatismo que visa o lucro não pensa que estamos destruindo a própria fonte do lucro. O agronegócio, que é poderosíssimo e sustenta o país em grande parte, pode estar dando um tiro no pé. O Rio Grande do Sul pode se tornar um lugar inviável, para o negócio deles, inclusive.

Temos que pensar nisso. Não é só pensar na sobrevivência do planeta e nos nossos filhos e netos. É pensar também na economia do estado.

E no setor cultural? Como as pessoas que trabalham com cinema, teatro e outras áreas estão lidando?

O que a gente faz nessas horas? A gente se une, porque a tribo da arte é muito unida. Todo mundo está ajudando e se mobilizando como pode, abrigando pessoas, fazendo clipes e vídeos para impulsionar vaquinhas e pedir doações. As pessoas precisam de água, roupas, comida, abrigo, inclusive do nosso meio. Conheço várias pessoas da produção que perderam tudo. Casa com água no teto.

O Caetano e a Bethânia gravaram o Menino Deus, uma música que fala de Porto Alegre, e cederam os direitos chamando para uma vaquinha para os artistas do Rio Grande do Sul. Porque fazer teatro, filmar, fazer show... Tudo isso vai ser inviável por um bom tempo, não só pela água, mas pelo clima na cidade. O setor vai demorar para se recuperar. E quem perdeu tudo também vai ficar sem trabalho. Então, essas pessoas precisam de apoio.

O senhor é conhecido por trazer Porto Alegre para o cinema como cenário de seus filmes. As áreas em que filmou foram muito afetadas?

Todas. O homem que copiava se passa todo no Quarto Distrito – todas aquelas ruas, a Presidente Roosevelt, tudo ficou baixo de água. Em Meu tio matou um cara, todas as áreas em que a gente filmou, as cenas da beira do Guaíba. O filme Ilha das Flores se passa na Ilha dos Marinheiros, que está submersa, assim como a Ilha das Flores e as outras ilhas do Guaíba.

Cena do filme "O Homem que Copiava"
Cena com os atores Lázaro Ramos e Leandra Leal, em "O Homem que Copiava", foi filmada próximo dos armazéns do Cais Mauá, que está debaixo d'águanull Casa de Cinema de Porto Alegre

O Saneamento Básico é um filme que filmamos em Santa Tereza, uma cidade perto de Bento Gonçalves. Ela foi muito afetada duas vezes no ano passado. E esse ano, agora, de novo. Luna Caliente eu filmei em Rio Pardo, São Lourenço do Sul. Tudo embaixo d'água. Atingiu uma parte muito grande do estado, muitos municípios.

É triste. Espero voltar para esses lugares e filmar de novo. Espero que eles se recuperem. Enfim, espero que passe, né? Espero que o George Harrison tenha razão. "Here comes the sun". E está vindo, semana que vem vai ter sol.

O prolongamento dessa tragédia é assustador, porque é uma enchente chega e não passa. Como será superar isso?

Espero que a gente aproveite essa tragédia horrível, essa desgraça, para repensar a cidade e transformar Porto Alegre. Já que está destruído, vamos fazer direito, vamos fazer uma cidade mais sustentável, mais justa, uma cidade para o futuro, que pense as mudanças climáticas e esteja preparada para elas.

Porque elas já aconteceram. Nós não vamos reverter toda a destruição que fizemos no planeta em tão pouco tempo. Como vamos viver nesse novo planeta? Como vamos lidar com a água? Como vamos lidar com o transporte público, com a impermeabilização excessiva que fizemos do solo, com a ocupação de zonas de encostas e à beira do rio?

Precisamos repensar a cidade para ela ser durável, para não estarmos aqui de novo daqui a 10, 20 anos, dizendo que tudo se destruiu de novo. Isso pode ser uma oportunidade que São Pedro, padroeiro do Estado e senhor das chuvas, está nos dando.

Na Alemanha, brasileiros e alemães se unem para ajudar o RS

"A gente se sente muito impotente, sem poder estar perto dos familiares, não tendo como ajudar pessoalmente", desabafa a consultora jurídica gaúcha Renata Oliveira Araújo. A sensação de impotência fez com que ela e o enfermeiro Pedro Henrique Rodrigues organizassem com amigos em Münster, no oeste da Alemanha, um evento para angariar fundos para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.

"Foi espontâneo", conta. "Surgiu com a comunidade brasileira aqui em Münster e com ajuda do grupo Alle Zusammen, que promove encontros para integração de estrangeiros e refugiados".

Pares de jovens dançam em área de parque
Aula de forró: evento em Münster coletou dinheiro para vítimas das enchentes no RSnull Pedro Henrique Pereira Rodrigues

No domingo passado, eles então montaram uma festa ao ar livre em um parque da cidade, onde venderam pão de queijo, brigadeiro e pratinhos com arroz, feijão e farofa. Tudo troca de doações. Teve até uma oficina de forró. "Conseguimos arrecadar mais de 700 euros", afirma. A quantia equivale a quase R$ 4 mil. "Mas achamos que ia ser menos, porque não teve tanta divulgação. Foi uma surpresa muito positiva", comemora Araújo.

"Agora estamos planejando mais um ou dois eventos com mais organização, envolvendo música, em outros lugares, para conseguirmos mais fundos para a reconstrução do Rio Grande do Sul", diz ela, que é de Porto Alegre. "Graças a deus, minha família mora em uma área da capital que não foi afetada, só está sofrendo outras consequências, como falta de água e de luz. Mas a família do meu marido, é de Estrela, uma das cidades mais atingidas. E lá eles foram bastante prejudicados."

Fernanda Buffé , Brasilianerin die in Göttingen
Fernanda Buffé: "Agora é a vez de arrecadar dinheiro para o meu país"null privat

Morador de Wuppertal, oeste da Alemanha, o técnico em TI David Mross, informa ter conseguido arrecadar 742 euros (R$ 4.120) em apenas uma semana através do portal Betterplace, plataforma digital alemã especializada em coleta de doações filantrópicas. O dinheiro, ele conta, será destinado principalmente aos desalojados da enchente que foram acolhidos por uma filial da Assembleia de Deus em Cachoeirinha, cidade de onde ele vem, situada na Região Metropolitana de Porto Alegre.

"O pastor da igreja é meu cunhado, casado com minha irmã, que é pastora", explica. "A situação lá está um caos. Eles abriram a porta da igreja e receberam mais de 200 pessoas, que estão distribuídas em colchões, no salão da igreja", diz David. "Elas perderam tudo. E graças a Deus e por doações, conseguiram providenciar colchões, roupa de cama, alimentos", conta Mross, que também dirige em Wuppertal o Bola Brasil, projeto social de futebol envolvendo crianças estrangeiras de 13 nacionalidades.

Venda de bolos beneficente

A professora de educação física gaúcha Fernanda Buffé também abriu nesta semana uma conta na mesma plataforma online, visando doações para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Moradora de Göttingen, ela, além disso, organizou um estande para vender no fim de semana, com mais três outros brasileiros, bolos doados por cerca de 15 famílias brasileiras que moram na cidade. "São receitas bem brasileiras, bolo de abacaxi, coco, banana", enumera. O ponto de venda será na feira pública que ocorre regularmente no centro da cidade, em frente a uma igreja católica, a de St. Michael.

Os detalhes burocráticos sobre licenciamento da barraca foram resolvidos pela própria paróquia. "Eu conheço uma moça que trabalha na igreja, onde já participei de muitas ações como voluntária em prol países da América Latina", explica Buffé. "Agora é minha vez de arrecadar fundos para o meu país."

Homem de óculos escuros passa um pratinho de plástico para outro homem de chapéu
Pratinho com arroz, feijão e farofa em troca de doação em evento em Münsternull Pedro Henrique Pereira Rodrigues

Ela planeja ainda outras ações de venda de roupas e de brinquedos usados em feiras na cidade, para conseguir mais fundos. As verbas devem ser destinadas a uma das áreas mais atingidas do município de Canoas, o qual contabiliza o maior número de mortos pelas enchentes, e onde ela mesma já trabalhou, antes de morar na Alemanha, em projetos esportivos para crianças carentes. "A gente está priorizando o bairro Matias Velho, onde de 90% a 95% dos moradores perderam suas casas. É um dos mais afetados na região."

Rifa para show da Marisa Monte

Já o grupo da comunidade gaúcha na Alemanha "Gauchada em Deutschland", do Facebook, já conseguiu mais de 2 mil euros (R$ 11 mil) em doação através de uma rifa. Nela, os participantes doam para uma instituição ou pessoa física de sua confiança, em prol da reconstrução do Rio Grande do Sul e, mediante comprovação, recebem um número para cada 10 euros doados. Entre os prêmios, estão dois ingressos para shows na Alemanha, da cantora Marisa Monte e do humorista suíço Alain Frei, além de vale-compras nos valores de 100 euros e 50 euros, respectivamente, para segundo e terceiro prêmios.

"De forma geral, estamos bem emocionados em ver tantas pessoas se engajando de forma tão carinhosa e solidária em ajudar o povo gaúcho. Já diz o ditado gaúcho: 'não tá morto quem peleia'", festeja uma das promotoras da ação, a empresária gaúcha Laura Fritzen, que mora em Overath, nos arredores de Colônia, oeste da Alemanha.

A entidade beneficente alemã Aktionsgruppe Kinder im Not, que ajuda projetos assistenciais para crianças na Índia, Filipinas e Brasil, também lançou em seu site uma campanha de doação especificamente para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Até agora foram arrecadados 3 mil euros (R$ 16,7 mil). Dois terços da quantia vieram de uma maratona beneficente realizada anualmente em prol da instituição, que neste ano teve parte do valor obtido dedicada à catástrofe no Brasil.

"Em Porto Alegre, financiamos há muitos anos um projeto, e para é lá que enviaremos esse dinheiro", afirma Claudia Kirschbaum, da Aktionsgruppe Kinder im Not. Ela explica que a verba arrecadada será destinada ao Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA), na capital gaúcha, que recebe regularmente ajuda da instituição alemã e que agora está abrigando, em caráter emergencial, mais de uma centena de desabrigados pelas enchentes.

Visgta aérea de cidade alagada
Município gaúcho de Canoas registrou o maior número de mortos pelas enchentes no RSnull Mateus Bonom/Anadolu/picture alliance

Outra instituição de caridade alemã, a Franziskaner Helfen ("franciscanos ajudam"), ligada à ordem dos franciscanos, já obteve em poucos dias 7 mil euros (R$ 39 mil) para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Esse dinheiro, obtido principalmente através de uma campanha de doações aberta no site da organização, será encaminhado aos frades franciscanos que atuam em projetos assistenciais no estado.

"Nossos doadores são muito sensíveis, e têm grande apego ao trabalho dos frades franciscanos, que estão muito presentes e ajudam diretamente no local", ressalta Horst Staab, responsável pelo diálogo com os doadores da Franziskaner Helfen, entidade que apoia mais de 800 projetos sociais ao redor do mundo.

A poucos quilômetros das fronteiras alemãs, um grupo de brasileiros na Suíça conseguiu obter espaço em aviões de carga da empresa de logística UPS e está convocando quem quer ajudar a doarem roupas de frio para os desabrigados no Rio Grande do Sul. Os agasalhos podem ser entregues em filiais da UPS em seis cidades do país: Zurique, Basileia, Berna, Lausanne Lugano e Genebra. Além disso, o Projeto Deus é Amor está comprando cestas básicas no Brasil e enviando aos desabrigados. "Em breve bateremos a marca de mil cestas básicas", diz a empresária brasileira Bruna Aeppli, moradora da Suíça, que está ajudando na promoção das ações.

Enchentes impõem perdas à cultura e ao patrimônio histórico no RS

No Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, uma tela reproduzida logo na entrada simboliza o começo de um capítulo fundamental da história da região. Nela estão 39 primeiros imigrantes alemães, recém-chegados a São Leopoldo em 1824, dando início à colonização alemã no sul do país, 200 anos atrás.

Na semana passada, as águas enlameadas que alagaram a cidade invadiram o museu, subiram mais de um metro e pararam logo abaixo da moldura do quadro na parede. Pouparam a imagem, mas destruíram centenas de outros itens do acervo – documentos, móveis de época, o piano usado em recitais, os artigos da livraria, um harmônio raro que havia acabado de ser doado por um pastor e sua esposa.

As inundações devastaram São Leopoldo após o Rio dos Sinos transbordar, o mesmo usado por imigrantes alemães a partir de 1824 para povoar o entorno. O museu, uma instituição privada fundada em 1959, conta parte dessa história, com acervo composto por doações de famílias da região. A água poupou os arquivos históricos e documentais no segundo andar, como a biblioteca e as centenas de cartas antigas – muitas manuscritas em alemão no estilo gótico.

O museu é uma entre as muitas instituições e patrimônios culturais que sofreram perdas e danos ao longo das últimas semanas. As enchentes históricas que assolam o Rio Grande do Sul impõem prejuízos inestimáveis à cultura e ao patrimônio histórico no estado.

Diante da dimensão da tragédia e da urgência em alocar recursos para a reconstruir o básico – casas, escolas, estradas, infraestrutura – obter os recursos necessários para a cultura será um desafio ainda maior, considera Ingrid Marxen, diretora de relações institucionais do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.

"O impacto vai ser enorme, porque museus não são prioridade", afirma. "Nosso museu é privado e vive de doações, com apoio da prefeitura. Mas todos os nossos mantenedores estão com problemas enormes para resolver. Uma de nossas funcionárias perdeu a casa inteira, não tem mais nada. São momentos muito difíceis que estamos vivendo."

Mutirão para salvar a arte

Em Porto Alegre, a alta histórica do lago Guaíba mantém diversos bairros debaixo d'água há quase duas semanas. No centro histórico, as inundações chegaram a prédios cruciais para a vida cultural da cidade, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e a Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ).

Prefeitura e Mercado Público, no Centro de Porto Alegre, inundados
Prédios históricos do centro de Porto Alegre, como a Prefeitura (e) e o Mercado Público, foram danificados pela cheia do Guaíbanull Gilvan Rocha/Agencia Brasil/picture alliance

Na CCMQ, a enchente alagou o térreo, causando danos à Cinemateca Paulo Amorim, a estabelecimentos comerciais e à Livraria Taverna. Os espaços nos pisos superiores escaparam, como os teatros, a biblioteca e o acervo do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.

Ali ao lado, no Margs, o diretor-curador Francisco Dalcol mobilizou uma corrida contra o tempo para deslocar as centenas de obras de arte que ficavam na reserva técnica do andar térreo para os andares superiores.

Nunca havia entrado água no museu, fundado em 1954, depois da grande enchente de 1941. Quando ficou claro que seria uma cheia sem precedentes, entretanto, Dalcol convocou cerca de 20 colaboradores para evacuar a reserva mantida no antigo cofre do prédio, construção da década de 1910 que antes era uma delegacia fiscal.

No dia 3 de maio, o trabalho começou cedo e com registros de cada obra deslocada, mas virou uma correria à medida que a água avançava ao redor do prédio. A equipe só parou depois que a Brigada Militar passou a ordenar a evacuação da área, a energia elétrica foi cortada e a água cobriu os pés de quem estava dentro do museu. 

A operação salvou a maioria das obras da reserva, incluindo de artistas como Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Iberê Camargo. Porém, não foi possível remover as pesadas mapotecas, arquivos que guardam desenhos e gravuras. Essas obras ficaram suspensas nas partes altas da reserva, sujeitas à umidade, e ainda estão inacessíveis.

"Estamos em pleno trauma. Temos sido reconhecidos como heróis, mas não me sinto contemplado nisso, porque ainda não ultrapassamos a tragédia", diz Dalcol. "Minha grande preocupação, agora, é a água não subir mais. Se houver risco de atingir o primeiro andar do museu, vamos ter que acessar o museu de bote e remover as obras."

Uma coincidência acabou favorecendo o salvamento das obras: o Margs está comemorando 70 anos, e por isso os clássicos de seu acervo já estavam expostos nos andares superiores para marcar a data, o que ajudou a salvá-los. Mas também aqui há um lado doloroso: o museu havia acabado de passar por um minucioso restauro coordenado pelo Iphan.

"Estávamos dando um trato no museu. Havíamos trocado o sistema de climatização, ele estava todo pintado, novinho", lamenta Dalcol, que tem encontrado alento nas manifestações de apoio em prol da reconstrução. "O prédio está de pé, mas a parte elétrica, hidráulica, a rede de esgoto, tudo fica comprometido. Teremos muito trabalho pela frente para voltar a funcionar."

A depender de sua gestão, o térreo do museu "nunca mais terá nada", podendo se tornar "uma espécie de memorial" desse episódio tão trágico.

Cultura sem trabalho

A comoção despertada pelas enchentes vem mobilizando campanhas por doações para o setor cultural, voltadas para o audiovisual, a música, o teatro, as artes, escritores, bibliotecas, livrarias.

Um exemplo é a gravação feita por Caetano Veloso e Maria Bethânia da canção Menino Deus, de Caetano, inspirada em um bairro de Porto Alegre. A dupla cedeu os direitos do vídeo para uma campanha de arrecadação em prol de artistas e trabalhadores da cultura no Rio Grande do Sul.

O cineasta gaúcho Jorge Furtado, conhecido por usar Porto Alegre como cenário para seus filmes, ressalta que nunca aconteceu nada parecido na história do Brasil – de uma vez só, mais de meio milhão de pessoas desabrigadas, tendo perdido tudo, ou quase tudo. Quem não perdeu, conhece alguém que perdeu.

"O que a gente faz nessas horas? A gente se une, porque a tribo da arte é muito unida. Todo mundo está ajudando e se mobilizando como pode, abrigando pessoas, fazendo clipes e vídeos para impulsionar vaquinhas e pedir doações", diz Furtado.

"As pessoas precisam de água, roupas, comida, abrigo, inclusive do nosso meio. Conheço várias pessoas da produção que perderam tudo e estão com água até o teto da casa. Fazer teatro, filmar, fazer show... Tudo isso vai ser inviável por um bom tempo, não só pela água, mas pelo clima na cidade. Então o setor vai demorar para se recuperar. E quem perdeu tudo também vai ficar sem trabalho."

Patrimônio histórico

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) está mapeando os danos ao patrimônio histórico em todo o estado.

As enchentes atingiram em cheio edificações tombadas no Rio Grande do Sul, como o centro histórico de Pelotas e o núcleo urbano de Santa Tereza, conjunto de casas históricas da imigração italiana que sofreu a terceira enchente em um ano.

De acordo com o presidente do Iphan, Leandro Grass, por ora só é possível "diagnosticar os danos geograficamente", ou seja, mapeando o que é protegido nas regiões alagadas. Só depois que a água baixar será possível detalhar os estragos e as intervenções necessárias.

Grass ressalta que os prejuízos ao patrimônio cultural têm um forte impacto intangível. Não se trata apenas de danos a edificações importantes, mas da perda de símbolos e de referências culturais.

"Os bens culturais fazem parte da história do estado e do país. Essas perdas afetam a autoestima da população e o sentimento de pertencimento", considera.

"É claro que a hora é de dar água, abrigo, roupa, atender às demandas urgentes. Mas o próximo momento será de reconstruir bens ligados à memória, à história, à tradição. O resgate desses lugares é uma forma de resgatar a alegria e a autoestima das pessoas."

Festas dos 200 anos da imigração alemã

No dia 3 de maio, antes de a enchente chegar, Ingrid Marxen teve uma reunião com a prefeitura de São Leopoldo para planejar o desfile dos 200 anos da imigração alemã, previsto para 13 de julho. Saiu do encontro animada, mas deparou-se com a ponte 25 de Julho e a BR-116 fechadas por causa da enchente iminente.

Foi para casa às pressas, arrumou uma mala e rumou para a casa de amigos em Novo Hamburgo, onde está até hoje, em segurança. A cidade segue alagada, e não há como entrar no seu apartamento, no 15º andar de um prédio de 22 pavimentos.

A direção do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo espera reabrir a tempo de festejar o bicentenário da imigração alemã, em 25 de julho. A data marca os exatos 200 anos da chegada do primeiro grupo de imigrantes, aqueles do quadro poupado pela enchente, vindos de Hamburgo.

Museus parceiros da instituição na Alemanha, em Simmern e Kaiserslautern, já se prontificaram a ajudar nos trabalhos de recuperação.

"Seguimos com esse plano, mas temos que esperar a água sair de uma vez por todas para ver o que restou e começar a trabalhar", diz Marxen.

Nesta sexta-feira (17/05), ela e os demais voluntários do museu marcaram um encontro para recomeçar. O plano é dar início à limpeza do museu. Aos 76 anos, Marxen está animada para trabalhar o fim de semana todo. Só depende de parar de chover.

Presença em Cannes "mostra vigor do nosso cinema"

Filme brasileiro selecionado para a 63ª Semana da Crítica do badalado Festival de Cannes, Baby conta a história de um ex-detento que vive um romance com um garoto de programa no centro de São Paulo, em uma relação de paixão, ciúme e cumplicidade. É o segundo longa-metragem do cineasta brasileiro Marcelo Caetano.

"Gosto de pensar nos personagens de Baby como parte de uma resistência. Eles não são vítimas e não aceitam ser colocados nessa posição. É um filme sobre as lutas que nos comprometemos em nossas vidas e as cicatrizes que essas lutas deixam", afirma Caetano.

Baby estreia em Cannes na próxima terça-feira (21/05). É o décimo filme brasileiro na história a ser selecionado para a Semana da Crítica. Organizada pelo Sindicato Francês de Críticos de Cinema, a mostra paralela é competitiva e reúne sete filmes de diretores que lançaram seu primeiro ou segundo longa, selecionados a partir de mais de mil inscritos.

O Festival de Cannes deste ano ainda terá outros dois longas brasileiros: Motel Destino, de Karim Aïnouz, na mostra principal; e A Queda do Céu, de Eryk Rocha, na Quinzena dos Cineastas. "Parece uma boa onda vindo e que seja permanente", diz Caetano.

Em entrevista à DW, o diretor de Corpo Elétrico fala sobre seu segundo longa e sobre sua participação em Cannes.

DW: Em Baby, o romance é vivido por um ex-detento e um garoto de programa. Ao trazer personagens marginalizados para o centro da tela, que tipo de provocação você pretende?

Marcelo Caetano: Os personagens de Baby são fruto de uma pesquisa que realizo há anos no centro de São Paulo. Foram dois longas, três curtas e uma série filmados aqui. Os personagens de todos esses filmes revelam a diversidade local e a enorme mistura de classes, regiões de origem e profissões. E o que une todos esses personagens é a oferta de trabalho formal e informal do centro.

Nossos protagonistas Baby e Ronaldo são, antes de tudo, pessoas que tentam se integrar na metrópole pelo trabalho, ainda que seu ofício não seja visto com bons olhos pela sociedade. Mas é, antes de tudo, trabalho, sobrevivência, se virar como se pode num sistema produtor de desigualdades.

O que os une é o preconceito, a discriminação? Porque todas as características convergem para isso: o ex-detento, o garoto de programa e, claro, a homossexualidade de ambos…

Gosto de pensar nos personagens de Baby como parte de uma resistência. Eles não são vítimas e não aceitam ser colocados nessa posição. É um filme sobre as lutas que nos comprometemos em nossas vidas e as cicatrizes que essas lutas deixam.

Qual sua expectativa quanto à reação do público ao filme?

Espero que o público mergulhe na história desses personagens e os receba com um olhar generoso.

Marcelo Caetano
"Baby é um filme sobre o movimento", afirma Marcelo Caetanonull Divulgação

Depois da ascensão de discursos extremistas nos últimos anos, que de certa forma naturalizaram um pouco comportamentos homofóbicos, ficou mais complicado trazer esse tipo de temática?

Toda a minha geração de cineastas, não só eu, temos lutado há décadas pelo reconhecimento do nosso cinema e das temáticas que trabalhamos. Ali no fim dos anos 2000, quando começamos a fazer curtas, tínhamos um compromisso de fazer filmes com personagens LGBTs, mas que nossos filmes deveriam ser vistos não só em festivais de cinema queer, mas em festivais gerais e também nas salas de cinema comerciais. A comunidade LGBT nos alimenta de ideias e nos dá união política, mas nosso objetivo sempre foi romper bolhas e levar nossas temáticas e linguagem para o máximo de pessoas.

O texto de Cannes para a apresentação do filme diz que se trata de "um melodrama queer, duro e suave ao mesmo tempo, que ilustra, através de um romance atual, a difícil realidade social do país". Qual é a essa realidade social que você mostra, considerando as possibilidades de enquadramento da expressão "difícil realidade social"?

Esse texto, que gosto muito, é uma citação dos críticos que fazem parte da seleção da Semana da Crítica [do Festival de Cannes], então fica complicado eu tentar explicar o que eles queriam dizer ao escolher essas palavras.

O que posso dizer, da minha parte, é que não tento apenas representar a realidade no filme. Eu tenho uma visão sobre o real que fricciona com a de todos os artistas envolvidos no filme, tanto elenco quanto equipe. Então são visões que se cruzam, que se somam ou que batem de frente e isso tudo gera o filme, como obra coletiva. Fora que eu também acho que não é só do real que estamos falando. Baby é fruto de um olhar artístico que parte da realidade, mas que é influenciado por diversas outras esferas da sensibilidade como a imaginação, o sonho, os desejos.

Quão é importante estar em Cannes, para sua carreira?

A Semana da Crítica tem por vocação revelar diretores em primeiro ou segundo longa. Então é um espaço para descoberta de novas autorias e olhares. Eu me sinto bastante honrado de estar nessa seleção, foram mais de mil inscritos para apenas sete longas selecionados.

E existe todo um histórico da Semana que é bastante interessante pelos nomes que ali foram revelados. Diretores brasileiros como Paulo César Saraceni, Jorge Bodanzky, Cacá Diegues, entre outros. E se formos ver os nomes estrangeiros temos Wong Kar Wai, Alejandro Iñarritu, Ken Loach, Julia Ducournau... Dá um frio na barriga só de imaginar a responsabilidade que é estar nessa mostra.

E para o cinema brasileiro, o que significa estar em Cannes?

Este ano o Brasil tem três longas-metragens em diferentes mostras do festival. Isso mostra o vigor do nosso cinema e sua diversidade. Mesmo após os anos de pandemia e de quatro anos de um governo que tratava a cultura com descaso, estamos lá marcando presença e com força. Baby é apenas o décimo longa brasileiro exibido nos 62 anos da Semana da Crítica, o que mostra como é difícil nossa excelente produção chegar num festival como Cannes. Mas dá um alento pensar que ano passado tivemos Levante, da Lillah Halla, na Semana, e esse ano está o Baby. Parece uma boa onda vindo e que seja permanente!

Você costuma dizer que o caos do centro de São Paulo é personagem de seus filmes. A escolha por esse cenário tão cosmopolita e, ao mesmo tempo, tão brasileiro, é uma maneira de mostrar nossas feridas ou de exaltar a nossa diversidade?

O que sempre me encantou nessa parte da cidade é que as pessoas podem ser mais livres dentro do anonimato que o grande centro proporciona. É também um lugar de passagem: muita gente passa, mas não enraíza, não estabelece vínculos duradouros. Então o centro tem uma dinâmica muito específica e os fluxos são mais difíceis de mapear, de controlar.

Baby é um filme sobre o movimento. Trabalhamos com uma regra simples em que ou a câmera, ou os corpos dos atores, ou o fundo da cena, a evanescência, deveriam estar em movimento em todos os planos. Dessa forma a linguagem do filme se adequaria à dinâmica dos espaços que estávamos filmando.

O título foi atualizado para deixar a temática da entrevista mais clara.

M. Night Shyamalan: o cineasta por trás de "O Sexto Sentido"

Desastres ambientais elevam número de deslocados no Brasil

Em 2010, Nedine Beauger perdeu sua casa no terremoto em Porto Príncipe, no Haiti, e se tornou uma entre um milhão de desabrigados no país. Morou entre abrigos e ruas por dois anos, até que em 2015 decidiu emigrar para o Brasil. Em contato com uma comunidade de haitianos no Facebook, escolheu Porto Alegre. Aos 42 anos, mãe solo de uma filha de 5, ela se vê mais uma vez sem casa, mas agora longe da família, atingida pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul.

"Foi difícil recomeçar no Brasil, saía para procurar trabalho sem falar português. Agora perdi tudo de novo, não sei para onde poderei ir", conta a haitiana, que morava no Sarandi, um dos bairros mais afetados pelas chuvas em Porto Alegre.

Hospedada na casa de um amigo haitiano depois de cinco dias num abrigo com a filha, Beauger faz parte dos mais de 600 mil deslocados pelas inundações no Rio Grande do Sul. O total não está distante dos 745 mil deslocamentos por desastres registrados em todo o ano de 2023 no Brasil, segundo relatório anual da organização não-governamental  Observatório de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), divulgado nesta terça-feira (14/05).

Nedine Beauger e a filha
Nedine Beauger veio para o Brasil depois de perder casa em terremoto no Haiti e agora foi atingida por enchente em Porto Alegrenull Arquivo Pessoal

Os números do IDMC são os mais altos para o Brasil desde o início dos registros, em 2008, e se referem a deslocamentos, não necessariamente a indivíduos, que podem se deslocar mais de uma vez. Em 2023, os deslocamentos foram causados sobretudo por chuvas no Amazonas, Pará, Acre e Maranhão e nos três estados da região Sul. No ano passado, o mundo também bateu recorde de deslocamentos por desastres: foram 26,4 milhões causados por inundações, deslizamentos, secas e queimadas, de acordo com o observatório.

Sejam desalojadas, caso de quem tem moradia temporária em outras casas, ou desabrigadas, essas pessoas não são refugiadas climáticas, porque não cruzaram as fronteiras nacionais, sustenta Andrea Pacífico, coordenadora desde 2012 do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais da Universidade Estadual da Paraíba.

Deslocados invisíveis

A pesquisadora lembra que não existem tratados internacionais para a proteção daqueles que costumam ser denominados "refugiados ambientais", termo usado pela primeira vez por um especialista do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em 1985. Mas muitos países, como o Brasil, têm legislações com um entendimento ampliado para solicitações de refúgio ou de visto humanitário, que foi concedido, por exemplo, a muitos haitianos após o terremoto de 2010.

"Os estrangeiros que chegam ao Brasil por desastres naturais têm os direitos garantidos pela Lei de Migração de 2017, mas os deslocados internos ainda são invisíveis. Falamos desalojados, desabrigados, removidos", afirma Pacífico, que é professora de Relações Internacionais.

Ela ressalta que, apesar da ausência de tratados internacionais e da diferença entre refugiados e deslocados, o próprio Alto Comissariado da ONU Para Refugiados (Acnur) auxilia deslocados internos. "Se o Brasil passar a usar o termo, terá que responder internacionalmente por essas pessoas."

Com foco na proteção específica dessas populações, a deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP) apresentou no dia 7 de maio um projeto de lei que cria a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos. Ele já ganhou a coautoria de 20 deputados, com o objetivo de pressionar o Congresso por uma tramitação de urgência.

Também no dia 7, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de 2022 que dá prioridade a vítimas de desastres ambientais para a compra ou reconstrução de moradias no programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. O texto agora segue para o Senado.

Já no projeto de lei apresentado por Hilton, o acesso a moradia para deslocados ambientais é mais amplo, sem estar vinculado a um programa. O texto prevê ainda a alteração da CLT para dar estabilidade de dois anos aos deslocados ambientais.

Problema de definição e acesso a dados

O novo projeto de lei começou a ser gestado há dois anos pela ambientalista Naira Santa Rita Wayand após ela perder sua casa com inundações e deslizamentos em Petrópolis, município do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2022. No ano passado, Wayand fundou o Instituto DuClima, que participou da elaboração do projeto junto com o Instituto Marielle Franco e a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama).

"Meu apartamento era no primeiro andar, não ficava em área de risco, e a água chegou até o segundo. Enquanto isso, o Morro da Oficina ia abaixo", lembra ela, que se mudou com a mãe e o filho de 2 anos para Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Wayand contou com a ajuda de seu empregador para se instalar em Juiz de Fora, onde a mãe fazia tratamento de saúde. Enquanto isso, percebeu uma grande alta de preços dos aluguéis em Petrópolis, o que chama de "capitalismo de desastre". "Não saí porque quis, mas porque fui forçada. Mas no meu caso, como todos os outros dos últimos 20, 50 anos, não houve auxílio do Estado", afirma.

Como ativista, Wayand defende o uso do termo "deslocados ambientais", mas reconhece que falar em "refugiado ambiental" causa comoção e muitas vezes é usado para a mobilização política, como fez a própria divulgação do projeto de lei.

Brinquedos cheio de lama em casa de Eldorado do Sul
Família de Giancarlo Ugalde deixou a casa em Eldorado do Sul pouco antes da inundação null Arquivo Pessoal

Além do problema de definição, o acesso a dados comparativos é dificultado pela variedade de desastres e diferentes metodologias. A seca, por exemplo, não costuma ser considerada causa de deslocamentos no Brasil, afirma Andrea Pacífico, que tem pesquisa sobre o sertão do Nordeste.

"Meu pai e mãe são do sertão de Alagoas, sempre ouvi sobre as dificuldades dos sertanejos. Eles não têm nada de retirante. São forçados a migrar por sobrevivência", diz ela, que há três anos faz pesquisa de campo com deslocados por barragens na Paraíba.

De acordo com Ricardo Fal-Dutra Santos, coordenador regional do IDMC para as Américas, Europa e Ásia Central, como a seca é um desastre de evolução lenta, é mais difícil identificá-la como causa de deslocamento. Ainda assim, o relatório do observatório aponta 32 mil deslocamentos devido à seca na Amazônia em 2023, contra 700 em 2022. "É um aumento significativo", afirma. "O que continua uma lacuna para nosso entendimento são os números baixos de deslocamentos por queimadas, que sabemos que ocorrem, mas não se refletem nos dados no Brasil."

Natureza cíclica

De acordo com Santos, para a adoção de políticas públicas, é importante notar que os desastres têm uma natureza cíclica. No Rio Grande do Sul, a gravidade de enchentes anteriores foi desconsiderada, e famílias atingidas continuaram nos mesmos lugares que foram novamente destruídos, em intensidade muito mais forte. Agora, cidades inteiras do Rio Grande do Sul terão que ser reconstruídas, como Eldorado do Sul, Lajeado e Muçum.

Morando desde 2013 em Eldorado do Sul, Giancarlo Ugalde viveu duas temporadas de fortes chuvas em 2023. Em setembro, a cidade não foi alagada. Em novembro, os bairros mais baixos foram inundados, mas sua casa ficou protegida. Quando as chuvas das últimas semanas começaram, ele e a mulher, que pretendiam se mudar por conta de uma proposta de trabalho, apressaram a transferência para Sertão Santana com a filha de 4 anos. A casa nova já é abrigo para diversos de seus parentes de Eldorado do Sul, que foi completamente inundada.

"Os padrinhos da minha filha e os pais da minha comadre estão aqui porque perderam tudo, a água chegou até o teto. Um tio perdeu a casa e a empresa", conta Ugalde, de 41 anos. "Retornamos no sábado para ver nossa casa porque o rio recuou, mas é um cenário de guerra, a cidade toda ficou debaixo de água. Tem muita sujeira, cheiro horrível. Mesmo que alguém possa voltar para casa, não tem mercado, não tem padaria, não tem nada. A cidade vai ter que nascer de novo. Quem tem a possibilidade de não voltar para Eldorado não vai voltar."

Eugênia Brandão, a primeira "reportisa" do Brasil

Ela era uma jovem que, com apenas 16 anos, se destacava na vida boêmia e intelectual do Rio de Janeiro de 1914: Eugênia Brandão (1898-1948) circulava usando terno e gravata, chapéu de feltro e fumando cigarrilhas.

Foi assim que ela se apresentou à redação do jornal A Rua, sendo contratada como jornalista e, em 15 de maio de 1914, estreando como repórter — ou, segundo o neologismo cunhado pelo periódico à época, "reportisa".

Nascida em Juiz de Fora, ela havia se mudado para o Rio aos 12 anos com a mãe, viúva. Aos 15 começou a trabalhar: primeiro como vendedora em loja de roupas, depois como atendente em livraria. Ali tomou gosto pela literatura e pela escrita, tornando-se ela própria uma autodidata devoradora de obras clássicas.

O ingresso em uma redação, com a missão de reportar, era adentrar em um mundo então masculino. E Brandão o fez com um bom texto e ousadia. "Foi uma mulher à frente do seu tempo. Sua trajetória como jornalista foi referência para as gerações posteriores de mulheres que vieram a ser jornalistas também, principalmente em um tempo em que a profissão era essencialmente masculina", destaca a jornalista Maria Elisabete Antonioli, professora e coordenadora do curso de jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

"Foi repórter e editora e, com um perfil ousado, se destacou também no jornalismo investigativo. Teve um papel preponderante na defesa da liberdade de imprensa e com frequência participava de debates sobre política, proteção dos direitos dos jornalistas e acesso à informação", ressalta Antonioli.

Presidente da Associação Profissão Jornalista (APJOR), a jornalista Leda Beck classifica como "fenomenal" a biografia de Brandão. "Não consigo nem imaginar o desafio de ser uma repórter nos anos 1910. Eu comecei no jornalismo da chamada grande imprensa na década de 1970 e havia um punhado de mulheres que eram permanentemente assediadas, em um tempo em que a gente não se dava conta do que era o assédio", compara ela. "Só hoje me dou conta do quanto as mulheres sempre foram discriminadas."

"A história do jornalismo no Brasil centra-se na figura de homens brancos que lideraram, empreenderam e tiveram cargos de poder em cada época", analisa a jornalista Márcia Detoni, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O jornalismo excluía a mulher e assim permaneceu por mais de cem anos. As poucas mulheres que passaram pelas redações tiveram sua presença invisibilizada."

Pouco tempo depois da estreia, o próprio jornal A Rua noticiou a aposentadoria da "reportisa". Ela havia decidido buscar refúgio em um internato para moças. O que parecia o fim precoce de uma carreira, contudo, só demonstrou a veia da profissional para a reportagem investigativa: ela havia se refugiado na casa para entrevistar a irmã de uma mulher assassinada em um crime de alta repercussão naquele tempo.

Brandão seguiu morando no asilo por um período e publicou uma série de cinco reportagens sobre o cotidiano das internas. Foi quando ela foi alçada à fama no meio jornalístico, celebrada então como a "primeira repórter do Brasil".

Segundo Detoni, essa apuração "a partir da experiência imersiva" foi inovadora porque se tornou "uma prática jornalística de destaque no mundo só a partir dos anos 1960".

Trajetória

No mesmo ano, envolveu-se com o poeta e escritor Álvaro Moreyra (1888-1964), com quem acabaria se casando — e de quem assumiria o nome, tornando-se Eugênia Álvaro Moreyra. Com ele, teria oito filhos.

Ela trabalhou ainda nos jornais A Notícia e O Paiz. Ao lado do marido, participou na Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. E acabou enveredando pelo teatro — fundou em 1927 o grupo Teatro de Brinquedo, de linguagem modernista.

A partir dos anos 1930, ao lado de nomes como a escritora Pagu (1910-1962) e o poeta Oswald de Andrade (1890-1954), passou a defender bandeiras da esquerda e do feminismo. Foi uma das fundadoras, em 1935, da União Feminina do Brasil e filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que fez dela uma das detidas após a Intentona Comunista ocorrida naquele ano.

Brandão presidiu, de 1936 a 1938, o sindicato da classe teatral Casa dos Artistas. Sufragista, candidatou-se a deputada federal constituinte em 1945, mas não foi eleita — assim como nenhuma outra mulher. Ela morreu em 1948, aos 50 anos, depois de um acidente vascular cerebral em sua casa, no Rio.

Outros nomes

Como costuma acontecer em histórias de pioneirismo, a primazia de Brandão não é um consenso — embora não se conteste a importância de seu legado. Detoni lembra que, antes mesmo, "nos primórdios da imprensa nacional", havia publicações voltadas ao público feminino, geralmente dedicados à moda e à literatura e, "nas primeiras décadas do século 20 já encontramos, como exceção, algumas mulheres na cobertura do cotidiano".

"Os autores divergem sobre quem seria a primeira jornalista ou a primeira repórter do Brasil", ressalta a professora. A questão fundamental é que, embora mulheres já redigissem notícias, era incomum o fato de elas reportarem, ou seja, irem às ruas em busca de informações.

Nesse sentido, houve uma jornalista portuguesa que atuou no Brasil antes de Brandão: Virgínia Quaresma (1882-1973), que trabalhou no periódico A Época em 1912. "Ambas as contratações [de Quaresma e de Brandão] foram anunciadas na imprensa da época como uma ‘modernidade'", ressalta Detoni.

"Talvez outras mulheres tenham atuado na imprensa antes ou concomitantemente em outras cidades do país. O importante é que o trabalho destas pioneiras venha à luz e seja valorizado pela contribuição que deram ao desenvolvimento do jornalismo e ao movimento de emancipação da mulher. Tanto Eugênia quanto Virgínia atuaram nas ruas, usando métodos investigativos inovadores e ousados na época para denunciar descaso e abusos", salienta.

Hoje

Se há 110 anos isso era exceção, hoje mulheres são maioria nas redações. De acordo com a presidente da APJOR, elas respondem por cerca de 60% da mão de obra no jornalismo brasileiro.

"Na minha opinião, isso indica duas coisas: uma boa, as mulheres estão ocupando cada vez mais espaços produtivos na sociedade brasileira", diz Beck. "Outra constatação é que, como historicamente já demonstrado, cresce a participação das mulheres toda vez que uma profissão começa a se degradar, os salários caem vertiginosamente e as condições de trabalho pioram. Porque os homens vão procurar outras coisas. "

Segundo dados levantados pela professora Detoni, as mulheres eram apenas 2,8% dentre os jornalistas de São Paulo em 1939, saltando para 7% em 1950 e 10%, em 1970. Levantamentos de abrangência nacional realizados a partir dos anos 2000 mostram que elas atingiram a maioria em 2004, com 52,4% das vagas. E, em 2001, eram 58%.

"Observa-se que o jornalismo é uma profissão que paga pouco para uma qualificação elevada. A presença majoritária de mulheres nas redações não se reflete em melhores salários ou cargos de chefia", comenta Detoni. "Em 2021, por exemplo, apenas 35% das contratações em cargos de liderança na Globo foram de mulheres, de acordo com relatório divulgado pela organização. Há um caminho longo ainda a ser trilhado para que o talento da mulher encontre espaço e reconhecimento."

Parto domiciliar assistido por enfermeiras vira disputa judicial

Gabriela Zanettini, 31 anos, lembra-se da noite de 3 de julho de 2020 como um momento mágico. Acompanhada de familiares, comeu e bebeu o que quis, movimentou-se livremente e deu à luz sua filha Helena na sala de casa, com pouca iluminação e lareira acesa, assistida por uma enfermeira obstétrica e uma parteira. "Elas praticamente não interferiram. Só olhavam, observavam e verificavam os sinais para analisar se estava tudo certo", lembrou. "Porque quem faz o parto é a mulher."

Além de escolher quem estaria ao seu lado naquele momento e de poder estar no conforto de sua residência, Zanettini tinha receio de sofrer violência obstétrica no hospital. Por isso, contratou as profissionais. Como sua gestação era de baixo risco, pôde ter Helena em sua casa, em Florianópolis (SC). "As parteiras têm preparo e levam os equipamentos necessários. Me senti segura", contou.

O Parto Domiciliar Planejado (PDP), quando a gestante é assistida por uma equipe de profissionais como enfermeiras e obstetrizes – ou mesmo médicos, vem sendo ameaçado no Brasil. Uma ação civil pública do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), de 2018, que pode acabar com a prática, chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em setembro do ano passado.

Na ação, os médicos solicitaram que as enfermeiras obstétricas Halyne Pessanha e Heloisa Lessa não realizassem partos domiciliares. Além disso, pediram que a proibição fosse estendida para toda categoria da enfermagem. Em 2021, em primeira instância, as enfermeiras venceram. Mas, no ano seguinte, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região alterou a decisão em favor do conselho.

Para Heloisa Lessa, uma decisão em favor do Cremerj resultaria no fim do parto domiciliar assistido por enfermeiras. "Por isso é tão grave. É uma decisão que atinge todas as enfermeiras e, mais do que as enfermeiras, as mulheres. Porque as gestantes vão continuar parindo em casa. Só que vão parir desassistidas, de uma maneira mais insegura. As mulheres não vão parar porque as enfermeiras não vão ao parto", avaliou.

A questão da segurança

O Cremerj não se pronuncia sobre processos judiciais. Mas reafirmou sua posição sobre o parto domiciliar. "O Cremerj reitera a importância da realização de partos em ambiente seguro, como é o caso de uma unidade hospitalar. A recomendação se dá pela possibilidade de intercorrências que podem acontecer inesperadamente durante o procedimento, afetando a mãe e o bebê. O ambiente hospitalar é o local que possui a estrutura necessária para resolver casos de urgência ou emergência com agilidade e eficiência."

A postura do Cremerj contra o PDP não recai apenas sobre as enfermeiras. Uma resolução do conselho de agosto do ano passado proibiu os próprios médicos de acompanharem partos domiciliares. Uma decisão judicial, em ação do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), suspendeu a medida.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não se pronunciou sobre o processo do Cremerj. Desde 2012 a autarquia tem uma norma recomendando que "a realização do parto ocorra em ambiente hospitalar de forma preferencial por ser mais segura".

O Ministério da Saúde publicou, em 2021, uma nota técnica sobre o assunto. Reconhece que "toda gestante deve ter seus direitos e escolhas respeitados" desde que seja "informada sobre as vantagens e os possíveis riscos a respeito do local de sua escolha para o cenário de parto e nascimento".

O documento diz, no entanto, que, "ancorado no princípio da precaução ou prudência e baseando-se no eixo da garantia da segurança no cuidado materno-infantil, desaconselha o parto domiciliar, no contexto brasileiro". A DW questionou o ministério se havia alguma análise desta normativa, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Como é um parto domiciliar planejado

Para o Cofen, as mulheres têm direito à escolha informada sobre o próprio parto. O conselho ressaltou que o parto domiciliar é seguro seguindo algumas regras. Em fevereiro, publicou uma resolução sistematizando os parâmetros para a assistência da enfermagem obstétrica.

Em consultas de enfermagem pré-natal – mensais até 28 semanas, quinzenais entre 28 a 36 semanas e semanais a partir de 36 semanas de gestação –, a gestante deve ser classificada como de risco habitual (baixo risco). A mulher também precisa assinar um termo de consentimento livre e esclarecido.

Durante o parto, a equipe deve contar com pelo menos duas enfermeiras obstétricas, que, entre suas funções, avaliam os riscos e a necessidade de transferência para um hospital ou outra unidade de saúde caso a gestante precise de cuidados de maior complexidade. Se for necessário o deslocamento, as enfermeiras devem acompanhar a mulher até que outro profissional ou instituição assuma a assistência.

Lessa acompanhou cerca de mil partos domiciliares em 38 anos de carreira. A enfermeira obstétrica e doutora em enfermagem disse que precisou transferir aproximadamente 80 mulheres a uma unidade hospitalar. "O parto em casa não precisa necessariamente dar certo em casa. Ele começa a mostrar que não vai dar certo cedo. Então a hora de transferir não é a hora que o problema efetivamente aconteceu. E como você está o tempo inteiro ao lado da mulher, você consegue captar precocemente os sinais de que a coisa não está indo bem", explicou.

Depois do nascimento, a norma do Cofen estabelece que a equipe de enfermagem precisa permanecer no domicílio por, pelo menos, três horas, garantindo que não haja risco de complicações para a puérpera e para o recém-nascido. Também precisa garantir a continuidade dos cuidados da mãe e do bebê no período de 45 dias.

Números

Os partos domiciliares representam menos de 1% dos nascimentos no Brasil nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, últimos dados disponíveis no DataSUS, nasceram 2,5 milhões de bebês, sendo 17 mil em residências, ou seja, 0,67%. E vem caindo. Entre 2003 e 2012, foram realizados 337 mil. Na década seguinte (2013-2022), 195 mil.

O que ocorre no Brasil, ainda segundo o DataSUS, é uma grande queda de nascimentos em casa no Norte e Nordeste: de 329 mil no período entre 2003 e 2012 para 138 mil entre os anos entre 2013 e 2022. Já nas regiões Sudeste, Sul e Centro Oeste houve um aumento: de 44 mil para 57 mil.

"Apesar da diminuição no Norte e Nordeste, houve um aumento dos partos domiciliares nas grandes cidades. Isso está relacionado ao parto planejado. As mulheres passaram a ter acesso à informação", avaliou Lessa. De acordo com a enfermeira, a grande maioria das mulheres que opta por esse tipo de parto tem ensino superior e um poder aquisitivo mais alto. Até porque, o custo de contratação de uma equipe, embora varie bastante no país, gira em torno de R$ 10 mil.

Informações do Congresso Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal (Cobeon) mostram que até o fim de 2023 foram identificadas 127 equipes de enfermagem obstétrica que atuam na assistência ao PDP no Brasil, com 300 enfermeiras obstétricas e obstetrizes, além de cerca de 50 médicos obstetras, distribuídos em 21 estados brasileiros.

A escolha e a confiança

A farmacêutica Jéssica Kruger, 33 anos, também optou pelo PDP. "Como minha gestação era de risco habitual e eu entendo o parto como um processo fisiológico, não vi necessidade de ser em um ambiente hospitalar", contou.

Quando engravidou, Kruger, porém, não pensava em ter o parto domiciliar. Tanto que, inicialmente, contratou a equipe para acompanhá-la no hospital. Na medida em que foi se informando, conversando com outras mulheres, participando de rodas de gestante e lendo artigos científicos, perdeu o receio de que o parto fosse algo perigoso. Mas estava preparada para uma transferência para o hospital, caso fosse necessário. Sua filha, Lívia, nasceu no final de abril em casa. "Ela está ótima. Eu estou bem também. A recuperação foi tranquila", afirmou.

A influência da alimentação para a saúde do bebê

Retorno das chuvas reacende medo de novas enchentes no RS

A família Bartholdy nem terminou de limpar o segundo andar do imóvel onde moram, em Estrela, Rio Grande do Sul, e as águas do rio Taquari já ameaçam invadir novamente a casa de onde fugiram no dia 1º de maio. "Medo eu nem tenho mais, porque praticamente já perdi tudo. Agora é tentar só ter um telhado para morar um mês, meio ano, um ano, e tentar conseguir um outro terreno, para construir uma outra casa, para poder sair fora desse ambiente difícil", diz Elton Bartholdy, de 59 anos. 

Entre o fim de abril e começo de maio as águas atingiram o telhado do imóvel de aproximadamente 10 metros de altura, algo jamais visto. "Antigamente vinha a um metro, meio metro, nem chegava aqui; agora já cobre a casa, dois, três metros acima", comenta Michele, de 29 anos, que aposta no esvaziamento do município. "Essas cidades vão acabar sendo abandonadas, as pessoas não podem perder tudo e ficar o tempo só reconstruindo. Uma vez ou outra na vida é uma coisa, mas agora é a cada seis, sete meses". 

Pela quarta vez em oito meses, Estrela lida com a cheia do rio que banha a cidade. Na manhã deste sábado (11/05), o nível do rio era de 14 metros, longe da cota de inundação, de 19 metros. Pouco mais de um dia depois, segundo o Serviço Geológico Brasileiro (SGB), as águas já passam de 24 metros, e continuavam subindo rapidamente. Segundo a Defesa Civil de Lajeado, cidade vizinha, o nível deve chegar a 29 metros até esta segunda-feira, superando a enchente de setembro passado que, antes de maio de 2024, havia sido a maior tragédia climática da região.

Mulher em meio a sala alagada com móveis afetados por enchente
Família Bartholdy passou dias tentando limpar o segundo andar de seu imóvel em Estrelanull Gustavo Basso

Há quase duas semanas, 75% dos imóveis de Estrela foram tomados pela água, que arrasou inteiramente quatro bairros, deixando centenas de famílias sem uma casa para voltar quando o nível baixar e toda a lama acumulada for limpa. Um trabalho que deve custar R$ 50 milhões, de acordo com a prefeitura.

Bar destruído

"Saiam daqui gente, saiam, que a água já está subindo de novo e vai até 27 metros", alertava assustado um vizinho enquanto a família, após mais dois dias de trabalho intenso, ainda lavava aparelhos de som e outros eletrodomésticos na tentativa de salvá-los. "Vou deixar uma canoa amarrada no poste para vocês se precisarem ", avisa, preocupado com o ritmo da subida da água, que já tomava metade da rua vizinha.

Foi este pequeno barco que Sergio Roberto da Silva, 67 anos, usou para tentar diminuir o prejuízo já instalado em seu bar. O "bailão", como são chamados os espaços de música e dança comuns no interior do Rio Grande do Sul, funcionava há vários anos no local e tinha resistido a outras inundações do Taquari. Não resistiu, porém, à maior tragédia socioambiental do estado.

"Perdi cinco geladeiras, três freezers e todo o equipamento do salão, que está arrasado. Caiu o telhado inteiro e uma parede", conta ele, enquanto amarra as cadeiras que sobraram no espaço para que não desapareçam com a nova enxurrada.

"Estrela vai levar um ano para se erguer de novo, eu mesmo não sei como, mas vou tentar de novo", desabafa antes de retornar a canoa para voltar para a terra firme e molhada apenas pela água da chuva.

Homem em canoa usa tábua como remo improvisado durante inundação
Sergio Roberto da Silva não perdeu a casa, mas seu bar foi totalmente destruídonull Gustavo Basso

A situação no Rio Grande do Sul não é preocupante somente em Estrela. A Defesa Civil gaúcha emitiu neste domingo (12/05) novos alertas sobre riscos de alagamentos em Porto Alegre, capital do estado, e redondezas, pedindo para que a população busque por áreas seguras com as chuvas intensas que voltaram a cair em diversos municípios na noite sexta-feira e não parou durante o fim de semana. Há previsão de que a situação se agrave. 

Segundo o boletim da Defesa Civil divulgado na noite deste domingo, foram registradas 145 mortes devido às chuvas e inundações no estado. Há 132 pessoas desaparecidas e 806 feridos.

Com a volta das chuvas, o número de pessoas fora de suas casas aumentou de cerca de 441 mil, registrado no sábado, para mais de 618 mil, enquanto 81,2 mil estão em abrigos e mais de 538 mil estão desalojados (em casa de amigos e parentes).

Ao todo, 447 municípios foram afetados pelas enchentes deste ano, o que representa quase 90% de todas as cidades do estado.

"Risco de inundação severa"

Entre as regiões com "risco de inundação severa" estão os vales do Taquari e do Caí, de acordo com os alertas mais recentes da Defesa Civil. "Quem mora em regiões próximas, ou em áreas com histórico de alagamentos ou inundações deve sair com antecedência, de forma ordenada, buscando um local seguro para permanecer", orienta o órgão.

Na noite de sábado, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, alertou que os rios Taquari, Jacuí, dos Sinos e Caí devem voltar a ter elevação de nível, após leve recuo nos últimos dias. "Espalhem essa informação", pediu Leite em vídeo publicado nas contas oficiais do governo nas redes sociais.

Na região metropolitana de Porto Alegre, o prefeito de Canoas, Jairo Jorge, também fez um apelo, neste domingo, para que quem voltou para casa após o recuo das águas volte a deixar os locais suscetíveis a alagamentos.

Segundo o balanço mais recente do governo estadual, até o momento76.399 pessoas foram resgatadas depois de ficarem ilhadas em diferentes pontos de alagamento, em algum dos 446 municípios afetados. Foram salvos também 10.555 animais.

Na capital gaúcha, o Lago Guaíba voltou a apresentar elevação de nível neste domingo, com expectativa de superar marcas acima de 5 metros, podendo mesmo bater novo recorde de cheia, conforme a chegada da vazão pelos rios contribuintes e a atuação dos ventos. 

Abuso na infância aumenta chances de depressão pós-parto

Quando a secretária Sandra deu à luz, há dois anos, a aceitação do filho não ocorreu da maneira como ela esperava e sonhava. "Eu não tinha ânimo para nada, não queria sair da cama. Sentia um arrependimento grande por ter decidido engravidar e queria voltar à vida como era antes", conta ela, que pediu para ter seu nome trocado pela reportagem.

Agora, ela se sente recuperada. Atribui a situação ao fato de que foi diagnosticada naqueles dias com uma condição que afeta muitas mulheres em todo o mundo: a depressão pós-parto. "Fiz muita terapia e enfrentei traumas que nem me lembrava que existiam", revela.

Entre eles, o abuso que sofreu na infância. Filha de uma empregada doméstica paulistana, Sandra costumava acompanhar a mãe no trabalho, principalmente aos sábados. E, a partir do início da adolescência, a patroa passou a molestá-la. "Ela me tratava como se eu fosse inferior, dizia que eu era burra e não iria nunca ser alguém na vida. Como não queria criar problemas para minha mãe, ficava quieta. Então ela começou a me tratar também como se fosse sua empregada, mandando que eu fizesse coisas como servir chá e levar comida para o quarto dela", recorda.

Dali para os abusos se tornarem sexuais, foi um passo. "No começo, ela mandou, brava, que eu massageasse os pés dela. Logo, estava obrigando que eu fizesse coisas que eu nem sabia que eram possíveis, na minha inocência", diz ela.

Os abusos duraram dois anos e só foram interrompidos quando a mãe mudou de emprego. O abuso sexual era seguido de uma violência psicológica, já que Sandra era condicionada a ficar em silêncio porque a patroa dizia que, em caso contrário, a mãe seria demitida.

Abuso e depressão pós-parto

Separados por quase 20 anos, esses dois episódios da vida de Sandra podem estar correlacionados. Segundo um estudo publicado nesta segunda-feira (13/05) na Revista Latino-Americana de Enfermagem, mulheres que sofreram abusos na infância e na adolescência têm mais chances de desenvolverem depressão pós-parto. É a primeira vez que uma investigação acadêmica do tipo é realizada no Brasil.

O trabalho foi realizado em conjunto por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Rio Verde (UniRV) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O estudo contou com a participação de 253 puérperas, com filhos nascidos entre fevereiro e abril de 2022.

A pesquisa considerou critérios científicos para garantir que o grupo tivesse uma ampla gama de variáveis, dentre as quais o tempo de gestação, o status de relacionamento, histórico de diagnóstico de depressão e casos de abortos anteriores.

Traumas

As participantes da pesquisa foram recrutadas entre o segundo e o quinto dia do parto e seguiram sendo acompanhadas pelos acadêmicos ao longo de alguns meses. De acordo com o levantamento, 53% das puérperas experimentaram ao menos um tipo de trauma na infância — foram cinco os analisados: os abusos emocional, físico e sexual, e as negligências emocional e física.

O abuso emocional foi o mais comum, relatado por 34% das mulheres participantes. Outras 27% afirmaram terem sofrido negligência emocional, 26% negligência física, 23% abuso sexual e 18% abuso físico.

A pesquisa cruzou os dados com os casos diagnosticados de depressão pós-parto e concluiu que essa relação estava presente em 37% da amostra. "Esses resultados mostraram que o histórico de diferentes tipos de abuso e negligência estão associados à depressão pós-parto. Por isso é importante considerarmos as experiências traumáticas vivenciadas por mulheres na infância durante a assistência pré-natal", afirma a enfermeira Maria Neyrian de Fátima Fernandes, professora na Universidade Federal do Maranhão e uma das autoras do trabalho.

"A depressão pós-parto tem o potencial de afetar o vínculo entre mãe e filho e isso afeta o cuidado e também o desenvolvimento da criança. Então precisamos considerar essas experiências da infância que possam acarretar predisposição a desenvolver depressão pós-parto", ressalta.

A correlação mais impressionante encontrada pelo estudo está nos casos de mulheres que sofreram abuso emocional quando jovens e, depois, desenvolveram a depressão pós-parto. "Realizamos análises estatísticas multivariadas para controlar alguns fatores de confusão que poderiam influenciar. Queríamos realmente identificar os efeitos dos traumas", acrescenta o enfermeiro Elton Brás Camargo Júnior, professor na Universidade de Rio Verde e coautor do trabalho.

Ele conta que, segundo a pesquisa, mulheres que sofreram abuso emocional na infância têm 6,29 vezes mais chances de desenvolverem depressão pós-parto. O abuso emocional é uma forma de violência não-física muito difícil de ser percebida, porque costuma não deixar consequências visíveis. Mas, em geral, implica na queda da capacidade de confiança no outro.

Esse tipo de abuso pode ser cometido na forma de manipulação, quando a vítima é induzida a acreditar em uma realidade planejada, criada e mantida pelo agressor. Não raras vezes, também ocorrem ofensas, geralmente questionando as capacidades e habilidades da vítima. Essas ofensas acarretam na diminuição da autoestima.

Estresse precoce

De acordo com a enfermeira Edilaine Cristina da Silva Gherardi-Donato, professora na Universidade de São Paulo e também autora da pesquisa, a mulher vítima de violências na infância tem mais propensão a desenvolver sintomas de depressão pós-parto devido à vivência do chamado "estresse precoce". "São situações de vida que ultrapassam a capacidade dessa criança de superar [a violência], com a ausência de suporte social ou familiar", afirma.

"Temos vários processos naturais do corpo para regular nosso sistema e poder responder aos próximos eventos estressores. Quando eles são muito fortes ou prolongados, esses mecanismos se desregulam, deixando a mulher, na vida adulta, mais predisposta [a desenvolver sintomas], com menos recursos psicológicos para lidar com essas situações", comenta Gherardi-Donato.

A professora ressalta que "a gestação e o parto, por si sós, são eventos da vida que podem gerar uma crise emocional", por conta da mudança de papéis e de todas as questões envolvidas.

Por isso, os pesquisadores defendem uma avaliação de traumas pregressos durante o pré-natal, o que ajudaria a prevenir e tratar casos de depressão pós-parto.

A pesquisa publicada nesta segunda foi realizada a partir de uma amostragem recrutada em maternidade pública na cidade de Rio Verde, no estado de Goiás. Principalmente por ser um trabalho inédito no país, a enfermeira Gherardi-Donato destaca a importância do desenvolvimento de "estudos de base nacional", o que poderia extrapolar as conclusões do momento.

A influência da alimentação para a saúde do bebê

"Recuperação após um desastre é complexa e demora muito"

O geólogo e planejador urbano americano Robert B. Olshansky já testemunhou muitas cenas de destruição ao longo de sua carreira: em 1995 viu as ruínas da cidade de Kobe, no Japão, devastada por um terremoto; participou dos esforços para o plano unificado de recuperação de Nova Orleans, nos Estados Unidos, após a passagem do furacão Katrina em 2005; e esteve presente nos dias seguintes aos terremotos de 2010 no Haiti, e ao tsunami que arrasou a Indonésia em 2004.

A curiosidade por desastres e por descobrir maneiras de preparar melhor as cidades contra eles começou em 1994, quando um terremoto atingiu a cidade de Los Angeles, na Califórnia, estado onde ele cresceu. "Não foi uma catástrofe, mas foi grande. Fiquei interessado em acompanhar o processo de recuperação da cidade."

 Geólogo e planejador urbano americano Robert B. Olshansky
Geólogo e planejador urbano americano Robert B. Olshansky observou processos de recuperação dos EUA à Indonésia e o Japãonull Personal archive

Um ano depois, viajou com colegas pesquisadores para acompanhar de perto a tragédia em Kobe, importante centro econômico japonês onde, em menos de 20 segundos, um forte terremoto devastou casas, prédios, estradas, estações de metrô e canalizações de água, gás e energia elétrica.

"Foi uma grande jornada. Sofremos para encontrar lições comuns aos dois eventos", afirma o professor emérito de planejamento urbano e regional da Universidade de Illinois at Urbana-Champaign, onde lecionou por 28 anos. "Quando eu voltei, foi exatamente quando aconteceu o furacão Katrina".

Que lições tem o furacão Katrina para o Rio Grande do Sul?

Na devastação do Katrina, já mais experiente em situações análogas, Olshansky atuou como observador e participante no difícil processo de criar um plano unificado de reconstrução para a cidade de Nova Orleans após o furacão que deixou mais de 1 milhão de desabrigados.

"A recuperação após um desastre é sempre complexa, demora muito e nunca é rápida o bastante para os moradores atingidos", diz o coautor do livro After great disasters: an in-depth analysis of how six countries managed community recovery (Após grandes desastres: uma análise profunda de como seis países geriram a recuperação de comunidades) ao lado da colega Laurie A. Johnson, planejadora urbana reconhecida, especializada em recuperação de desastres.

Dois anos após o Katrina, Nova Orleans ainda esperava pelos recursos para a sua reconstrução, que só foi concluída anos depois. "A recuperação após um grande desastre é sempre complexa, leva muito tempo e nunca ocorre rápido o suficiente para os residentes afetados", diz. "Mas o processo pode ser melhorado de várias maneiras".

Em entrevista à DW Brasil, o pesquisador compartilha lições e alertas que podem ser úteis para orientar o difícil e longo processo de reconstrução que o Rio Grande do Sul tem pela frente: até o momento, 441 cidades das 497 do Estado foram atingidas pelas chuvas, que afetaram 1,9 milhão de cidadãos e 300 mil imóveis, segundo a Defesa Civil e o IBGE.

Homem inspeciona casa devastada por enchente em Muçum, RS
Comunidades devem ser consultadas se que querem abandonar suas cidades devastadas ou permanecernull Adriano Machado/REUTERS

"Sensação de que o tempo foi comprimido é um dos maiores obstáculos"

Quando ocorre um desastre como o que enfrenta o Rio Grande do Sul, a primeira reação do poder público é enviar socorro o mais rápido possível. Mas logo surge uma série de perguntas que exigem respostas rápidas: quanta verba se destinará à reconstrução? Todos os proprietários de terra poderão reconstruir suas casas? Haverá moradia suficiente para os locatários? Onde todos se alojarão, até que as casas definitivas sejam construídas? Quem coordenará a reconstrução?

Olshansky explica que um dos maiores obstáculos após um desastre é a sensação real de que o tempo foi comprimido: tudo foi destruído de uma vez, todos precisam ser resgatados ao mesmo tempo, inúmeras demandas surgem simultaneamente, e todas as demandas são realmente urgentes. "É isso o que torna tudo mais difícil de operar, tudo sai de sincronia e é muito confuso; há uma espécie de névoa de guerra quando isso acontece."

Obter grande volume de verbas é a chave da recuperação bem-sucedida, diz o pesquisador. A prioridade do poder público, nesse caso, é se mover para garantir recursos.

Nos EUA por exemplo, os estados atingidos pelo Katrina apelaram ao Congresso por fundos para a reconstrução definitiva; na China, o governo determinou às províncias do leste que alocassem parte de seus orçamentos para auxiliar os municípios atingidos do oeste; a Indonésia, por outro lado, pediu a ajuda de doadores internacionais após o tsunami de 2004, capacitando lideranças que inspirassem a confiança da comunidade doadora.

"Grande parte do sucesso de uma região devastada que se recupera depende da capacidade do governo em gerenciar, distribuir e auditar os recursos, corrigindo erros ao longo do processo", resume Olshansky.

Ajuda da sociedade não é fracasso do governo

"Para mim, a atuação das ONGs e a participação da sociedade civil [nos resgates e socorro em meio à tragédias] são indicadores de um ecossistema saudável de reconstrução. Significa que há gente engajada e que a recuperação está acontecendo de baixo para cima, sem depender só do governo"

O geólogo cita casos em que a participação de voluntários é tratada pela imprensa como fracasso do governo, "mas a realidade é essa, e é uma boa coisa que os cidadãos decidiram fazer por si, pois é o que precisam fazer".

Cabe ao governo liderar em duas frentes: investir parte do dinheiro em comunicação, para garantir o fluxo de informações entre todos os segmentos envolvidos no socorro pós-desastre: apoiar e subsidiar ONGs, moradores, voluntários e empresas, para que ninguém trabalhe "no escuro" e todos saibam o que cada um está fazendo. Os recursos podem ser boletins informativos, websites, centros de dados e reuniões regulares entre todos os envolvidos.

Moradores têm que ser ouvidos nas decisões

Sensíveis à corrida contra o tempo, muitos gestores podem pensar que é mais rápido reconstruir a cidade sem muito debate: em decisões definidas de "cima para baixo", anunciadas e elaboradas pelas autoridades, sem envolvimento popular.

Uma decisão equivocada, a qual Olshansky mostrou, em seus estudos, que pode resultar em insatisfação popular, baixo engajamento da população na reconstrução e imóveis concluídos às pressas, para depois ficarem vazios, com muitos moradores preferindo morar em ocupações informais – como ocorreu na China, no terremoto em 2008.

Um caso bem-sucedido, com grande participação popular, foi o da Indonésia: após a sequência de desastres climáticos a partir do forte tsunami que deixou 226 mil mortos em 2004, em meio a uma guerra civil, o governo reagiu rapidamente, criando organizações de recuperação eficazes, sempre com alta participação da comunidade.

O país fundou uma agência nacional de planejamento que avaliou as perdas antes de reunir-se com potenciais doadores internacionais, em janeiro de 2005. "Tanto a avaliação preliminar como o plano diretor foram feitos com a participação da comunidade, e transparentes em todos os níveis."

"Os autores do plano reconheceram que, embora os processos participativos costumem ser mais lentos do que as alternativas top down, de cima para baixo, eles são mais eficazes a longo prazo porque os planos têm total apoio comunitário", afirma o pesquisador. "Sob a liderança do novo presidente, pouco depois do tsunami foi anunciado um cessar-fogo, que permitiu o fluxo de ajuda internacional."

Devem-se criar planos de recuperação para antecipar o próximo desastre, a fim de que cada comunidade esteja pronta a se adaptar e sobreviver, quando ocorrer o inevitável. Contudo "há sempre a tensão entre restaurar o que era antes ou reconstruir melhor".

Não realocar moradores contra vontade

Após inundações como as do Rio Grande do Sul, que a tendência racional é sempre querer transferir os desabrigados para outras cidades e regiões, em áreas mais seguras, observa o geólogo, "mas concluí que, na maioria dos locais, essa não é a melhor alternativa".

Caso a comunidade deseje permanecer, a prioridade deve ser adaptar a realidade dos moradores, no sentido de mais resiliência a um cenário de enchentes. "Talvez haja recursos para elevar as casas, torná-las mais resistentes à água. Há uma série de maneiras diferentes de se adaptar a essas situações."

Mudar cidades inteiras de lugar poderia ser necessário em casos de eventos de alta probabilidade, com mortes instantâneas, ou quando cidades são soterradas e deixam de existir. Mas sempre em acordo com a comunidade.

"Os residentes estão apegados às suas casas, cada sabe por que mora ali, e a mudança afeta suas redes sociais e econômicas. Além disso, a relocação pode impedir o acesso dos residentes a seus empregos."

Apesar de a reconstrução ser um período doloroso e lento, o acadêmico destaca que é durante ela que costumam ocorrer as maiores mudanças e avanços rumo a cidades mais preparadas e resilientes: "Todos os países estão tentando, mas a verdade é que ninguém pensa muito em desastres com antecedência. As maiores mudanças ocorrem quando os desastres ocorrem."

Numa nota otimista, Robert B. Olshansky conclui: "Todos no Brasil sabem que o Rio Grande do Sul tem esse problema de inundações e, quando estiverem reconstruindo o Estado, todos os envolvidos estarão pensando em melhorias para o futuro. E algumas dessas melhorias serão feitas."

Prós e contras da descriminalização do porte de maconha

O debate em torno da descriminalização do porte de maconha acirrou ainda mais a já conflituosa relação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Ministros e parlamentares analisam propostas diferentes sobre o mesmo tema, e o andamento em cada uma das instituições poderá determinar o futuro do debate sobre as drogas no Brasil.

No STF, o julgamento iniciado em 2015 já foi interrompido por pedidos de vista (quando um ministro pede mais tempo para analisar o assunto) em três oportunidades. Em março deste ano, o presidente da corte suprema, Luís Roberto Barroso, deu continuidade à análise.

Maconha legalizada na Alemanha: como funciona?

A avaliação no Supremo vai definir um critério objetivo para aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, que criminaliza a posse (ter) e o porte (levar consigo) de qualquer droga – a maconha não é citada especificadamente na lei, apesar de ter se tornado objeto da análise na corte. Para alguns juristas, essa jurisdição fere o artigo 5º da Constituição, que determina serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

O artigo 28 não prevê prisão pelo porte ou produção para consumo próprio, mas sanções. No entanto, não há um critério objetivo que diferencie o tráfico de drogas do consumo próprio. Na prática, quem decide isso são policiais, Ministério Público ou juízes, em cada ocorrência.

Até o início de março, o placar no Supremo estava assim: cinco ministros (Gilmar Mendes, Edson Fachin, Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber) votaram a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio.

Por outro lado, três ministros (Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça) votaram contra a descriminalização. O ministro Dias Toffoli pediu vista, e o julgamento foi interrompido novamente.

O debate no Congresso

No início de abril, em reação ao avanço da matéria no Supremo, o Senado decidiu pautar a PEC das Drogas, uma proposta de emenda à Constituição que determina como crime portar ou possuir qualquer quantidade de droga, mesmo que para consumo próprio. Na ocasião, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse no plenário que "a descriminalização da maconha não pode ser feita por decisão judicial".

"De certa forma, há um embate entre os poderes Legislativo e Judiciário", comenta o professor de direito constitucional Rodrigo Brandão, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). "Embora o Legislativo tenha primazia em regular a matéria, a ausência de lei com critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes tem ensejado inconstitucionalidades, por violação aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade e por dificultar o combate às facções criminosas", afirma.

O jurista Cristiano Maronna, diretor da Plataforma Justa, especializada em segurança pública e acesso a dados da Justiça, concorda que o STF atuou no vácuo deixado pelo Congresso. "A análise sobre a constitucionalidade da lei que criminaliza a posse de uso de drogas para consumo pessoal é uma função típica de cortes constitucionais, como o STF. Outras cortes constitucionais fizeram o mesmo e declararam os respectivos dispositivos legais inconstitucionais. Isso ocorreu na Colômbia (duas vezes), na Argentina, no México e na África do Sul", afirma.

Brandão avalia ainda que o debate no STF destaca a violação do artigo 5º da Constituição, que ressalta que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

"É a ofensa à dignidade como autonomia: o direito de cada um viver a sua vida de acordo com as suas decisões", diz Maronna. Para ele, há também violação do princípio da igualdade, pois a falta de uma distinção clara entre usuário e traficante acaba prejudicando sobretudo negros e pobres, que não raro são considerados traficantes em situações em que brancos e ricos são considerados usuários. A PEC piora ainda mais essa situação, diz.

E esse foi um dos argumentos utilizados por Moraes ao defender a descriminalização do porte. "Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante", disse o ministro.

Barroso apresentou argumento semelhante. "Se um garoto branco, rico e da Zona Sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado. No entanto, se a mesma porção é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso", exemplificou o ministro do STF.

O senador Efraim Filho (União-PB), relator da PEC no Senado e contrário à descriminalização, afirma que a lei não vê cor ou condição social e que, se isso acontece na prática, deve-se corrigir a aplicação da lei. "Cabe, por exemplo, ao CNJ [Conselho Nacional de Justiça] chamar os juízes para fazer seminários e orientar, aplicar de forma correta, tratar o usuário sem encarceramento e tratar o traficante com o rigor da lei", defendeu.

Qual quantidade diferencia o usuário do traficante?

Um dos pontos centrais na discussão no STF é a determinação da quantidade de maconha que caracteriza consumo individual. Mendes, Moraes, Weber (hoje aposentada) e Barroso a fixaram em 60 gramas ou seis plantas fêmeas. Fachin não fixou uma quantidade para a definição de usuário e argumentou que isso cabe ao Legislativo.

Já os ministros Zanin e Nunes Marques limitaram a quantidade que caracteriza uso em 25 gramas ou seis plantas fêmeas. Mendonça optou por 10 gramas.

Defensor da PEC, o senador Rogério Marinho (PL-RN) afirmou que a determinação da quantidade que caracteriza consumo deve ser feita por autoridades que estão na ponta do sistema de Justiça. "É quem faz de fato a apreensão, quem está com a mão na massa e não quem está num gabinete com ar refrigerado", diz o senador.

O advogado criminalista Erik Torquato, membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, diz que a determinação de uma quantidade não deveria ser o foco da análise do Supremo. "O que o STF foi chamado a fazer é uma análise de compatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas com a Constituição ", critica, argumentando ainda que determinar se uma pessoa é usuária ou traficante apenas a partir da quantidade é um erro.

"Essa articulação que está acontecendo, de construir uma tese a partir da dosagem, é uma tentativa de atender a um anseio político que nada tem que ver com a tese inicial do julgamento, que é a garantia de direitos fundamentais protegidos na Constituição e que são violados pela norma que criminaliza a conduta do usuário", prosseguiu Torquato.

Já o professor de direito penal Thiago Bottino, da FGV-Rio e da Unirio, afirma que a definição da quantidade "reduziria a subjetividade dos agentes públicos na avaliação de quem é traficante ou usuário" e que "critérios objetivos trazem maior igualdade de tratamento dos cidadãos, independentemente de raça, condição social ou idade".

Assim, ele não vê problema em o Supremo, "por ter julgado centenas de milhares de casos envolvendo drogas", fixar um critério que oriente o funcionamento do sistema de Justiça, "como já ocorre toda vez que consolida jurisprudência sobre algum tema."

Questão racial

Defensores da descriminalização argumentam que ela ajuda a diminuir o encarceramento de jovens, sobretudo pretos e pobres, abordados com pequenas quantidades de drogas. Já os contrários à proposta dizem que a descriminalização aumentará o consumo de substâncias proibidas entre os jovens.

Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (Ipea) de outubro de 2023 mostra que o número de réus negros em crimes por tráfico de drogas é duas vezes superior ao de brancos.

De acordo com o levantamento, a maioria dos réus processados por tráfico de drogas é do sexo masculino (86%), tem até 30 anos (72%) e possui baixa escolaridade (67% não concluiu o ciclo de educação básica).

Para Bottino, a atual aplicação da Lei de Drogas faz com que uma parte dos usuários seja tratada como traficante, sobretudo jovens negros, de periferia e com baixa escolaridade, em razão da falta de critérios diferenciadores.

Ele afirma que a Lei de Drogas "é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil", ressaltando que o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 745 mil presos – atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e da China (1,7 milhão).

Para Bottino, o usuário de drogas não deveria ser tratado como criminoso porque sua conduta não causa danos a outras pessoas. Polícia, Ministério Público e Judiciário deveriam dedicar seu tempo e recursos apenas às condutas mais graves. "É possível fazer um paralelo com o trânsito: quem ultrapassa a velocidade é multado, mas isso não é um crime. Se ultrapassar o sinal e atropelar alguém, aí sim é crime. Da mesma forma, portar maconha não deveria ser crime. Se praticar um crime sob efeito da droga, isso poderia agravar a pena."

O ativista Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, diz que o debate sobre a política de drogas é uma questão racial. "A lei, como está hoje, produz um massacre racial."

"Não podemos esquecer que é ano eleitoral e isso está [no âmbito] da pauta dos costumes. Mas é evidente que o debate supera isso [a política de drogas]. Trata-se do encarceramento, de uma política de morte e do direito individual garantido pela Constituição", diz.

Mesmo se a PEC for aprovada no Congresso, ela ainda poderá ter sua constitucionalidade questionada no próprio STF.

O protagonismo popular nos resgates no Rio Grande do Sul

No último sábado (04/05), o empresário Bruno Nagel Conrado, de 41 anos, acordou seguro em uma casa seca, confortável e tranquila. Mas logo cedo, recebeu pelo celular a informação de que havia uma família presa em uma casa praticamente debaixo d'água no bairro São Geraldo, em outra região da cidade de Porto Alegre.

"Tenho facilidade com água, surfo desde pequeno. Me prontifiquei em colocar a roupa de borracha e ir resgatá-los”. Desde então, Bruno não saiu mais da água: não apenas salvou aquela família e seus dois cachorros, mas ajudou a resgatar mais de mil pessoas nas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul.

"Nesse primeiro dia, resgatei as pessoas à pé, guiava elas pelas ruas com a água no peito. Como já havia feito o caminho, conseguia conduzi-las de volta até um local seco”, relata.

"Vi gente muito mal de saúde. Tivemos até de levar insulina praticamente nadando a condomínios distantes”.

Bruno avisou os amigos, que conseguiram botes e equipamentos, e formou um grupo que ganhou volume rapidamente, unindo cerca de 300 voluntários para atuar nos salvamentos. Batizaram o time de "resgate molhado”. 

Logo, uma subdivisão do grupo até acabou juntando-se ao poder público. O vice-prefeito e a coordenadoria da Defesa Civil da cidade criaram uma equipe de trabalho e atribuíram uma zona de Porto Alegre à liderança dos voluntários.

Voluntários resgatam animais em Porto Alegre
Voluntários resgatam animais em Porto Alegrenull Bruno Nagel Conrado/DW

"A logística e processo dos resgates do viaduto da Edu Chaves ficou sob nossa responsabilidade, inclusive caminhões do Exército”, conta Bruno. "Acredito que as forças do estado demoraram um pouco para reagir nos resgates aqui em Porto Alegre, mas depois foram fundamentais, principalmente a defesa civil”.

"No início era realmente as pessoas se ajudando. Não tinha nada relacionado ao governo que eu tenha visto”, conta o profissional de Relações Internacionais Rafael Folmann Chernhak, de 39 anos. "Mas depois o exército e bombeiros começaram a aparecer nos resgates, e a polícia civil estava auxiliando na segurança das pessoas”, acrescenta.

Rafael viu o seu bairro, Humaitá, ser totalmente invadido pelas inundações e teve o apartamento, térreo, tomado pela água. No dia seguinte em que saiu de casa fez seu primeiro resgate: o do irmão. Andou 10 km com água no pescoço para tirá-lo de casa. Voltando ao seu bairro, Rafael foi linha de frente na evacuação das casas. "Usamos de tudo, botes infláveis, pedaços de telha, colchões infláveis, até geladeira para salvar as pessoas".

O voluntário Rafael Folmann Chernhak
O voluntário Rafael Folmann Chernhak, de 39 anosnull Rafael Folmann Chernhak

O empresário do ramo da construção civil, Chad Khatib, 42 anos, dormiu na empresa no primeiro dia de alerta de enchente na cidade de Porto Alegre para monitorar a situação. Sem ter o que fazer pelo próprio empreendimento que começava a alagar, ele viu que podia fazer muito pelas outras pessoas. "No sábado começamos a resgatar atingidos com um Jeep GMC full size. Creio que tenhamos feito umas 30 viagens com umas sete pessoas socorridas a cada vez."

"A cena que mais me impactou foi ver uma mãe com água no pescoço segurando seu bebê contra o teto. Não sei quanto tempo ela ficou ali, com os braços erguidos, até a gente chegar”, diz o empresário, que encontrou a família dentro de uma casa em um beco, após ouvir gritos.

Com a subida da água, o jeep que Chad e seus amigos usavam já não dava mais conta. Aos poucos foram conseguindo barcos e motores emprestados ou comprados. "No segundo dia fomos até 4h30 da manhã fazendo salvamentos, havia muitos jet skis na área ajudando também", conta.

o empresário Bruno Nagel Conrado
O voluntário Bruno Nagel Conradonull Bruno Nagel Conrado/DW

Situação de desespero e vulnerabilidade

Os voluntários se depararam com uma população extremamente fragilizada. Pessoas com dificuldade de mobilidade, idosos, grávidas, crianças de colo. "Vi gente que tinha câncer, que tinha recém passado por cirurgias, pessoas que não poderiam entrar em contato com aquela água de jeito nenhum,” conta Rafael Folmann Chernhak.

Um dos resgates mais desafiadores que o internacionalista fez foi de um cadeirante de 96 anos, e sua esposa, de 90 anos. "Puxamos ele de cadeira de rodas do 5 andar do prédio pro bote, e depois do bote pro caminhão do exército”. Já em outro caso, teve de se comunicar com um idoso que era deficiente auditivo. "Ele morava sozinho e não adiantava gritar, apitar. Então perguntamos para o familiar que havia pedido resgate – e estava em contato conosco – se ele sabia ler. Assim, levamos algo para escrever e explicar ao senhor a situação”.

Em alguns casos, para alcançar moradores no interior dos condomínios, apenas barcos não eram o suficiente, tinham de levar colchões infláveis até as saídas das casas. "Tentávamos sempre colocar famílias juntas, se tinha crianças nunca deixávamos sozinha”, diz Rafael.

Chad Kathib relata um socorro especialmente delicado: ao chegar na casa de uma família a ser resgatada nas imediações da Arena do Grêmio, já à noite, havia uma idosa morta. "Me quebrou total. Não removemos, mandamos esperar a polícia. Decisões eram extremamente complicadas, era tudo muito novo para nós”, conta.

Uma logística improvisada

Rafael, morador do Humaitá, organizou com o irmão mais velho o recebimento dos chamados de socorro: "Centralizamos nele as informações. Ele perguntava o endereço, quantas pessoas eram, e se havia idosos, bebês, pets…e nos repassava”.

Bruno conta que o dia mais efetivo de operação foi na segunda-feira (06/05) quando montaram uma central de auxílio em uma estação de trem alagada. "Era um ponto intermediário entre as áreas críticas e a parte seca. Estava alagado, mas o nível da água era mais baixo, possível de alcançar de caminhão” Ali, o time de voluntários conseguia consertar equipamentos, abastecer o motor dos barcos, e oferecer um primeiro atendimento às pessoas–com água, comida, remédio– que então eram levadas pelo exército até áreas secas.

"Precisávamos tomar decisões sempre rápido, é muita pressão, pessoas gritando, pedidos de ajuda”, expõe Bruno.

Um rosto conhecido

Tendo morado toda a vida – seus 39 anos – no bairro Humaitá, Rafael foi crucial para os resgates da região. Um problema que voluntários relataram, é que muitas pessoas resistiam em deixar suas casas, às vezes por achar que água iria baixar e a situação não iria se agravar, outras por receio de que o resgate fosse um golpe para realizar assaltos.

Mas a presença de um rosto conhecido, um líder comunitário, entre os voluntários fez toda diferença. "As pessoas confiavam em mim, muitas me conheciam, e às outras eu relatava que também morava ali, que já havia perdido tudo, que precisavam sair naquele momento ou poderiam não ter mais chances. Agilizou o processo”, relata Rafael, que também auxiliou voluntários e forças do exército a se localizarem pelas ruas alagadas.

Abrigo com desabrigados em Porto Alegre
Abrigo com desabrigados em Porto Alegrenull Diego Vara/REUTERS

Em certas zonas, a ameaça de delitos passou a ser mais um fator de risco para quem estava empenhado nos resgates. O grupo de Bruno Conrado começou então a incluir, sempre que possível, um policial civil no barco para garantir a segurança. "Nos foi relatado, por exemplo, uma troca de tiros entre a polícia e criminosos que saqueavam uma fábrica”, conta Bruno.

"Estou o tempo todo vendo gente sofrendo, estou dormindo pouco, é bastante exaustivo”, diz Rafael, que estima que tenha resgatado quase duas mil pessoas junto a um amigo. "É desolador saber que houveram avisos da MetSul e a urgência da situação não foi passada à população. O próprio comitê de crise da cidade fica em uma zona alagada. É a população que está se ajudando”, desabafa Rafael.

Com a semana dramática chegando ao fim, os voluntários relatam que apenas casos mais específicos ainda estão por ser auxiliados, de pessoas que veementemente se negam a sair. Mas com o nível da água ainda alto e os suprimentos da população se esvaindo, mais pessoas devem necessitar de resgate. E o desafio do frio e de mais chuva bate à porta.

Uma sólida rede de apoio

"Quando tu tá lá na ponta, dentro da água, e começa chegar pra ti combustível, água potável, óleo, ferramenta para consertar barco, dá um alento. As doações e a mobilização das pessoas estão fazendo toda diferença”, diz Bruno.

As engrenagens da solidariedade parecem estar a todo vapor: alguns arrecadam doações de coisas que tem em casa ou recolhem doações em dinheiro e compram os suprimentos que faltam aos abrigos e aos resgates, outros vão a centros e instituições e ajudam a organizar essas doações, e todos compartilham informação. Assim, as faltas e necessidades vão pouco a pouco sendo supridas.

"Na segunda feira peguei carona com uma empresa que tinha um total de 5 retroescavadeiras. já tinham perdido duas na água, poderiam perder a empresa toda, e estavam lá ajudando, disponibilizando as que haviam sobrado”, conta Rafael.

Voluntários na capital gaúcha
Voluntários na capital gaúchanull Rafael Folmann Chernhak

Uma ajuda que tem vindo de diversas partes. Os voluntários relatam que encontraram até pessoas vindas de outros estados para atuar nos resgates. Voluntários de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo, pessoas que tinham barcos ou não e desceram para o sul, muitas vezes sem conhecer ninguém na região.

Enquanto conversa com a DW por telefone, Rafael descreve o local onde se encontra: "agora eu estou na frente de onde os botes estão saindo. Perto daqui tem uma central de recebimento de tudo que as pessoas organizam para trazer. Tem atendimento, água, triagem, tem até gaiolinhas para os animais que são resgatados. A População que se organiza e traz.”

"Penso que quando a água baixar vai doer muito, vamos ver coisas que não gostaríamos de ver. Mas a gente vai se reerguer, acredito que é também uma oportunidade para aproximar as pessoas”, observa Bruno.

Partidos ficarão fracos sem inclusão feminina, diz ministra

Nesta semana, pela primeira vez em nove décadas da Justiça Eleitoral, duas ministras negras participaram de uma sessão no Tribunal Superior Eleitoral (TSE): Edilene Lôbo, a primeira mulher negra na função, desde setembro de 2023, e Vera Lúcia Santana Araújo, empossada em fevereiro, são ministras substitutas, e ocuparam as cadeiras no plenário pela ausência de dois titulares.

"Senti muita falta de pessoas como eu por onde andei minha vida inteira", disse Edilene Lôbo em entrevista à DW, no início de maio, após palestra sobre democracia e empoderamento feminino na embaixada do Brasil em Berlim. "Sinto que minha presença é um gesto."

Além do Judiciário, Lôbo destacou a sub-representação das mulheres, sobretudo negras, na política. Das 16 milhões de pessoas filiadas a partidos políticos no Brasil, 47% são mulheres. No entanto, elas ocupam apenas 12% das prefeituras, 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 19% no Senado. "Se os partidos não abraçarem a ideia de que nós precisamos enfrentar esse tipo de desigualdade, vão perder importância", afirmou.

Lôbo falou ainda sobre regulação das redes sociais e da necessidade de transparência sobre os algoritmos e modelos de negócio dessas empresas.

DW: Como garantir maior representatividade de mulheres na política quando ainda vivemos uma realidade em que partidos burlam regras de cotas de gênero?

Edilene Lôbo: Precisamos falar de lugares marcados nos parlamentos para as mulheres, e falar de equidade racial nesses lugares marcados. E precisamos, mais do que nunca, falar da responsabilidade das agremiações partidárias com esse futuro, que tem que ser para hoje. Esse futuro que não chega nunca. Se os partidos não abraçarem a ideia de que precisamos enfrentar esse tipo de desigualdade, vão perder importância. E não interessa para ninguém que os partidos percam importância, porque são instituições da democracia representativa. Se eles caem, fragiliza a democracia.

Uma sociedade que se estrutura na desigualdade não tem futuro. Então isso deveria ser do interesse de todos, falar de inclusão, falar de diversidade, falar de partilha. É falar de uma vida boa para todo mundo, inclusive para as famílias dessas pessoas que estão talvez nos melhores lugares hoje. Mas se a coisa continuar como vai, não vai sobrar nada para ninguém.

A senhora furou essa barreira, ainda é, infelizmente, uma exceção. Uma vez dentro de um espaço majoritariamente masculino e branco, como é lidar com o sexismo e o racismo estrutural?

Agora sou ministra substituta no Brasil, com mandato de dois anos, que vence no ano que vem. Em 92 anos da Justiça Eleitoral, sou a primeira ministra negra naquela corte. Quando cheguei ao TSE, fui muito bem recebida, portas abertas. Agora, estamos falando de um lapso, uma lacuna de 92 anos, e ainda assim em uma função que tem uma limitação. Precisamos dar um passo adiante. Como falamos de cota nos parlamentos, precisamos discutir a partilha justa dos espaços decisórios, inclusive no Judiciário.

O que tem sido feito nessa direção?

Esse é um problema no Judiciário em geral. No Brasil, nas carreiras iniciais, as mulheres chegam. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, é quase 50/50 homens e mulheres. As mulheres começam a desaparecer, e você quase não vê negras, quando falamos dos escalões do Judiciário que envolvem a escolha política. Então temos uma resolução do final do ano passado do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que destaca, por exemplo, que as promoções em tribunais na segunda instância se dão por merecimento por atividade. As idicações terão de constar em listas, de homens e mulheres.

A senhora, inclusive, foi indicada a partir de uma lista. 

Por duas vezes eu estive – a primeira lista era para para o cargo de titular. Eram duas vagas, foram nomeados dois homens brancos para elas. Depois fiquei na lista de substitutos, vim para a vaga de substituta e agora, comigo, a ministra Vera Araújo, também uma negra. Somos as duas primeiras negras a chegarem, mas ainda estamos numa função de substituição.

O TSE deverá encabeçar as ações contra fake news e de regulação das plataformas digitais neste ano eleitortal, uma vez que o projeto de lei que tratava do assunto foi enterrado no Congresso?

Tenho observado que a sociedade brasileira pede regulação das redes sociais, pede ação na direção de construir uma legislação mais, diria eu, sólida e de olho, por exemplo, no que nós vemos na Europa, mas no campo da Justiça eleitoral, com base nas leis existentes.

O que o TSE tem feito não é criar regras, mas explicitar o conteúdo dessas leis por meio de resoluções. Tem uma resolução muito importante que é da propaganda eleitoral, em que lá está descrito, com todas as letras, que não pode desinformar, não pode usar a inteligência artificial para manipular, não pode veicular conteúdo ofensivo, atentatório ao estado democrático de direito e discurso de ódio.

O que o TSE faz é explicitar a legislação que nós temos. É amalgamar todo esse debate que já se fez na sociedade brasileira e aperfeiçoar algumas outras leis. Também confio que o Congresso Nacional vai entregar esse regramento no que diz respeito às eleições.

O que precisa ser regulado com mais urgência?

Precisamos, por exemplo, falar da transparência, do desenvolvimento do algoritmo. Precisamos saber como essas fórmulas neurais, essas receitas para responderem problemas ou entregarem produtos, se aplicam em determinadas situações da vida.

Construiu-se no entorno do mundo digital uma hipercomplexidade. Não compreendemos bem o modelo de negócio, me parece que há uma construção cuidadosa de segredos, e precisamos resolver isso. Se for inexplicável, provavelmente não é bom. Se for inexplicável, provavelmente não deve ser utilizado.

Por que o Rio Grande do Sul está tão exposto às catástrofes

Ainda não se sabe a dimensão da tragédia provocada pelas inundações históricas que começaram na região central do Rio Grande do Sul no início da semana e que chegam à capital, Porto Alegre. Equipes de resgate não conseguiram adentrar muitos dos locais atingidos, afirma a Defesa Civil estadual à DW.

Até este sábado (04/05), mais de 57 mortes em decorrência das enchentes haviam sido confirmadas pela Defesa Civil. Outros 67 seguem desaparecidos. Nos últimos dias, metade da chuva prevista para todo o ano de 2024 caiu no estado, segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB).

Em Porto Alegre, voluntários recebem quem chega das ilhas do entorno. Embarcações transportaram para a capital mais de 500 pessoas evacuadas. Um centro de treinamento esportivo se transformou em abrigo provisório.

"A situação está terrível. A gente está sem estrutura, no escuro praticamente. Tem muita gente vindo para cá", diz à DW Paula Brust, uma das voluntárias que acolhem quem chega.

Para quem atua no monitoramento da situação, a perplexidade e o cansaço pelas horas ininterruptas de trabalho são grandes.

"Estamos ainda sem acreditar no volume de chuvas registrado. Nós pensamos até, inicialmente, que nossos equipamentos estavam com defeito", resume Franco Buffon, superintendente da região Sul do SGB.

A situação é considerada tão grave que, mesmo se não chovesse mais nos próximos dias, o quadro seguiria muito dramático. A previsão é que mais chuvas atinjam a região.

Fuga e choque

Em Porto Alegre, o nível do Lago Guaíba atingiu marca recorde, superando os 5 metros neste sábado, nível acima do da cheia histórica de 1941. Naquele ano, a água atingiu a marca de 4,76 metros e deixou 25% da população da cidade desabrigada.

O Guaíba, que até cruzar a capital é chamado de Rio Jacuí, recebe toda a água que cai no centro do estado. Porto Alegre é a última cidade do percurso até o seu deságue no Atlântico.

Em municípios menores ao longo de rios que fazem parte da mesma bacia hidrográfica, comunidades inteiras parecem ter sido varridas do mapa. Em Estrela, o Rio Taquari chegou à marca recorde de 33 metros. Isso acontece apenas seis meses depois de ele ter alcançado sua cota máxima, que era de 29,53 metros. Quando a água ultrapassa os 19 metros, o rio extravasa e atinge casas e uma indústria próxima.

Vista aérea da cidade de Porto Alegre alagada com águas do Lago Guaíba
Nível do Lago Guaíba atingiu maior nível em 83 anos e invadiu centro de Porto Alegrenull Gilvan Rocha/Agencia Brasil/picture alliance

Com a catástrofe, muitos equipamentos que fazem medição se perderam. Buffon, do SGB, conta que postes instalados às margens dos rios provavelmente foram levados pela enxurrada, e sensores que ficam em contato com a água são atingidos por grandes objetos que vão parar na água: rochas, veículos, escombros de casas.

Em São Leopoldo, banhada pelo Rio dos Sinos, também parte da bacia hidrográfica do Guaíba, famílias que sempre acreditaram morar em bairros seguros deixam suas casas. A bióloga Daiana Schwengber correu de Porto Alegre para ajudar os pais no interior e agora todos estão abrigados na casa de amigos.

"A água subiu muito rápido. Começamos a bater palma em frente à casa das pessoas para ajudar a Defesa Civil a alertar as pessoas para que todos saíssem. Foi muito triste. Muitas pessoas idosas, todos chocados", relatou Schwengber à DW sobre a situação em São Leopoldo.

Sobreposição de fenômenos climáticos

Marcelo Seluchi, coordenador do Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, Cemaden, diz que a semana de chuva era aguardada, mas não no volume registrado. A explicação está numa sobreposição de fenômenos climáticos que transformou a região central do Rio Grande do Sul num "alvo".

Uma onda de calor estranha para o mês de maio no centro do Brasil, causada por área de alta pressão, funciona como uma "parede" e não deixa as frentes frias que vêm do Sul avançarem. Como houve uma sequência de frentes frias barradas, toda a água se precipitou no Rio Grande do Sul e causou chuvas por horas e horas consecutivas. Ao mesmo tempo, ventos que chegam do Norte e transportam a umidade da Amazônia pelos chamados rios voadores encontraram o mesmo alvo.

"Provavelmente, há influência ainda do El Niño que está desaparecendo agora em maio. As ondas de calor ainda estão intensificadas em função dele", avalia Tércio Ambrizzi, pesquisador do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, USP.

Para Seluchi, nenhum lugar do mundo resistiria a uma situação destas. "Talvez deveria haver planos de contingência, planos de prevenção, que são feitos na época seca. Não se faz de uma semana para outra. Isso, sim, está faltando", analisa.

Tragédia anunciada

Todos os alertas de ocorrência de eventos climáticos extremos têm sido ignorados pelo poder público no Rio Grande do Sul, segundo Miriam Prochnow, da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida, Apremavi.

"As cidades ignoram que isso tem que ser levado em conta quando se faz planejamento urbano. Não pensam em retirar pessoas de área de risco, permitem ocupação em áreas onde a enchente já chegou. É ignorar a crise climática solenemente", diz Prochnow à DW.

Karina Lima, geógrafa que pesquisa tempestades severas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, ressalta que o estado está numa zona muito afetada pelo El Niño e La Niña – e que os governantes sabem disso.

Pessoas andam sobre telhados de área alagada
Pessoas sobre telhados em Encantado: metade da chuva prevista para todo o ano de 2024 caiu no RS em apenas alguns diasnull Diego Vara/REUTERS

"Modelos matemáticos já preveem há muito tempo que o RS continuará a tendência de aumento da precipitação média anual e da precipitação extrema, ou seja, mais chuvas concentradas e severas. Com certeza se investe muito pouco em um estado que está tão vulnerável a eventos extremos", afirma Lima.

Para Clóvis Borges, diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), o Rio Grande do Sul perdeu há muitas décadas a resiliência para enfrentar os extremos climáticos.

"Foi o primeiro estado a cobrir todo território com propriedade agrícola. Eliminaram praticamente suas áreas naturais", diz Borges, lembrando que restam 7% da área original de Mata Atlântica no RS e que o bioma Pampas é um dos mais ameaçados.

"Uma fração das mortes, do prejuízo econômico que se vê agora, é por causa do descumprimento da legislação ambiental. Se a classe política continuar relegando isso, vamos passar por situações mais duras", prevê Borges.

"O negacionismo precisa ser deixado de lado, já que as catástrofes estão ficando cada vez mais intensas", diz Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

"Os atuais governos, tanto do estado quanto da prefeitura da capital e outras cidades do interior, estão sob comando de negacionistas climáticos. Isso fica exposto pelas políticas que eles encaminham”, declara Lacerda à DW.

Lacerda cita como exemplo um projeto de lei de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), aprovado na Câmara dos Deputados em março último. A medida autoriza o corte de vegetação nativa não florestal – como Pampa, parte do Cerrado e do Pantanal. Na prática, mais de uma área equivalente aos estados do Rio Grande do Sul e Paraná de mata nativa podem sumir do mapa se a lei passar no Senado.

Porto Alegre, uma cidade em colapso

"Por enquanto estamos todos solidários e colaborativos, mas quando essa água baixar e cada um lavar a sua lama, vai ter doença, vai ter fome, porque as pessoas virão das cidades que desapareceram para a cidade grande, em um grande êxodo climático", alerta a ambientalista Tania Pires.

Fundadora do Centro de Inteligência Urbana de Porto Alegre (Ciupoa), ela mesma se tornou o que chama de desabrigada climática, ao deixar sua casa na zona sul de Porto Alegre quando o imóvel começou a encher de água.

"Há mais de uma década trabalho com prevenção de riscos, alertando a necessidade de populações carentes deixarem suas casas, mas só quando fui obrigada a deixar a minha é que percebi o quão doloroso é esse processo", desabafa.

A elevação das águas do Guaíba expôs a fragilidade de parte da infraestrutura urbana da capital do estado mais populoso do sul do país. O sistema de contenção de enchentes, composto por diques, comportas e um muro na região costeira, data de 1974 e tinha falhas estruturais e de manutenção quando a enxurrada dos rios Jacuí, dos Sinos e Caí chegou à cidade.

Pessoas em cima de blindado do Exército em rua alagada
Moradores de Porto Alegre evacuados de suas casasnull Andre Penner/AP Photo/picture alliance

A tomada por águas barrentas afetou a operação das bombas de captação de água limpa da companhia de distribuição. Das seis bombas, apenas uma continuou funcionando, gerando a cruel ironia: na cidade onde pessoas são resgatadas de suas casas tomadas pela água, quatro a cada cinco habitantes ficou sem água potável nas torneiras.

Com o passar dos dias, outras três bombas voltaram à atividade, mas aquela localizada no arquipélago do delta do rio Jacuí não deve voltar a operar neste ano, o que pode levar a racionamento de água mesmo nos bairros reabastecidos.

"O Morro da Cruz (bairro pobre da cidade) está há cinco dias sem água, e já avisaram da Prefeitura que não há caminhão-pipa para enviar para lá", reclama Pires.

Asilo ilhado e ameaçado

Isolado no meio a um lago formado pela enchente nas proximidades do estádio do Beira Rio, na zona sul da cidade, o asilo Padre Cacique passou por horas de desespero na última terça-feira. Já há quatro dias sem água, a instituição de 125 anos contava com o poço artesiano para o preparo dos alimentos e suporte aos mais debilitados – colocados em xeque quando a luz elétrica foi cortada por segurança, para evitar choques em pessoas nas águas e curto-circuitos na rede.

Edifício antigo branco cercado de água
Asilo Padre Cacique, localizado a 400 metros do Guaíba, já testemunhou diversas enchentes, mas nenhuma tão forte como a deste anonull Gustavo Basso/DW

A decisão súbita revoltou os profissionais do local. "Neste momento são 130 pessoas dentro desta instituição sem água, e agora sem luz, desligada de uma hora para outra sem que tivéssemos tempo de correr atrás de uma solução, de um plano de evacuação", reclama a médica geriátrica Júlia Santana.

Entre essas pessoas, estão 30 funcionários e 32 pacientes acamados, cujos cuidados de saúde paliativos dependem do fornecimento de luz e água. "Alguns precisam de respirador, outros de aspiração pulmonar, oxigênio… São muitas situações, em que o pior desfecho possível seria o óbito de um paciente pela falta de luz", desabafa.

Poucos minutos antes da troca do turno, no entanto, a diretora-geral da instituição, Elisiane de Albuquerque, observava satisfeita a chegada de dois geradores a bordo do caminhão do Exército que faz a ponte do asilo com o resto do mundo. "Os corredores e quartos ficarão no escuro, o que é ruim e perigoso, mas ao menos teremos água para cozinhar e freezer para preservar os alimentos. Parece pouco, mas já é muito", ressalta, observando um dos seu pacientes ir embora no mesmo caminhão para ser operado.

Duas mulheres de costas e sentadas observam área alagada
Médica geriátrica Julia Santana (à esq.) está dormindo no próprio asilo em algumas noitesnull Gustavo Basso/DW

Diante do caos instalado, os hospitais de Porto Alegre vêm atendendo somente pacientes de urgência e emergência. Segundo oficiais, um dos maiores problemas enfrentados é a falta de profissionais, seja por terem sido afetados pela enchente ou morarem na região metropolitana e não conseguirem chegar à capital para trabalhar. No asilo ilhado, alguns funcionários estão dormindo no próprio local, como as própria Santana e Albuquerque.

Abrigos inseguros

Nos últimos dias, os poucos momentos de Santana fora da casa de acolhimento foram em abrigos na região metropolitana. O maior deles, na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, já reune mais de 8 mil pessoas desabrigadas. O terreno, no entanto, é fértil para o crescimento da criminalidade.

Até quarta-feira, seis homens haviam sido presos sob suspeita de estupros em abrigos de Porto Alegre, Canoas e Viamão, na região metropolitana. Quatro situações envolvem crianças de seis e 10 anos, e em uma a vítima é uma jovem. Os episódios de Canoas e Porto Alegre, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), envolveram familiares das vítimas.

Em outros espaços, revelam-se nos ambientes comunitários emergenciais as rixas já presentes em tempos de normalidade. "A identidade completa dos abrigados aqui é preservada ao máximo possível, para que membros de facções criminosas não possam reconhecer membros de facções rivais", conta sob sigilo a funcionária de um dos maiores abrigos da capital.

"O pessoal começa a brigar por qualquer coisa, estão todos à flor da pele, briga até por comida ou café", relata uma moradora da Vila Tio Zeca, que quando chegou à sua casa vinda do trabalho, encontrou-a com água pela cintura. Segundo ela, nem mesmo o dinheiro ajuda a suprir o desejo por café, já que não é possível comprar água no supermercado, onde o item está em falta.

Crise logística

Porto Alegre possui cinco grandes portas de entrada rodoviárias, além de ferrovia e o aeroporto Salgado Filho. Apenas uma rodovia permanece em funcionamento, enquanto os demais caminhos estão submersos — incluindo a pista e o saguão do aeroporto. Com tantas portas fechadas e a única aberta direcionando para o litoral, ao invés do interior do estado e mesmo para Santa Catarina, o abastecimento de itens básicos não consegue repor o que é retirado das prateleiras.

Imagem interna de abrigo com colchões no chão e pessoas
Milhares de pessoas estão vivendo em abrigos em Porto Alegre e na região metropolitana null NELSON ALMEIDA/AFP

Água mineral é um artigo impossível de ser encontrado nas gôndolas desde pelo menos o último sábado, quando moradores começaram a fazer estoques. O mesmo acontece com frutas e alimentos frescos, com a inundação da Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), nas proximidades do aeroporto, e do Mercado Central da cidade.

Fenômeno semelhante ocorre com combustíveis: filas enormes se formam nos postos de gasolina quando há o produto à disposição, inclusive para os tanques de barcos e motos aquáticas que fazem boa parte dos resgates de moradores ilhado em suas casas – revelando a absoluta necessidade dos voluntários que vêm de diferentes cidades e estados para cobrir as lacunas deixadas pelo poder público.

"Estamos montando o avião no ar, e os órgãos públicos também", avalia Santana, que após 36 horas deixava o asilo na caçamba de um caminhão. Para a médica, é necessária uma maior cultura de prevenção e protocolos de emergência para casos extremos. Um esforço, porém, que não costuma angariar votos diante da falta de visibilidade, e que por conta disso deixa a população exposta a cada nova tragédia.

Operação de guerra: como é o acolhimento nos abrigos de Porto Alegre em meio às enchentes

A cada quinze minutos, em frente ao clube esportivo Geraldo Santana, no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre, escuta-se uma voz gritar: "acolhimento, acolhimento". Então, voluntários vão até algum veículo que para em frente ao estabelecimento e recebem pessoas que tiveram de deixar suas casas em razão das enchentes que assolam o Rio Grande do Sul desde o final do mês passado.

Algumas pessoas chegam com dificuldade de mobilidade e os voluntários providenciam cadeira de rodas, oferecem o braço como apoio e ajudam a carregar eventuais sacolas – mas muitos chegam apenas com a roupa do corpo.

O espaço funciona como centro de triagem para encaminhamento da população a abrigos emergenciais. As enchentes que atingem o estado já deixaram mais de 100 mortos, de acordo com o último levantamento da Defesa Civil desta quarta-feira (08/05). A tragédia afetou diretamente mais de 1,4 milhão de pessoas. Além disso, há 128 desaparecidos, quase 400 feridos e mais de 200 mil pessoas tiveram que deixar suas casas. Destes últimos, cerca de 66 mil são considerados desabrigados – precisaram se dirigir a abrigos do poder público ou de iniciativas voluntárias por não terem a quem recorrer.

Do total de 497 municípios do estado, 414 foram afetados pelas enchentes – cerca de 83% – e 336 estão em situação de calamidade pública. Enquanto a água baixa em regiões como o Vale do Taquari e o Vale do Caí, a situação ainda é crítica em Porto Alegre, na região metropolitana da capital e em cidades vizinhas, e se agrava no sul do Estado. O fluxo de pessoas em deslocamento e buscando abrigo é constante. "Estimamos que cerca de 6 mil pessoas tenham passado em 24 horas no centro de triagem neste local, aberto na segunda-feira (06/05)", aponta Larissa Nunes Carlosso, coordenadora de comunicação da secretaria de Obras da prefeitura de Porto Alegre e uma das coordenadoras do local.

Satellitenbilder Brasilien Rio Grande do sul | Überschwemmungen vorher und nachher
Comparação entre fotos de satélite de 19 de abril e 8 de maio deixa evidente o tamanho da tragédia em Porto Alegrenull Planet Labs PBC/AFP

Ao chegarem no centro de triagem, as pessoas têm atendidas primeiro as necessidades básicas: água, comida, a possibilidade de utilizar produtos de higiene e de trocar de roupa. De acordo com a coordenadora da prefeitura, são cerca de 400 voluntários auxiliando na triagem, incluindo diversos profissionais da área da saúde.

"É um primeiro acolhimento. Algumas pessoas chegam machucadas pela situação em que foram resgatadas, algumas estão desidratadas por terem ficado dias sem água. Também oferecemos tomadas e carregadores, e aqueles que conseguiram trazer seus celulares conseguem contatar familiares".

A partir do centro de triagem, muitas pessoas recebem carona voluntária para casa de amigos ou parentes. As que não têm onde ficar são encaminhadas para algum dos mais de 60 abrigos cadastrados na prefeitura de Porto Alegre. O SOS Rio Grande do Sul lista 192  abrigos em outras regiões do estado.

"Ainda temos algumas questões de resgate e acesso, mas cada vez menos. Também é importante que as pessoas atendam aos pedidos dos agentes públicos lá na ponta, quando for dito que precisam sair, que a água vai subir", frisa a tenente da Defensoria Civil do Estado Sabrina Ribas.

As pessoas são levadas à triagem e aos abrigos de diferentes formas: por viaturas da Brigada Militar (o equivalente à Polícia Militar no RS) e da Defensoria Civil, por voluntários e também por algumas linhas inoperantes de ônibus da cidade. Fixada nos portões do clube, está uma lista com as necessidades atualizadas do centro.

"O que mais precisamos é água potável, é o principal", diz a coordenadora. Estima-se que 85% de Porto Alegre esteja sem água potável. A situação é ainda mais grave com o aeroporto Salgado Filho e a rodoviária inoperantes. 

Uma sólida estrutura voluntária

O salão paroquial da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, transformou-se desde domingo em uma das dezenas de abrigos de iniciativas independentes que não estão cadastrados na prefeitura. "Quando o padre Bruno deu o alvará, levantamos a estrutura em duas horas: com doações, colchões, e roupas separadas por tamanho. Esperamos uma hora e aí as pessoas já começaram a chegar", conta o coordenador do local, Ricardo Miranda.

Três homens ajudam idosa em cadeira de rodas
Quando necessário, voluntários recorrem a cadeiras de rodas para socorrer os desabrigadosnull Valentina Gindri

O abrigo, já lotado, acolhe cerca de 80 pessoas e conta com aproximadamente 40 voluntários ativos a cada turno, dos cerca de 500 registrados no grupo que organiza o espaço. Entre os voluntários estão profissionais de diversas áreas que contribuem com suas expertises, como psicólogos, médicos, psiquiatras, enfermeiros, educadores físicos, fisioterapeutas, chefes de cozinha, etc.

No interior do salão, além de uma estrutura voltada ao atendimento de saúde, há um espaço equipado com brinquedos e uma mesa com livros e bebidas.

"Estamos bem amparados, com água, cozinha equipada, remédios, todos os suprimentos e recursos necessários. Estamos conseguindo atender até pessoas com deficiências físicas. Mas tem muitos abrigos que estão com falta de muitas coisas, então as doações que chegam são encaminhadas adiante", explica Ricardo.

Segundo ele, algumas pessoas vão embora no mesmo dia em que chegam, mas muitas não têm previsão de saída. "Temos estoque de alimentos para dois meses, além de três semanas de planilhas de voluntários já organizadas”, menciona, prevendo que o trabalho voluntário no local possa estar longe do fim. A previsão é que o lago Guaíba demora até 30 dias para voltar ao nível normal. 

O drama de deixar o lar

"Quando a água começou a chegar perto do segundo piso foi que eu vi que a coisa estava feia e a gente precisava sair", conta Jacqueline Botelho Chaves, de 41 anos, moradora de Ilha Grande dos Marinheiros, parte do bairro Arquipélago, composto de diversas ilhas sobre o lago Guaíba. Jacqueline relata que enchentes são corriqueiras em seu bairro e que, mesmo com avisos de evacuação, ela não achou que precisaria deixar a casa. "Moro há 35 anos na ilha e todo ano tem enchente. A do ano passado e a de 2015 foram horríveis, perdemos coisas, mas mesmo com avisos não saímos por causa do segundo piso. Agora foi diferente”.

Ela está desde sexta-feira (03/05) à noite com o marido e o filho de 16 anos no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (CETE), onde opera um dos maiores abrigos cadastrados na prefeitura, acolhendo mais de 400 pessoas. 

Brasilien Überschwemmung Rio Grande do Sul
"Eu não tenho nadinha, se não tiver ajuda, não tenho onde morar", lamenta Naira Vieira Maia, de 60 anos.null Valentina Gindri

Na madrugada daquela sexta-feria, a situação se tornou crítica para a família. "Às 2h da manhã comecei a ligar para bombeiros, para a Defesa Civil, mas estava tudo ocupado. Aí fui para a janela e comecei a gritar por socorro". 

Jacqueline conta que um barco de moradores das ilhas veio resgatar seu vizinho e aproveitou para levar a sua família, em torno das 9h da manhã. "A sorte é que, além do barco, meu vizinho tinha também um caiaque. Só conseguimos sair porque, com o caiaque, deu para passar por baixo da garagem".

A família pôde levar consigo apenas os quatro cachorros, os celulares e a roupa do corpo. "Estamos muito aliviados que nossos cachorros estão aqui no abrigo também e podemos cuidar deles".

Uma longa jornada até o acolhimento

Do resgate nas águas até chegar ao abrigo na área central da capital, a família ainda teve de enfrentar uma saga. "O barco nos deixou na BR [rodovia] e tentamos ir para [a cidade de] Guaíba, mas o caminho estava bloqueado. A Brigada Militar pegava quem tinha sido salvo por moradores e levava para os abrigos, mas, todos que passavam por nós, já estavam lotados", conta Jacqueline. Da manhã até à noite, os três caminharam molhados, no frio, sem comida e sem água.

Agora, acolhida no abrigo do CETE, a família não tem previsão de sair das instalações. Iago Chaves, o filho de Jacqueline, desabafa: "não adianta irmos para outro lugar, as pessoas não têm água, não tem luz, aqui pelo menos tem o básico. Ir para algum parente agora seria mais um fardo". 

Voluntários organizam garrafas grandes de água mineral
Cerca de 85% da população de Porto Alegre está sem água potávelnull Valentina Gindri

Embora morem próximas na Ilha dos Marinheiros, Naira Vieira Maia, 60 anos, e Jacqueline só se conheceram no abrigo do CETE. "Já adotamos ela na família", brinca Jacqueline. "Perdi tudo, minha casa se foi com o rio, já era", conta Naira, que já havia sido gravemente afetada pelas cheias de 2023 e teve de passar um período morando em aluguel social.

Naira relata que passou por muita agonia até chegar no abrigo e conseguir se comunicar com familiares. "Ficamos dias sem energia, meus filhos estavam apavorados, chorando, achando que eu e meu marido tínhamos morrido. Meu filho está em outro abrigo, minha filha na casa de um parente, todos fomos atingidos".

Como ela, muitas famílias não têm nenhum recurso para se reerguer depois da tragédia. "Eu não tenho nadinha, se não tiver ajuda, não tenho onde morar", expõe a empregada doméstica. "Até a casa dos meus patrões foi totalmente inundada, nem sei onde vou trabalhar".

Apoio à saúde física e à emocional

O marido de Naira Maia tem diabetes e a doença foi uma das primeiras urgências a serem atendidas quando o casal chegou ao abrigo. "Ele cortou o pé com um caco de vidro. O corte não foi grande, mas por causa da diabetes a ferida piorou muito, ficamos assustados", relata.

A doença, aliás, tem sido uma grande questão para muitos dos desabrigados, relata a médica voluntária Anna Alice Ritter Madruga. "O pior caso que eu peguei foi de uma senhora diabética que estava com a glicose muito alta, podia entrar em coma diabético, mas conseguimos insulina".

A profissional relata que boa parte do trabalho nos centros de acolhimento é voltado à separação e à organização de remédios, já que a maior parte dos que perderam suas casas não conseguiu resgatar nem suas medicações. "Quando as pessoas chegam, fazemos uma ficha médica, perguntamos se tem algum problema de saúde e o último horário que tomou sua medicação, questões básicas. Se a pessoa está se sentindo mal, mandamos para o posto que montamos no abrigo. Em casos extremos, ligamos para o SAMU para que a pessoa seja levada ao hospital", explica.

Profissional da saúde examina pessoa sentada em um colchão.
Muitos dos desabrigados não puderam resgatar nem seus medicamentos antes de sair de casanull Cristine Rochol/PMPA

Pelo contato com a água insalubre, a maior preocupação são doenças como leptospirose, hepatite A, infecções de pele e gastrointestinais, rotavírus, entre outras, explica a médica, que prestou assistência no abrigo da Universidade Luterana do Brasil em Porto Alegre.

Além disso, a médica alerta para uma série de doenças epidemiológicas e respiratórias que podem escalonar nos abrigos pelo grande número de pessoas compartilhando o mesmo espaço. "Até a tuberculose é uma preocupação no longo prazo. Também zoonoses podem aparecer, por terem muitos cachorros e gatos misturados com as pessoas". Apesar disso, Ana Alice ainda não observou nos seus atendimentos pessoas com sintomas dessas doenças.

A voluntária ressalta que o maior desafio é a logística e sistematização, já que não faltam profissionais disponíveis e os remédios estão sendo supridos. "Uma solução que encontramos onde atuei foi deixar a ficha médica com os pacientes, pois elas estavam sendo perdidas em meio a tantas coisas para organizar".

Além do cuidado físico e a atenção a aspectos materiais, especialistas destacam a importância da saúde mental neste momento crítico. "O que está acontecendo invoca muitas questões traumáticas para pessoas que estão chegando aqui e tendo que lidar com tantas emoções", explica a psicóloga Larissa Bastiani Roggia, voluntária no abrigo da paróquia Auxiliadora.

"Fazemos a escuta e acolhimento de quem está chegando. Muitas pessoas que não tinham necessidades anteriores de tratamento de saúde mental estão tendo agora. Estão em uma situação de vulnerabilidade total e de grande incerteza e falta de perspectiva", expõe a psicóloga.

De acordo com a profissional, na hora do resgate, muitas famílias foram separadas e acabaram em abrigos diferentes. "Estamos buscando proporcionar esse encontro para que as famílias possam ficar juntas", destaca.

A profissional aponta que, no entanto, o aspecto emocional frequentemente é negligenciado. "Precisamos ter esse olhar para o interior, porque muito da possibilidade de reconstruir a vida vem desse sentimento de esperança, de poder sentir que tem força. Se não for cuidado, o trauma pode ter sequelas na saúde mental muito graves, como quadros ansiosos, depressivos, e até de suicídio".

Congresso segue pauta antiambiental em meio a enchentes no RS

Enquanto o Rio Grande do Sul vive a sua pior tragédia climática da história, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pretende votar uma proposta que incentiva e abre caminho para novos desmatamentos na Amazônia, bioma essencial para conter os impactos dos extremos climáticos

O projeto de lei |(PL) 3334 prevê reduzir de 80% para 50% a cota de reserva de imóveis rurais localizados na Amazônia Legal.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente, essa eventual redução pode representar um desmatamento potencial de pelo menos 281.661 km² — o equivalente a todo o território do Tocantins.

O projeto estava inicialmente na pauta da Comissão nesta quarta-feira (08/05), mas de acordo com o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), a discussão foi adiada porque o relator estava de licença médica. A expectativa é que o tema seja retomado semana que vem.

O projeto faz parte do que ambientalistas apelidaram de "pacote da destruição" –  25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que ameaçam direitos socioambientais e agravam a emergência climática.

Essas medidas visam flexibilizar regras sobre temas como licenciamento ambiental, direitos indígenas, mineração, recursos hídricos e financiamento da política ambiental. Segundo relatório da ONG Observatório do Clima, o pacote tem potencial de causar "dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão".

Protagonismo da bancada gaúcha

Parlamentares do Rio Grande do Sul estão na dianteira de algumas dessas propostas – três são de autoria de políticos do estado, que também ocupam outras funções estratégicas, como relatoria de projetos.

Um deles é o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais – proposto pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS). No fim de março, o projeto foi aprovado na CCJ da Câmara, com o relatório favorável do também deputado gaúcho Lucas Redecker (PSDB-RS).

"Esse projeto representa um impacto gravíssimo para toda a biodiversidade em áreas tão sensíveis e que poderiam estar preservadas, inclusive nessas regiões de encostas, de morros, que são propensas a situações de enchente e de deslizamento", explica Clarissa Presotti, especialista em políticas públicas da ONG ambiental WWF.

Questionado sobre o projeto, Redecker afirmou que o texto "se aplica exclusivamente a áreas antropizadas (previamente consolidadas pela ação humana antes de 2008), visando regularizar as atividades ambientais em propriedades rurais, especialmente a proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e reserva legal". 

Já o PL 1282/2019, apresentado pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), autoriza obras de irrigação em áreas de preservação permanente, o que, segundo o Observatório do Clima, potencializaria a crise hídrica e o conflito pela água no Brasil. O texto foi aprovado no fim de 2023 no Senado e agora está na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) na Câmara, aguardando parecer do relator Afonso Hamm (PP-RS). Segundo Heinze, a mudança na legislação trará ganhos de produtividade na agricultura, sem a necessidade de expandir a área plantada.

Foto aérea mostra área de desmatamento na Amazônia
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, PL pode destruir uma área do tamanho do Tocantins na Amazônianull Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance

Com autoria do deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), o PL 10273/2018 esvazia a taxa de controle e fiscalização ambiental e o poder do Ibama. Seu texto foi aprovado em abril na CCJ da Câmara. De acordo com Goergen, o projeto é necessário "a fim de evitar e superar divergências" ao atribuir a proteção do meio ambiente também para estados e municípios.

Críticos apontam que esses projetos também estão tramitando sem transparência.

"A população do Rio Grande do Sul está desesperada, e uma parte desse desespero é causada pela ação dessas pessoas", afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Ele destaca que nunca houve um volume tão grande de medidas nocivas para o meio ambiente como na atual legislatura, que avançam com muita velocidade.

"O Congresso sequer faz audiências públicas para tentar avaliar a opinião de especialistas sobre aquilo que ele mesmo está propondo. A consequência do que é proposto hoje pelo Congresso na área ambiental, o que aquilo vai causar no país, simplesmente não interessa mais para os legisladores, sobretudo para esse combo que há no Congresso da extrema direita com ruralistas contra a agenda ambiental", avalia Astrini.

Desmantelamento do planejamento ambiental do RS

Na esfera estadual, também há críticas sobre o desmonte de políticas públicas para a área ambiental. Semanas antes dos temporais que inundaram o Rio Grande do Sul, o governo gaúcho sancionou uma lei que permite desmatar Áreas de Preservação Permanente (APPs) para construção de barragens.

"Flexibilizaram leis para aumentar áreas de plantio de soja, desmontaram planos diretores para ampliar a especulação imobiliária em zona ribeirinhas, para implantar minas de carvão e para favorecer a especulação imobiliária", afirmou em artigo o geólogo Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em 2019, o já governador Eduardo Leite (PSDB) cortou ou alterou mais de 400 pontos do Código Ambiental do estado, com o objetivo de flexibilizar as exigências ambientais, concedendo, em alguns casos, a possibilidade de autolicenciamento. À época, o governo estadual afirmou que o novo código resultaria num "melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico" e que as mudanças eram uma "modernização".

Segundo Menegat, há um uso intensivo do solo no estado para monocultura, sobretudo da soja, e uma desestruturação dos planos diretores nas cidades, favorecendo a especulação imobiliária, como a construção de espigões nas margens do lago Guaíba.

Houve ainda um desmonte da própria infraestrutura do estado, o que resultou em falhas nos sistemas de proteção contra inundação em Porto Alegre, com rupturas de diques e casas de bombas que não funcionaram.

Como Brasil criou o 3º maior registro de doadores de medula

DJ e artista performático de São José do Rio Preto (SP), Murillo Serantoni, hoje com 30 anos, tatuou nas costas palavras em um idioma desconhecido. Mesmo não sabendo ler as frases que carrega na pele, elas significam muito: reproduzem uma carta enviada por sua doadora de medula óssea, uma mulher que mora do outro lado do oceano, na Alemanha.

Murillo enfrentou a leucemia com apenas 17 anos, e o transplante de medula foi a segurança para o câncer não voltar, já que suas células eram uma "bomba relógio", de acordo com os médicos. Hoje ele leva uma vida normal e saudável.

Histórias como a de Murilo só são possíveis graças ao Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome). Criado em 1993, o banco tem atualmente cerca de 5,7 milhões de doadores cadastrados, e atua em conjunto com 112 hemocentros em todos os estados.

Vinculado ao Ministério da Saúde e coordenado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), é o terceiro maior banco de doadores voluntários no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e Alemanha, e o maior de financiamento exclusivamente público.

Carta escrita à mão à esquerda, e tatuagem de frases à direita
Carta recebida por Murilo Serantoni de sua doadora alemã e reproduzida em tatuagem nas suas costasnull Murillo Seranton/Arquivo pessoal

O Redome quase dobrou o número de doadores cadastrados nos últimos dez anos e a chance de se encontrar um doador compatível no sistema beira os 90%. O propósito do registro é viabilizar transplantes de medula entre pessoas que não são parentes. Em 2023, o órgão possibilitou a realização de 366 procedimentos do tipo.

Busca por genes compatíveis

É na medula óssea que se localizam as células-tronco hematopoéticas, responsáveis pela geração de glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas. Assim, o transplante é indicado para tratar doenças relacionadas com a fabricação de células sanguíneas e com deficiências no sistema imunológico, como leucemias e linfomas. A primeira saída é buscar compatibilidade entre familiares próximos, mas se ela não ocorrer, a pessoa recorre ao registro para buscar doador compatível na população regional ou mundial.

Mais de 75% dos doadores compatíveis identificados para pacientes no Brasil são do banco nacional. Já cerca de 10 a 15% dos transplantes realizados são feitos com material vindo de registros do exterior. O Redome atua articulado a cadastros de outras partes do mundo e também envia células de doadores brasileiros para diversos países.

Foi assim que Murilo encontrou compatibilidade de 100% com uma doadora cadastrada no registro alemão com atuação internacional, o DKMS. Em 2012, o então estudante realizou o transplante em um hospital público de Jaú (SP). A compatibilidade depende de genes específicos altamente variáveis chamados de genes HLA, que controlam a resposta imunológica e que, ao longo da evolução humana, foram se distribuindo nas diferentes populações.

Após cinco anos do transplante, foi autorizada a quebra de sigilo pelo Redome, que pede uma autorização prévia às duas partes. Assim, Murilo surpreendeu sua doadora alemã com um e-mail e a foto da sua tatuagem. À DW, ele conta que sente uma ligação com a doadora e por isso quis eternizar na pele suas palavras na caligrafia da carta: "Fiquei emocionado em saber o nome dela. Por tudo que eu e minha família passamos, a gratidão é inexplicável."

Conquista nacional

Por tratarem-se de estruturas complexas e bastante custosas, os registros estão presentes de forma bastante desigual ao redor do mundo. O primeiro registro de doadores de medula entre não aparentados é da Inglaterra, onde também ocorreu o primeiro transplante entre não parentes, em 1973.

Atualmente, o maior em número de doadores é o americano NMDP. O segundo, é o DKMS, que foi fundado na Alemanha em 1991 e opera também em diferentes países, como Polônia, Reino Unido, Índia, África do Sul, e recentemente no Chile e na Colômbia. O Redome é o terceiro da lista.

Para a coordenadora do Redome, Danielli Oliveira, o fato de o Brasil ter um registro expressivo é notável: "Isso não é comum entre países com nosso IDH. É mais uma das conquistas ou contradições que temos no Brasil, é um luxo".

Foto de Danielli Oliveira olhando para frente e sorrindo
Danielli Oliveira, coordenadora do Redome: registro dessa magnitude "não é comum entre países com nosso IDH"null REDOME/Divulgação

De fato, em comparação com outros países latino-americanos, o Redome é uma estrutura mais madura. "Na América Latina poucos países têm registro. O México tem, mas é muito pequeno ainda. Apenas Uruguai e Argentina têm registros consolidados, e o Chile começou a ter registro há apenas 5 anos", diz Oliveira.  

Além disso, o Brasil possui um dos registros mais diversos do mundo, "por sermos uma população altamente miscigenada", afirma a coordenadora.

Contemplar a variedade étnica

Foi justamente essa possibilidade de diversidade de genes HLA que inspirou a luta pela criação do Redome. O projeto foi idealizado e pleiteado pelo casal de médicos especialistas em imunogenética Jose Roberto Moraes, já falecido, e Maria Elisa Hue Moraes, 76 anos.

No final da década de 80, os dois estudavam nos Estados Unidos na área de biologia molecular, com uma bolsa de pesquisa do Inca, quando testemunharam um caso que os comoveu: "Havia uma menina latina que precisava de transplante e não encontrava doador nos registros existentes na época, que eram basicamente o americano NMDP e o inglês Anthony Nolan. Vimos que era praticamente impossível encontrar doador se não tivesse a genética caucasiana."

Então perguntaram-se: por que não criar um registro brasileiro que pudesse contemplar pacientes com a nossa diversidade? Os pesquisadores tinham convite para ficar nos Estados Unidos, mas decidiram retornar ao Brasil para investir na ideia.

"Em um primeiro momento propomos o projeto para o Inca, uma instituição que já realizava transplantes entre parentes, tinha laboratórios e estrutura. Mas o Brasil estava em uma fase econômica difícil, e não foi prioridade para o Inca, era um investimento muito alto", diz Moraes.

Duas pessoas de costas vestindo camisetas brancas, em uma está escrito "doador" e na outra, "receptor"
No Redome, chance de se encontrar um doador compatível beira os 90%null Associação da Medula Óssea (AMEO)

No entanto, a Fundação Pró-Sangue de São Paulo comprou a ideia e em 1993 começaram a ser cadastrados os primeiros doadores voluntários do registro brasileiro. "No começo foi aos trancos e barrancos, como eram poucos cadastrados era difícil das pessoas verem retorno naquilo. Mas aí quando estávamos em mil e poucos cadastrados encontramos a primeira compatibilidade", conta a médica. Essa primeira conquista culminou no primeiro transplante realizado com doador não aparentado do registro brasileiro, em 1995 em São Paulo.

"No início era tudo concentrado em São Paulo. Mas sabíamos que para ter um registro que contemplasse a nossa miscigenação, o Brasil inteiro tinha de estar envolvido." Em 1998 esse envolvimento nacional tornou-se realidade: o Inca assumiu as operações do Redome, que foi transferido de São Paulo para o Rio. E o registro viveu um boom. "É um sonho que se concretizou, e acho que foi uma grande contribuição para o Brasil e para o mundo também", diz Moraes.

Responsabilidade dos cadastrados

Existem dois diferentes métodos para o procedimento de doação: aférese e punção. No de aférese, o doador faz uso de uma medicação com o objetivo de aumentar a produção de células-tronco circulantes no seu sangue periférico, e então é feita uma coleta através das veias do braço. "É o método que mais tem sido utilizado, por ser menos invasivo", explica Denys Eiti Fujimoto, médico hematologista do Hemocentro Santa Casa de São Paulo. Já no método da punção é realizado um procedimento sob anestesia, em que medula óssea é retirada do interior do osso da bacia.

Apesar dos métodos serem altamente seguros, ainda existe certo receio e estigma por parte da população. Um doador que conversou com a DW relatou que quando foi chamado para realizar a doação, muitas pessoas da sua família pediram para que não fosse, tinham medo do que podia ocorrer. "A maior confusão é que, pelo termo medula óssea, as pessoas pensam em medula espinhal, mas não tem nada a ver", explica Fujimoto.

O especialista esclarece que o medicamento usado na coleta por aférese estimula a produção de glóbulos brancos, o que pode causar sintomas de gripe, mas não provoca efeitos colaterais e é usado há mais de 25 anos. "Já na coleta por punção, utiliza-se a anestesia raquidiana e o doador é internado, mas passa por rigorosa avaliação com anestesista e é liberado já no dia seguinte", acrescenta Fujimoto.

Mulher em escritório olhando para tela de computador com gráficos
Funcionária do Redome analisando exame de genes HLAnull Associação da Medula Óssea (AMEO)

Se a compatibilidade entre um paciente e algum doador do banco existe, ela é identificada em poucos dias. Então são solicitados exames confirmatórios e a coleta é agendada. Dados de 2016 (mais recentes divulgados pelo Redome para a instituição) apontam que 40% dos doadores convocados pelo Hemocentro da Santa Casa de São Paulo para exames confirmatórios desistem da doação ou não são encontrados.

"Muitas pessoas se cadastram no impulso, porque ouviram uma história, porque alguém conhecido precisava, mas sem entender totalmente como o registro e a doação funcionam", aponta a médica hematologista Carmen Vergueiro, coordenadora e fundadora da Associação da Medula Óssea do Estado de São Paulo (Ameo).

A organização fundada em 2002 presta assistência a pacientes que realizam o transplante e também promove educação e informação a respeito do procedimento. A coordenadora destaca a importância do comprometimento por parte de quem se registra como doador.  "Diferente da doação de sangue, não é só a coleta inicial e pronto, tem de manter dados atualizados e responder rápido quando contatado. Pacientes estão esperando, estão perdendo tempo", aponta Carmen.

Tendo atuado por quase 30 anos em testes de compatibilidade e atendimento a pacientes, a médica enfatiza: "Não pode achar milhões de outros iguais, é agulha no palheiro. E doação de medula é uma questão de vida ou morte, o doador pode salvar uma vida."

Catástrofe no RS: mais de 1,4 milhão de pessoas afetadas

Os temporais que atingiram o Rio Grande do Sul desde o fim de abril deixaram cidades inteiras ilhadas e pessoas isoladas, aguardando resgate por helicópteros, barcos, jetskis e caminhões do Exército, algumas de cima de telhados ou na beira de estradas. Ao todo, 397 dos 497 foram atingidos, afetando diretamente mais de 1,4 milhão de pessoas.

O número de mortos decorrentes dos alagamentos subiu para 90, em ao menos 38 municípios, segundo dados da Defesa Civil. Outros quatro óbitos estão em investigação para confirmar se tiveram relação com as enchentes. Há 131 pessoas desaparecidas e 362 feridas.

O governo do estado fez um alerta nesta segunda (06/05) para o risco de novas enchentes, sobretudo em municípios localizados ao redor da Lagoa dos Patos, no sul. Estima-se que a água represada na região de Porto Alegre deve descer para a lagoa nos próximos dias.

Além disso, a previsão meteorológica era de que os volumes de chuvas na terça excedessem os 100 milímetros em 24 horas, podendo superar os 150 mm até o início da quarta-feira. No entorno da região de Pelotas, Rio Grande, em direção à Campanha e oeste do estado, até a área de Alegrete e São Borja, também estavam previstos temporais, ventos com rajadas acima dos 70 km/h e queda de granizo.

Voluntários e membros de equipes de resgate relatam o drama de procurar sobreviventes em meio a uma tragédia sem trégua prevista.

"É um cenário muito triste, porque à noite é um breu. Eles [membros da equipe de resgate] escutam pessoas pedindo socorro, daí a pouco não ouvem mais, não sabem se a pessoa cansou, se a pessoa morreu", relata Andressa Batista, que teve a casa submersa em Porto Alegre e agora trabalha como voluntária.

"Saí só com o básico, levei meu cachorro, meu gato, vim para cá e o resto estava tudo lá. E agora a água está no teto. Aí perdi os livros da universidade, perdi toda a minha história, debaixo d'água. Vim aqui para ajudar na logística e tentar encontrar voluntários para me ajudar na logística" disse à DW.

Até segunda-feira, o trabalho integrado de militares e civis contava com 3.406 militares da Marinha, Exército e Aeronáutica. Estão sendo empregados 15 helicópteros, um avião de carga, 243 embarcações e 2,5 mil viaturas e equipamentos de engenharia (civis e militares). O Ministério da Defesa estima que as operações de resgate tenham salvo 46 mil vidas.

Brasilien Hochwasser Überschwemmungen
null Diego Vara/REUTERS

A tragédia climática deixou pelo menos 336 municípios em estado de emergência, o equivalente a 67% das cidades gaúchas. O governo estadual classifica a situação como a maior catástrofe climática já vivida na região.

Entre as cidades em situação de calamidade, está a capital, Porto Alegre, e outras localidades populosas como Canoas e Caxias do Sul. Mais de 156 mil pessoas estão desalojadas no estado, e mais de 48 mil estão em abrigos. 

A situação dos desalojados e desabrigados no RS pode ficar mais crítica a partir de quinta-feira. De acordo com o  Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), as temperaturas mínimas em Porto Alegre podem ficar em torno dos 12°C.

Municípios estão com fornecimento prejudicado de água tratada, energia elétrica, sinal de telefone e internet. De acordo com boletim da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), divulgado às 17h de segunda-feira (6), 750 mil imóveis estão desabastecidos em 51 municípios de sua área de atendimento. Estima-se que 85% das pessoas em Porto Alegre esteja sem água potável.

Região metropolitana

A região metropolitana de Porto Alegre é a mais atingida pela falta de água potável, com 490 mil imóveis desabastecidos, em sete cidades. Alvorada, Canoas, Cachoeirinha, Esteio e Sapucaia do Sul estão totalmente sem fornecimento.

Em Porto Alegre, os sistemas de bombeamento de água estão em colapso, ou por inundação ou por falta de energia para prevenção de acidentes. Das 23 casas de bombas da capital, apenas quatro estão funcionando. As ruas estão alagadas e vários bairros, como Menino Deus e Cidade Baixa, estão sendo esvaziados.

O Aeroporto Salgado Filho não voltará a funcionar até pelo menos 30 de maio, conforme informou a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).

Eldorado do Sul, a 12 quilômetros de Porto Alegre, está 95% submersa e isolada pelas águas do Guaíba e do rio Jacuí. Parte dos moradores ficou na estrada que dá acesso à cidade à espera de resgate, sem ter para onde ir nem para onde voltar. Resgates acontecem por meio de helicópteros e caminhões do Exército. 

Cidade vista de cima, com as ruas alagadas
Canoas, na região metropolitana de Porto Algre, é uma das cidades mais afetadasnull Amanda Perobelli/REUTERS

Estradas foram danificadas em todo o estado – rodovias federais apresentam 61 pontos com bloqueios totais ou parciais, conforme balanço de domingo. As estradas estaduais têm 102 interdições totais ou parciais.

Os municípios também estão com dificuldade de acesso a telefonia e dados móveis. De acordo com as operadoras, 46 cidades estão sem serviços da TIM, 45 sem os serviços da Vivo e 24 municípios não conseguem acesso pela Claro.

A recomendação para quem ainda está em áreas de risco é de não ficar no térreo das casas. A maior parte dos resgatados estão sendo levados a Porto Alegre e Canoas.

Lenta redução da água

O nível do Guaíba em Porto Alegre estava em 5,28 metros às 11h desta terça-feira (07/05), segundo o monitoramento em tempo real da Agência Nacional de Águas (ANA). Desde a semana passada, o Guaíba ultrapassou o pico da maior cheia registrada até então, o nível de 4,76 metros, em 1941, quando inundou parte do centro da capital gaúcha.

O limite para inundações do Guaíba é de 3 metros, uma referência que indica possíveis danos aos municípios.

De acordo com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS), a previsão é de lenta redução dos níveis da água, que devem ficar acima dos 3 metros ao longo da semana.

A água de alagamento oferece ainda o risco de doenças, como leptospirose e hepatite A, pois ela se junta ao esgoto.

sf/le

"Há uma disputa de discursos dentro do Brics+"

Neste ano, o Brics ganhou quatro novos membros. O grupo com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul passou a contar com a companhia de Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito e Etiópia, e passou a se chamar Brics+.

O debate sobre a ampliação foi acompanhado de receio de que ela enfraqueceria o protagonismo dos membros menos poderosos e sobre qual seria o impacto na linha política do grupo, que reúne tanto países com um discurso antiocidental (China e Rússia) como democracias não-alinhadas (Brasil, Índia e África do Sul).

"O Brasil sempre foi historicamente um defensor da democratização, da ampliação do Conselho de Segurança [da ONU]. Nesse sentido, ser contra uma ampliação do Brics seria uma contradição", diz à DW Marta Fernández, diretora do Brics Policy Center (Centro de Estudos e Pesquisas Brics), sediado no Rio de Janeiro.

Ela esteve em Berlim participando da conferência Global Solutions Summit, que reúne anualmente na capital alemã representantes de organizações internacionais e da sociedade civil global para discutir soluções para o multilateralismo sustentável e propostas a serem encaminhadas ao G20, grupo presidido este ano pelo Brasil e cuja próxima cúpula acontece em novembro no Rio de Janeiro.

Professora associada do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, Fernández destaca que, após momento de indecisão, Brasília aprovou a ampliação porque, caso contrário, arriscaria cair em contradição em relação ao discurso do governo de Luiz Inácio Lula da Silva favorável a um mundo multipolar e à democratização do sistema internacional.

Ela fala também sobre as diferenças de abordagens entre o governo Jair Bolsonaro e a gestão Lula dentro do Brics. E pondera que, apesar do contraste entre seus membros, o bloco continua tendo metas comuns, como a reforma das instituições financeiras internacionais.

DW: Qual é o atual papel do Brasil no Brics?

Marta Fernández: O Brasil vem considerando, agora no governo Lula, o Brics como uma importante plataforma para inserção do Brasil no sistema internacional. Isso é de enorme importância, porque está alinhado com a política externa de Lula de defesa de uma ordem multipolar e da democratização do sistema financeiro internacional.

O que mudou em relação à atuação do Brasil no Brics do governo de Bolsonaro para a gestão Lula?

O Bolsonaro, em grande medida, esteve à frente do Brics durante o período da pandemia. Ele não estava muito alinhado com essa missão do Brics de democratização do processo decisório internacional. Mas ele, diferentemente do Javier Milei, presidente da Argentina, por exemplo [que decidiu não ficar no bloco], continuou no Brics e, em grande medida, adotou uma visão mais low profile, mais pragmática. Porque nosso setor de agronegócio, que continua sendo muito importante como uma força política de apoio ao Bolsonaro, tem relações intensas com a China. O agronegócio exporta mais de 30% para China e não valia a pena uma saída do Brasil do Brics.

Então ele permaneceu, mas não com a mesma agenda política que vem sendo avançada por Lula. Que é uma agenda mais política, no sentido de contribuir para uma ordem internacional mais equitativa e sobretudo reforçando a questão da reforma das instituições financeiras internacionais e do próprio Conselho de Segurança da ONU. Na cúpula do Brics da África do Sul, no ano passado, isso constava na declaração final do encontro.

Foram citadas no documento a reforma do Conselho de Segurança – e acredito que isso foi uma vitória do Brasil – e a necessidade de reforma das instituições financeiras internacionais, que é um dos pontos centrais na agenda para o próprio G20, que este ano está sob a presidência brasileira.

Quais as diferenças mais marcantes entre o Brics e o G20, grupo das 20 nações mais industrializadas do globo?

O Brics é um fórum de países em desenvolvimento e de países emergentes. Ele foi criado um pouco como uma alternativa. Já o G20 é um fórum que tenta fazer essa ponte entre o G7, os países do Norte Global, e os países em desenvolvimento. Em grande medida, o G20 nasce muito impulsionado pela crise financeira de 2008 e reconhece que é necessária a participação dessas potências emergentes na regulação da governança global, sobretudo da governança econômica global.

Marta Fernández
Marta Fernández é diretora do Brics Policy Center e professora associada do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rionull Marcio Damasceno/DW

O Brics seria mais uma tentativa de se abrir uma multipolaridade global ou está mais para um fórum anti-Ocidente?

O Brics não tem um discurso único. Existe uma disputa de discursos dentro do Brics. Agora com a guerra da Ucrânia isso se revelou mais acentuado. Existem algumas potências com discurso mais antiocidental, no caso da própria Rússia e, de algum modo China. E outros países, como é o caso do Brasil, da Índia e da África do Sul, que têm mais uma política de não alinhamento, de um não alinhamento ativo.

Mas, se a gente for pensar, todos os países, e a própria China, estão inseridos na ordem global liberal. O que se demanda é uma reforma dessas instituições financeiras internacionais, de forma que elas possam atender às necessidades de financiamento dos países do Sul Global.

Na medida em que elas não se reformam, esses países vêm criando alternativas. É o caso do próprio Banco do Brics, o NDB, que funciona oferecendo investimentos em projetos de infraestrutura, de desenvolvimento sustentável, a partir de uma lógica das não condicionalidades. Ou seja, não se impõem as mesmas condicionalidades que as instituições chamadas instituições de Bretton Woods.

Até que ponto a ampliação do Brics definida no ano passado pode concorrer para um enfraquecimento da posição do Brasil dentro do bloco?

Esse foi um grande debate. A ampliação do Brics pegou muita gente de surpresa, porque o próprio Brasil não tinha muita certeza se essa ampliação ia se materializar. E havia uma disputa burocrática no Brasil, com Lula e seu assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, defendendo uma ampliação, enquanto a diplomacia brasileira estava hesitante e cautelosa, porque se acreditava que um Brics ampliado demais poderia resultar num novo G77 e, de alguma forma, reduzir a influência e o protagonismo do Brasil dentro do Brics.

Só que esse discurso de que um Brics ampliado poderia dificultar um consenso e a coordenação política sempre foi o discurso adotado por quem é contra a ampliação do Conselho de Segurança. O que se diz é que se com cinco membros permanentes já é tão difícil o funcionamento, por eles se vetarem mutuamente, então com mais seis, sete ou oito isso dificultaria o consenso. E o Brasil sempre foi historicamente um defensor da democratização, da ampliação do Conselho de Segurança.

Nesse sentido, o Brasil ser contra uma ampliação do Brics, ele que se coloca como aquele que está avançando o processo de democratização do sistema internacional, seria uma contradição. Então no final das contas prevaleceu a ampliação.

O Brasil também foi favorável à integração da Argentina na época. O [então presidente] Alberto Fernández estava em processo eleitoral, e o Milei, uma vez eleito, não entra no Brics, em grande medida devido à aliança da Argentina neste momento com os Estados Unidos e Israel.

"Não tem mais volta", diz Nobre sobre catástrofes climáticas

Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas extremas chegaram para ficar.

O que chama a atenção, diz Carlos Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.

A antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta: em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.

"Os modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul", afirma Nobre.

O desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. "Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais", diz ele em entrevista à DW.

DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?

Carlos Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023. Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano Pacífico Equatorial.

O El Niño induz uma seca na Amazônia e um aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.

Carlos Nobre olhando para a frente
Carlos Nobre: "Precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta"null Tiziana Fabi/AFP/Getty Images

Essa chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente, cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de bloqueio.

O El Niño já está numa fase de perder força, o jato subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.

As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?

Os modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.

O que chama a atenção é que isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de 2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos extremos] já se anteciparam muito.

No ano passado atingimos o recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu 1,56°C mais quente, é o recorde histórico.

Os modelos indicavam que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como vimos no Rio Grande do Sul.

Com o planeta já perto deste 1,5°C  de aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o Brasil tem que fazer para lidar com isso?

Se os oceanos continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.

Nesse caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos extremos.

O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?

A capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.

Praticamente, consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever recordes, mas eles preveem muita chuva.

Aquele evento extremo de fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas informações.

É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3 quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA já existe, seria importante retomar o papel dele.

Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?

É o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o Brasil pode ser um dos líderes.

Mas estes eventos extremos não têm mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e, lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas, tudo o que a gente viu no Sul.

Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.

Por exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas! Esses eventos vão continuar acontecendo!

Tem também as comunidades que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses brasileiros viverem.

Logicamente, precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que, até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.

É preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas, sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.

 

A busca desesperada por pessoas no Rio Grande do Sul

De Brasília, Claudia Lisboa ajuda o genro a localizar a tia-avó dele, Maria Amenaide Freitas Maldini, moradora de Guaíba, no Rio Grande do Sul, estado assolado pelas enchentes. Neste domingo (05/05), completaram-se 24 horas sem que a família tivesse notícias da idosa de 84 anos, que toma remédio controlado e é surda.

"Ela estava com a cuidadora no momento do resgate, mas deixaram o cachorro dela, Obama, para trás. A cuidadora foi para um local e ela, para outro. Estamos achando que ela retornou [para casa] para buscar o cachorro", narra Lisboa à DW.

Regina Oliveira passou os últimos dois dias à procura do pai, Pedro Paulo Terres da Silva, de 93 anos, desaparecido em Canoas. De Novo Hamburgo, a cerca de 30 quilômetros de distância, os familiares de Silva buscam informações e mobilizam quem podem, já que as pontes que interligam as duas cidades estão interditadas por causa das inundações.

A casa de Silva nunca havia alagado antes, mas o nível do rio Sinos em Canoas atingiu recorde e inundou bairros inteiros. Momentos antes do fechamento desta reportagem, o nome dele apareceu na lista como pessoa resgatada e acomodada em um abrigo. O alívio dos familiares durou pouco. Nesta segunda-feira, a família voltou a entrar em contato com a DW para relatar que Pedro não foi localizado. Ele está desaparecido junto ao cuidador, cujo telefone só dá caixa postal.

Na cidade, a Defesa Civil usa todos os canais possíveis para pedir a moradores que evacuem e levem os animais de estimação na fuga. Impotente diante da catástrofe, a prefeitura pede ajuda de voluntários que tenham barco para retirar quem está ilhado.

Os amigos do jornalista Eduardo Grassi tentam chegar a Canoas levando um barco motorizado no carro. Saíram na manhã de domingo de Chapecó, em Santa Catarina, a mais de 450 quilômetros de distância, e seguiam em viagem sem saber se conseguiriam chegar.

À espera do resgate

Há inumeros pedidos de resgate vindos de diversas cidades inundadas.

Da capital Porto Alegre, Renata Rodrigues busca socorro para o casal de idosos Jane de Fátima Mattos da Silva e Charles Wilson⁩ Tavares da Silva. Eles estão em Farrapos, bairro humilde às margens do rio Jacuí, e narram que a água chegou ao segundo andar da casa.

"São familiares do meu colega de trabalho. Estamos numa força tarefa não só por eles, mas por vários na região. Tiramos umas 150 pessoas dali", afirma Rodrigues à DW.

O bairro onde mora, Bom Fim, não foi afetado pela enchente, mas a casa virou abrigo para amigos que perderam tudo. "Neste exato momento estou me ajeitando para ir ao abrigo que estou ajudando a organizar pra ver o que faremos hoje", diz Rodrigues.

Em Eldorado do Sul, um casal e duas crianças usam o que restou de bateria no celular para enviar pedidos de socorro. Bruna Karpinski é amiga deles, e espera que eles sejam resgatados logo, diz à DW.

Além das operações oficiais nos locais afetados, inúmeros voluntários se mobilizam. Um grupo de amigos geógrafos criou um mapa online que organiza os pedidos de resgate. São mais de uma centena de pontos que trazem o endereço e quantas pessoas estão à espera de ajuda. Os dados são enviados para outros voluntários que têm barco ou jet ski, além de ficarem disponíveis para as autoridades.

Em grupos de mensagem locais, circulam listas com nomes de pessoas que aguardam passagem em vias interditadas. Outras buscam nomes de conhecidos em listagem de corpos retirados das águas e dos escombros.

Tragédia instalada

A Defesa Civil Nacional calcula que existam pelo menos 2,5 mil solicitações de resgate. Segundo o boletim mais recente do órgão, 341 municípios no estado foram afetados pelas chuvas extremas. São mais de 115 mil pessoas desalojadas, temporariamente abrigadas junto a amigos ou parentes, e outras mais de 18 mil estão em abrigos provisórios organizados pelo poder público.

Até o momento, 78 mortes foram confirmadas e 105 pessoas estão desaparecidas. Ao todo, estima-se que mais de 844 mil moradores no Rio Grande do Sul tenham sido impactados.

A concessionária local informou que, até a manhã de domingo, havia 421 mil domicílios sem energia. A maior parte foi desligada da rede por segurança devido a áreas alagadas.

O monitoramento das barragens feito pelos governos federal e gaúcho indicam que seis estruturas estão em situação de emergência, sob risco de rompimento. O boletim divulgado neste domingo afirma que há ações de contenção em andamento. Os casos mais graves, com risco de ruptura iminente, são o da Usina Hidrelétrica 14 de Julho, em Cotiporã e Bento Gonçalves, e de Salto Forqueta, em São José do Herval/Putinga.

Prognóstico para os próximos dias

O Serviço Geológico do Brasil (SGB) afirma que há muita água ainda nos rios Jacuí e Taquari a caminho de Porto Alegre. O nível do Guaíba, portanto, deve continuar subindo estava em 5,31 metros na tarde do domingo. A experiência registrada em 1941, até então a última pior enchente, mostrou que o nível do rio demorou duas semanas para voltar ao normal.

Ainda há chuvas acontecendo na bacia hidrográfica do rio Guaíba. Algumas pancadas fortes foram registradas na última madrugada em pontos do rio, informou o SGB.

Marcelo Seluchi, coordenador do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), disse à DW que as chuvas nos próximos dias devem se concentrar no Uruguai. "A partir de quinta e sexta deve voltar a chover na região, às vezes oscilando mais para o Norte, às vezes, para o Sul", prevê Seluchi com base nos modelos.

Nas próximas 72 horas, a previsão é de pouca precipitação. A situação hidrológica, de movimentação das águas, seguirá crítica na Grande Porto Alegre.

"Teremos liberdade quando travesti fizer todos os papéis"

A sala está escura e enfumaçada. A palavra "travesti" pisca no pano de fundo preto – é uma das poucas que não precisam de tradução. Renata Carvalho entra no palco, apenas seu corpo seminu é iluminado, o rosto não. "O meu corpo veio antes de mim, sem eu pedir", diz a atriz e escritora no início do monólogo Manifesto Transpofágico, em que narra a construção da identidade transgênero, batalha que se trava sobretudo no corpo.

A peça teve três apresentações no fim de abril em Berlim, parte da programação do Find (Festival International da Nova Dramaturgia). Foi o primeiro espetáculo brasileiro selecionado em 25 anos do festival. "A Europa precisa desconstruir a imagem da travesti", disse Carvalho no momento do espetáculo em que improvisa e abre o microfone para a plateia. Ela vai de perguntas mais triviais, como "você sabe o que é ser cis?" – à qual responde, diante da dúvida de poucos, "quem não sabe é" – a depoimentos íntimos pessoais e da plateia.

A atriz foi responsável pela fundação do Coletivo T – primeiro grupo composto só por artistas trans, em São Paulo. Também criou o Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), que, em 2017, lançou o Manifesto Representatividade Trans. Nesse mesmo ano, a atriz ganhou destaque ao interpretar Jesus Cristo na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, escrito pela dramaturga britânica Jo Clifford, que foi censurada em Jundiaí e Salvador e rendeu a Carvalho ameaças diárias de morte. 

Em entrevista à DW, a atriz contou como foi trazer o espetáculo para a Alemanha, destino de muitos brasileiros em busca de segurança, movimento que ela chama de "diáspora travesti". Para ela, a cidade é especialmente simbólica por ter sediado os primeiros estudos e aconselhamentos sobre a transexualidade, há cem anos.

Em 1919, o médico alemão Magnus Hirschfeld criou em Berlim o Instituto de Sexologia, com uma ampla e inédita pesquisa sobre sexualidade. O extenso arquivo de documentos, relatórios e livros da instituição foi queimado pelo nazismo.

DW: Como foi trazer o Manifesto Transpofágico para Berlim?

Renata Carvalho: Era uma vontade minha há um tempo de vir para Berlim com esse trabalho. Eu tenho pesquisado alguns países da diáspora travesti do Brasil, e a Alemanha era um dos lugares onde eu precisava chegar. Há muitas histórias de travestis brasileiras. Aqui também tem uma ligação com a história do Instituto de Sexologia, do Magnus [Hirschfeld]. Acredito que estamos voltando para o que ele estava fazendo em 1900 e pouco.

Estamos falando de cem anos atrás...

Exatamente. Para você ver como é fácil destruir as coisas, difícil é construí-las. Então eu tinha esse desejo como atriz e como transpóloga. Já passamos por oito países com o espetáculo – Brasil, Itália, França, Espanha, Portugal, Irlanda, Chile e Uruguai. Era importante estar aqui também.

Que diferença você sentiu no público em cada país?

Foi diferente em cada uma das três apresentações aqui, e é diferente em todas as plateias, independentemente do país. Algumas são mais difíceis, outras mais educadas, outras mais neutras, outras querem ser mais desconstruídas. Depende muito de quem está no momento.

Há algum lugar no mundo onde o corpo trans não causa espanto?

O corpo trans causa espanto em qualquer lugar. Ele causa esse desconforto, ele abala o lugar aonde chega. Então isso vai depender muito da evolução de cada ser humano, de cada país. Uns são mais avançados, outros não. Mas avançado mesmo em questão trans é o Brasil. Não conheço nenhum lugar no mundo com tantas pessoas trans nas artes, na universidade, na política, por mais que seja um país muito violento.

Na época de "Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", você foi alvo de ações coordenadas de ódio e fake news nas redes. Como está essa relação hoje em dia?

Isso era mais na época de Jesus. Quando resolvi parar, em 2019, foi por uma questão de saúde mental mesmo. Eram notícias absurdas. Derrubaram minhas redes sociais para dizer que eu tinha morrido, ameaças de morte todos os dias. Cheguei a usar colete à prova de bala. Foi um período muito obscuro, mas ao mesmo tempo levantou questões importantíssimas na arte. Denunciou a ausência de corpos trans, levou a minha voz aonde jamais poderia ter imaginado.

O tema central do festival foi a democracia e a liberdade. Como o seu trabalho se relaciona com esse tema, frequentemente sequestrado por regimes autoritários?

A liberdade é quando você está livre ou quando o outro está livre? Eu luto pelo que eu chamo de uma democracia cênica – ampla, geral e irrestrita. Para que todos os corpos possam ser tudo na arte. Por isso que hoje eu peço uma pausa de 30 anos na prática do "transfake", e que realmente incluam corpos trans. Para que todos os corpos se tornem naturais e humanos, para que todo mundo possa começar como uma tela em branco e então desenhar sua curva dramática. Para que corpos marcados não tenham só personagens marcados. Acho que quando uma travesti, ou uma pessoa negra retinta, puder fazer todos os papeis, aí teremos alcançado essa liberdade artística de todos os corpos.

Desastres recentes no RS mataram mais do que soma de 3 décadas

Em menos de um ano, as chuvas intensas no Rio Grande do Sul já fizeram mais de 110 vítimas - mais do que o total registrado em desastres naturais nas três décadas precedentes.

Na catástrofe climática mais recente, classificada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) como o "maior desastre do estado" em termos de prejuízos materiais, chuvas persistentes desde o início da semana deixaram ao menos 37 mortos e 74 desaparecidos. Mais de 30 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas, outras centenas de milhares estão sem água ou luz.

Palco de desastres climáticos recorrentes

O estado no extremo sul do país, que tem sofrido com eventos climáticos extremos recorrentes, é um dos que mais registrou desastres naturais nas últimas três décadas, ficando atrás apenas de Minas Gerais, segundo dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil e do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.

Entre 1991 e 2023, foram cerca de 8,5 mil registros, o equivalente a 12,5% de todas as ocorrências no Brasil – sendo que, pelos dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil, o saldo de mortos nesses desastres em pouco mais de 30 anos foi de 101 até 2022.

Já o governo gaúcho aponta que entre 2003 e 2021, 14 pessoas morreram em desastres naturais no estado.

O RS também viu as ondas de calor dobrarem nos últimos 40 anos, segundo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Especialistas apontam que as mudanças climáticas têm potencializado os efeitos de fenômenos sazonais como o El Niño, que tende a provocar mais chuvas naquela região, e o La Niña, que de 2020 até o início de 2023 castigou os gaúchos com uma estiagem severa e prejuízos bilionários ao setor agropecuário. Em alguns municípios chegou a haver até mesmo racionamento de água.

No desastre climático mais recente, classificado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) como o "maior desastre do estado", chuvas persistentes desde o início da semana deixaram ao menos 37 mortos e 60 desaparecidos. Quase 15 mil pessoas tiveram que deixar as suas casas, outras centenas de milhares estão sem água ou luz. O nível do rio Taquari subiu ao maior patamar da história, quebrando a marca dos 30 metros.

Estado teve outras três grandes enchentes em junho, setembro e novembro de 2023

Em novembro do ano passado, chuvas mais brandas nas regiões do rio Taquari, Serra Gaúcha e região metropolitana de Porto Alegre provocaram a morte de 8 pessoas e forçaram outras 28 mil para fora de suas casas.

Em setembro, um grande volume de chuvas em um curto espaço de tempo provocou inundações principalmente no Vale do Taquari, fazendo 54 vítimas e desabrigando ou desalojarando mais de 15 mil pessoas, no que foi considerado o maior desastre natural da história do RS desde 1959.

Antes disso, em junho, a passagem de um ciclone extratropical provocou chuvas tão intensas que pessoas chegaram a morrer afogadas dentro de casa devido à subida repentina do nível dos rios. Houve 16 mortos, além de 7,5 mil desabrigados ou desalojados em mais de 40 cidades na região metropolitana de Porto Alegre, no litoral norte do estado e na Serra Gaúcha.

ra/jps (ots)

Uma arqueira indígena brasileira rumo à Olimpíada

A arqueira brasileira Graziela Santos é uma atleta fora do comum. "Sou a primeira mulher indígena na equipe brasileira de tiro com arco", diz ela. "Esse é um marco histórico para todos nós." Ela quer ser a primeira mulher indígena a competir pelo Brasil nos Jogos Olímpicos. Mas para ela, a ida a Paris seria mais do que apenas a realização de um sonho pessoal. Seria também uma premiação para um projeto de desenvolvimento na Amazônia que apoia jovens atletas indígenas.

Quando Graziela Santos soube do projeto da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), ela ainda estava na escola. "Era uma viagem de barco de cinco horas da aldeia onde morávamos até Manaus. Naquela época, havia apenas uma escola primária", lembra a brasileira em entrevista à DW. Ela soube que a FAS estava montando um projeto de arco e flecha e procurava talentos interessados. "Esse esporte vem da nossa cultura antiga, porque usamos arcos e flechas há muito tempo", lembra.

Hoje, aos 28 anos, ela integra a equipe brasileira de tiro com arco e treina no Centro de Treinamento de Tiro com Arco em Maricá, no estado do Rio de Janeiro. Santos pertence à etnia Karapanã e vem da comunidade Nova Kuanã, localizada às margens do Rio Cuieiras, a cerca de 80 quilômetros de Manaus. Na língua indígena, ela é chamada de Yaci ("Lua"). Atualmente, cerca de 1,7 milhão de indígenas vivem no Brasil, o que corresponde a 0,8% da população total. Seu irmão Gustavo Santos também é membro da equipe brasileira.

Graziela Santos
Em junho, Graziela Sontas e sua equipe enfrentarão a rodada decisiva das eliminatórias olímpicasnull Tobias Käufer

Grande potencial entre os atletas indígenas

O fato de Graziela Santos ter chance de chegar à Olimpíada se deve ao seu talento, ao seu trabalho árduo nos treinos, aos seus técnicos e ao apoio da FAS. Na época, a organização estava procurando especificamente por talentos indígenas. No entanto, há algumas diferenças entre o arco e flecha tradicional e o arco e flecha olímpico que precisaram ser superadas primeiro.

"Há semelhanças, é claro, mas também há algumas diferenças marcantes", explica Graziela. "No arco e flecha, temos toda uma gama de equipamentos, as lâminas, as cordas, o estabilizador, a mira, para que possamos obter um resultado melhor."

Ela está convencida de que os povos indígenas têm um potencial que ainda não foi totalmente explorado. "Nós fazemos de tudo. Corremos, nadamos, atiramos com arco e flecha, caçamos, pescamos. Temos uma ótima coordenação motora". E é por isso que os indígenas podem aprender alguns esportes mais rapidamente do que as pessoas da cidade, se estiverem dispostos e se esforçarem, segundo a arqueira.

Sonho do seu próprio centro de treinamento

As próximas semanas decidirão se o grande objetivo, que é a Olimpíada, realmente se concretizará. No entanto, Graziela, seu irmão Gustavo e a fundação já deram o exemplo. No programa de TV do apresentador Luciano Huck, os ativistas da FAS ganharam dinheiro diante de uma audiência de milhões de pessoas, com o qual pretendem realizar seu sonho: a construção de um centro de treino de tiro com arco na região amazônica.

"Estou convencida de que investir em atletas indígenas é um caminho de sucesso", diz a atleta. "Viemos de aldeias e comunidades distantes de Manaus. E não temos condições financeiras de viajar para Manaus e morar lá o ano todo, pagar pelos materiais e nos manter em um bom campo de treinamento e nos alimentar como atletas de ponta."

Graziela Santos atirando com arco e flecha no campo de treinamento
Graziela mora e treina em Maricá, no estado do Rio, a milhares de quilômetros de distância de sua aldeia natalnull Tobias Käufer

No entanto, um centro de treinamento na região ofereceria a oportunidade de transmitir experiência a outros jovens locais. "A construção levará à descoberta de grandes talentos que temos em nosso povo, e é importante que esses jovens não deixem sua terra natal cedo, mas fiquem perto de suas famílias", diz Santos e prevê: "Teremos mais atletas de ponta que representam os povos indígenas."

Modelo para outros povos indígenas

Por enquanto, no entanto, todo o foco está na classificação para a Olimpíada. A próxima chance de conseguir uma vaga olímpica é na Turquia. "Temos que ficar entre as quatro melhores equipes", diz Graziela. "Estamos nos preparando intensamente para isso e participando de competições internacionais. Essas competições no exterior são muito importantes para lidarmos com a pressão e continuarmos melhorando."

Graziela Santos se sente uma pioneira e um exemplo para outras mulheres indígenas. "Meu exemplo mostra que somos capazes de estar aqui", diz. "Podemos escolher nossos objetivos e provar que um dia os alcançaremos."