Expansão do crime organizado impulsiona violência no Chile

Numa noite de domingo, um grupo de pessoas assaltou uma loja no centro de Santiago. Os criminosos intimidaram os proprietários com armas de fogo enquanto roubavam o dinheiro do estabelecimento. Meses antes, esse mesmo local foi alvo de extorsão por um grupo vinculado ao crime organizado, que oferecia segurança em troca de dinheiro. Os comerciantes não aceitaram e o grupo ateou fogo no local.

"Esse é uma situação desconhecida na tradição chilena, uma vez que, até há alguns anos, este era um país relativamente tranquilo. Os indicadores passaram a mostrar uma deterioração da segurança", afirmou à DW o pesquisador da Universidade Autônoma do Chile Iván Garzón.

Especialistas consultados pela DW afirmam que o caso da loja em Santiago é mais um exemplo da onda de criminalidade que assola o país sul-americano.

As extorsões aos estabelecimentos realizadas por facções nacionais e estrangeiras "não são casos isolados em Santiago e nem em outras regiões", afirma Diego Sazo, pesquisador do Instituto Violência e Democracia do Chile. Segundo ele, essas práticas fazem parte do "método habitual dos grupos criminosos", uma vez que esse sistema "lhes assegura um financiamento regular e de baixo risco".

Sazo menciona que esse delito pode ser cometido por meio de mensagens ou telefonemas anônimos, e por isso, os dados oficiais não revelam toda a realidade, possivelmente escondendo um número maior de casos.

Embora os dados não mostrem um panorama tão desolador, como no caso do crime organizado no México ou na Colômbia, vários relatos indicam que o Chile possui algumas semelhanças com esses países.

O Índice Global do Crime Organizado, divulgado em 2023, publicado pela agência Global Initiative, destaca que foram observados no Chile "indícios de controle territorial por quadrilhas de criminosos", além de "fenômenos pouco habituais no país, como os 'narcofunerais'" – funerais de membros de organizações do tráfico de drogas que são realizados ocupando bairros inteiros.

Policiais chilenos de um batalhão de choque
Confrontos letais entre policiais e criminosos fazem parte dos novos padrões da violência no Chilenull Fernando Lavoz/NurPhoto/picture alliance

"Todas as cifras oficiais confirmam uma propagação desses métodos violentos", destacou Sazo. Os sequestros aumentaram 68% entre 2021 e 2022, enquanto as extorsões cresceram 37% no mesmo período.

De acordo com dados do Ministério Público chileno, no primeiro semestre de 2023, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes ficou em 3,2, o que corresponde a 633 assassinatos. O número é menor do que o registrado no mesmo período de 2022, 651.

Terreno fértil para o crime organizado?

Os especialistas avaliam diferentes hipóteses para entender a origem da violência no Chile. Sazo, que também é pesquisador da London School of Economics, no Reino Unido, observa a exposição do Chile a um fluxo maior do tráfico de drogas, cuja produção e comercialização ser expandiu até o sul do continente.

Além disso, após os distúrbios de 2019 e a pandemia de covid-19, houve uma propagação de outros mercados ilegais, como o tráfico de pessoas e lavagem de dinheiro. Para os especialistas, esse período coincidiu com um ponto de inflexão no país, quando havia um "vazio de poder", avalia Matías Garretón, pesquisador do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social (Coes), com sede em Santiago.

Os policiais estavam desprestigiados após os protestos em massa de um ano antes, e havia ainda uma falta de controle nas ruas, uma vez que todos os esforços estavam voltados para a situação sanitária. "Dessa forma criaram-se as oportunidades de expandir e diversificar as atividades criminosas", observa Garretón.

Por outro lado, a chegada de grupos criminosos estrangeiros como o Tren de Aragua, da Venezuela, Los Pulpos, do Peru, e los Espartanos, da Colômbia, "introduziram repertórios de violência extrema nos confrontos entre as quadrilhas", afirma Sazo.

Os especialistas falam em um contexto de "degradação significativa" que se reflete em um agravamento da violência nos últimos cinco anos. Segundo Sazo, os padrões dessa violência criminal incluem um maior número de gangues, desmembramentos, aumento e sofisticação dos armamentos, assim como confrontos letais entre grupos criminosos e as forças de segurança.

Chile: país inseguro?

Sazo ressalta que, apesar dos números, que mostram apenas dados objetivos, o país "se mantém como um dos mais seguros e menos violentos na América Latina". O especialista avalia que há algumas situações que permitem conter o pessimismo, como a "resiliência das instituições chilenas".

Garretón, contudo, não é tão otimista. "A capacidade de reação do Estado é muito mais lenta do que a capacidade de crescimento do crime organizado", observa. Ele defende que mecanismos para combater a lavagem de dinheiro e frear o sistema financeiro dos grupos criminosos poderiam atingir um aspecto fundamental do funcionamento dessas quadrilhas.

Para Iván Garzón, o grande risco que o Chile corre é o de uma "mexicanização" ou "colombianização". A preocupação é que "os tentáculos do crime organizado cheguem ao sistema político e à sociedade civil, onde, por medo ou por conveniência, os deixem atuar".

Em sua opinião, a sociedade chilena está em "fase de negação", sem um diagnóstico claro do motivo dessa deterioração, para o qual são necessários trabalhos de inteligência, cooperação e a criação de redes de apoio, além de "aprender com os países que lidam com esses fenômenos".

Apesar do aumento da criminalidade, o Chile é o quarto país mais seguro da América Latina, atrás de Costa Rica, Uruguai e Argentina, segundo o Índice da Paz Global de 2023.

Europa se torna o epicentro mundial do narcotráfico

O milagre econômico da Guiana

Alguns a chamam de Dubai da América Latina, outros falam em um milagre econômico sul-americano: a Guiana deve crescer até 25,4% em 2024, liderando o desenvolvimento econômico no continente. Pelo menos é o que consta do último relatório do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (Desa, na sigla em inglês).

Esse desempenho notável desperta cobiça – recentemente da vizinha Venezuela, que quer  anexar a região de Essequibo, rica em petróleo e recursos naturais. O regime de Nicolás Maduro já divulgou novos mapas que mostram uma Venezuela ampliada, incluindo a área de 160 mil quilômetros quadrados que hoje perfaz dois terços do território ocupado pela Guiana.

Indústria petrolífera em rápida expansão

O crescimento econômico da Guiana se deve principalmente à sua indústria de petróleo e gás em rápida expansão. "A Guiana optou por agentes privados com ampla experiência para realizar esse tipo de projeto", disse William Clavijo, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista recente ao jornal chileno El Mostrador.

A trajetória do país, portanto, contrasta radicalmente com o caminho seguido pela Venezuela. A PDVSA, estatal venezuelana de petróleo, tem decaído continuamente nas últimas duas décadas. Especialistas foram substituídos por funcionários leais a Maduro, mas que não possuem a competência técnica necessária. A isso somam-se os casos de corrupção e má administração.

No duelo entre a economia planejada de um e a economia de mercado do outro, a Guiana claramente tem se saído vencedora ao seguir o caminho oposto, com empresas de petróleo apostando em especialistas experientes.

Há quase dez anos, a americana ExxonMobil fez uma das maiores descobertas de petróleo da história recente na Guiana. Apenas no chamado Bloco Stabroek estima-se que haja até 11 bilhões de barris de petróleo. Desde então, a economia do país só tem conhecido uma direção: para cima.

"Por um lado, é claro que a Guiana quer continuar explorando suas reservas de petróleo sem o risco de um conflito internacional. Por outro lado, o governo venezuelano usou uma disputa centenária como manobra política em uma tentativa fracassada de superar a falta de apoio popular", analisa Carolina Jiménez Sandoval, presidente da ONG de direitos humanos Washington Office on Latin America (Wola). "De toda forma, ambos os países deveriam usar mecanismos de resolução de conflitos para resolver suas diferenças de forma pacífica."

Ator emergente no cenário internacional

O bom desempenho econômico da Guiana também tem impacto no cenário internacional. Recentemente houve turbulências nos mercados de petróleo devido a conflitos geopolíticos, como a invasão russa da Ucrânia ou a guerra entre Hamas e Israel. Um novo ator comercial, que ainda por cima se alinha ao Ocidente, poderia, no médio prazo, acalmar os mercados e garantir mais segurança no fornecimento.

Mulheres negras em um cais simples, feito de madeira. Ao fundo, barcos de pesca artesanal e um navio comercial
Guianenses em Georgetown: com pouco mais de 800 mil habitantes, país já tem produção de petróleo per capita maior que a Arábia Sauditanull Matias Delacroix/AP Photo/picture alliance

Produção de petróleo da Guiana deve superar a Venezuela

Com pouco mais de 800 mil habitantes, a Guiana já tem uma produção per capita maior do que a Arábia Saudita. Segundo a ExxonMobil, a produção de petróleo do pequeno país na fronteira com Roraima e Pará saltou de 380 mil barris/dia em 2023 para 640 mil barris/dia em janeiro de 2024. Até 2027, a meta é chegar a um total de 1,2 milhão de barris/dia.

A Venezuela, país mais rico em petróleo do mundo, produz entre 700 mil e 800 mil barris/dia e deve ser ultrapassada pela Guiana em breve. Segundo estimativas de especialistas, a Venezuela tem reservas comprovadas de quase 300 bilhões de barris. Além dos erros de gestão em Caracas, as sanções dos EUA também contribuem para o mau desempenho da indústria petrolífera venezuelana.

Em termos de exportações, a Guiana já ultrapassou a Venezuela. Segundo relatos da mídia local, a Guiana exportou por dia 621 mil barris de petróleo em fevereiro, superando pela primeira vez as vendas do vizinho, que foram de 604 mil barris/dia.

No início do ano, o presidente guianense, Irfaan Ali, deu um passo adiante ao conclamar a indústria do país a explorar outros recursos. "É hora de também produzirmos nosso gás", disse em um grande evento de petróleo e gás em Georgetown. "Há uma janela de oportunidade até o final da década para comercializar também o gás."

Como lidar com o problema dos cachorros de rua

A população canina mundial ultrapassa os 700 milhões, sendo que 75% deles estão nas ruas, ou seja, escapam à supervisão humana, segundo a Organização Mundial de Saúde Animal. Entre os principais problemas relacionados ao abandono desses animais nas ruas estão a reprodução descontrolada, o ataque às pessoas e à fauna nativa e a transmissão de doenças. Quase 99% dos casos de raiva em humanos são transmitidos por mordidas de cães, e os cachorros de rua contribuem para esse quadro.

Como evitar que seu animal de estimação se torne uma praga? Todas as análises apontam para a responsabilidade humana: prestar os cuidados necessários ao bem-estar do animal para que ele não ande sem supervisão humana na rua ou em áreas silvestres. Mas não há consenso sobre o que fazer com os cães de rua já existentes, incluindo aqueles que se tornaram selvagens e agora vivem na natureza.

Este é um problema generalizado na América Latina, com o México assumindo uma posição de destaque. Segundo a Associação de Médicos Veterinários Especializados em Pequenas Espécies do país, 70% dos 28 milhões de cães existentes vivem nas ruas. 

No Peru, o Ministério da Saúde estima que seis milhões de cães estejam nesta situação e, no Chile, um estudo da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Católica indica que 3,4 milhões não têm um tutor conhecido.

Eles sobrevivem em condições precárias, sem vacinas ou cuidados, e protagonizam regularmente casos de ataques a pessoas e a outros animais. Em outubro passado, um guia turístico do norte do Chile morreu após ser atacado por uma matilha.

Ameaça à fauna local

"Esses animais precisam de recursos para viver. Por isso ocupam espaços, mudam seus comportamentos, tornam-se mais agressivos e formam sociedades com animais dominantes, semelhantes aos lobos. Eles comem a fauna nativa e, se não conseguem encontrá-la, entram em conflito com outros animais", diz Jaime Jiménez, pesquisador de vida selvagem da Universidade do Norte do Texas.

O impacto não tem a ver apenas com dieta e ataques. A bióloga alemã Elke Schüttler explica que "pela sua simples presença, esses cachorros podem afugentar espécies de aves. Assim, a simples presença deles desloca a fauna daquele local, que também acaba entrando em competição por alimento em outro lugar". 

Um filhote selvagem na ilha de Navarino, no sul do Chile.
Além de ser cruel com os próprios cães, a presença de cachorros nas ruas também ameaça a fauna localnull Elke Schüttler

Schüttler, que é pesquisadora da Universidade de Magallanes e do Centro Internacional do Cabo Hornos (CHIC), lidera um projeto na Ilha Navarino, no Chile, que busca entender como eles se movem e como é a troca genética entre os cachorros de rua e os animais selvagens.

"Há impactos indiretos como doenças e transmissão de parasitas, além de questões comportamentais de dominância", acrescenta Jiménez.

A polêmica caça aos cachorros

No Chile, a Câmara dos Deputados acaba de rejeitar um projeto de lei que declararia os cães selvagens, isto é, todos aqueles que nascem ou vivem sem supervisão humana, como uma espécie exótica invasora, o que abriria as portas para a sua caça e extermínio. Esta medida, que tem sido utilizada em países como a Austrália, levanta polêmicas.

"Os cães também são animais que sofrem e sentem como nós e como espécies nativas, por isso não é ético tentar acabar com a vida de alguns para salvar outros", argumenta José Binfa Álvarez, chefe de advocacia da Fundação para Animais (APLA), Chile.

Para Jiménez, esse é um assunto complexo, que envolve muitas frentes: "Os defensores dos animais e veterinários estão preocupados com o bem-estar do animal, enquanto os ecologistas estão preocupados com o bem-estar das populações e dos ecossistemas, e quais são as consequências macro do problema. É um tema difícil, até porque matar cães mexe com a ideia de matar animais de estimação."

Pesquisadora mexicana em ciências animais, Eliza Ruiz Izaguirre afirma que, com base em estudos científicos, não é eficaz caçar cães. "Primeiro porque a maioria tem um vínculo com as pessoas, mesmo que pareçam selvagens de longe. Segundo, e mais importante: porque ao deixar um nicho ecológico vazio, ele será rapidamente preenchido por outros cães. Assim, a causa do problema não é atacada."

Mais pesquisa e responsabilidade

Para Binfa, é prioritário aplicar de maneira eficaz a lei e promover medidas como "a educação para a guarda responsável, o controle reprodutivo, o registro dos animais e, sem dúvida, a fiscalização."

"Reconhecemos que os ataques de cães são um problema, mas quando isso está associado a cães que circulam livremente, cujos tutores não exercem a propriedade responsável ou os abandonaram diretamente, devemos atacar a causa, ou seja, a irresponsabilidade humana", acrescenta o representante da APLA.

"Não existe uma medida única eficaz, mas em cada local devem ser tomadas várias medidas que sejam aceitas e apoiadas pela comunidade local. Controlar a população canina com a sua ajuda também pode ser eficiente", afirma Izaguirre. A pesquisadora estuda cães de aldeia na costa mexicana. Lá, para proteger os ninhos de tartarugas, ela recomenda fornecer aos cães alimentos suficientes, ricos em gordura e proteína, e prendê-los de noite, quando eles costumam sair para procurar ovos.

Cachorros de rua comendo
Para os especialistas, mais do que culpar os animais pelos problemas que trazem, é importante responsabilizar os humanos que os colocam nessa situação.null Vahid Salemi/AP/picture alliance

Izaguirre participa há muito tempo do Projeto Mazunte, uma colaboração entre veterinários, estudantes e voluntários dos Estados Unidos, que viajam para comunidades rurais na costa mexicana do Pacífico para realizar esterilizações. A iniciativa já conseguiu controlar as matilhas que antes dominavam as praias e comiam ovos e filhotes de tartarugas marinhas, e hoje há um aumento no número de desovas.

Continuar investigando o tema é fundamental para ter diagnósticos de acordo com realidades específicas e tomar medidas baseadas em evidências. Jiménez recomenda a criação de grupos de trabalho com todos os setores – cientistas, técnicos, ambientalistas, ativistas dos direitos dos animais, agricultores, pecuaristas, comunidades e organizações públicas – para estabelecer programas de investigação e controle. E para isso, o Estado deveria destinar mais recursos.

Educação e conscientização desde a infância, campanhas que aproximam o tema da comunidade, leis mais restritivas, multas mais altas e programas de esterilização em massa, como na Holanda, são ações que contribuem para evitar a presença de cães abadonados nas ruas. 

De cachorro de rua a influencer 

Feminicídio infantil, um mal endêmico na América Latina

Há alguns dias, a sociedade mexicana foi abalada pelo esfaqueamento de uma estudante de 13 anos no distrito de Iztapalapa, na capital do país. As autoridades classificaram o caso como tentativa de feminicídio, depois que a menina sobreviveu ao ataque do ex-namorado, também adolescente, segundo informado pela família da vítima nas redes sociais. O garoto de 14 anos, que havia sido detido, foi liberado sob a tutela dos pais, conforme prevê a lei mexicana.

Assim como ocorre com mulheres adultas, meninas e adolescentes que são assassinadas por motivações misóginas também têm seus casos classificados como feminicídio. "Na verdade, o feminicídio infantil é frequentemente tido como o assassinato de meninas menores de idade por causa de seu gênero", afirma Daniela Castro, acadêmica da Unidade de Economia Política do Desenvolvimento da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

Diretora da fundação colombiana Justiça Para Todas, María Vega explica que o feminicídio é uma "forma extrema de violência" e "dominação", perpetrada em "violação flagrante dos direitos das mulheres e meninas".

Fenômeno persiste, mas faltam dados precisos

Os casos de violência contra o gênero feminino não são isolados, mas existem aos milhares na América Latina.

"As informações disponíveis mostram a persistência do feminicídio, apesar da maior conscientização pública, dos avanços na medição dos casos e da resposta do Estado", diz o último boletim publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Segundo o relatório, em 2022, pelo menos 4.050 mulheres (4.004 na América Latina e 46 no Caribe) de 26 países da região foram vítimas de feminicídio. O Brasil lidera a lista em números absolutos (ver gráfico), mas é Honduras  que tem a taxa mais alta. Esses números, no entanto, não são comparáveis com os dos outros anos devido a mudanças no registro de casos em alguns países, alerta a Cepal, o que afeta a interpretação do número real de feminicídios. O mesmo acontece com os números sobre o feminicídio infantil.

"Nem todos os países informam o número de vítimas de feminicídio desagregado por faixa etária, o que impede uma análise exaustiva desse fenômeno", disse Ana Güezmes, diretora da Divisão de Assuntos de Gênero da Cepal.

Com base nesse estudo, oito países (El Salvador, Panamá, Nicarágua, Costa Rica, Paraguai, Guatemala, Chile e Uruguai) contabilizaram 310 vítimas de feminicídio, 13 das quais tinham entre 0 e 14 anos de idade. A Guatemala registrou 6 vítimas nessa faixa etária, seguida pelo Uruguai, com 4, e pelo Panamá, com 2.

Por outro lado, destaca-se a faixa etária de 15 a 29 anos, com 107 vítimas entre esses oito países, sendo Guatemala, Paraguai, El Salvador e Chile as nações com o maior número de vítimas.

No grupo formado por Argentina, Colômbia, Equador e Peru – que utilizam uma faixa etária diferente para medir os feminicídios – 41 meninas e adolescentes entre 0 e 18 anos foram vítimas desse tipo de homicídio em 2022.

Prisão preventiva como último recurso para menores infratores

O caso da estudante de Iztapalapa, assim como outros na região, despertou atenção para o arcabouço legal aplicado a casos de menores de idade culpados de feminicídio.

De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o próprio marco da ONU sobre Direitos da Criança, menores de 18 anos devem ser considerados inimputáveis – isentos de penas de prisão. Assim, mesmo após um crime de feminicídio, esse jovens devem receber medidas alternativas, como a custódia permanente ou a alocação do menor com uma família.

"Somente como último recurso, e a curto prazo, a prisão preventiva seria aplicada", disse à DW Miguel Barboza, pesquisador sênior do Programa de Estado de Direito da Fundação Konrad Adenauer para a América Latina.

Barboza pondera, porém, que nem todos os sistemas de justiça criminal da América Latina operam segundo esse entendimento – algo que ele considera "bastante problemático".

Crítica semelhante é feita por Amalia Alarcón, gerente regional da ONG Plan International: "A teoria diz que a justiça juvenil deve ter um enfoque de reabilitação, com foco na reintegração da criança que comete o crime, mas isso não acontece nos sistemas juvenis na região."

"Mesmo assim, houve um progresso muito grande, como medidas alternativas à prisão preventiva, determinação de padrões de comportamento e fornecimento de serviços psicológicos", pondera Barboza. 

Segundo o pesquisador, o problema é que nem todos os países tipificam o feminicídio da mesma forma e que há, inclusive, "resistências" e "desconhecimento" por parte das instituições.

De acordo com a Cepal, o crime de feminicídio é previsto por lei em 18 países da América Latina, dos quais 13 têm leis abrangentes para lidar com esse tipo de violência.

No Brasil, a lei 13.104/15, também conhecida como Lei do Feminicídio, foi publicada em 9 de março de 2015, incluindo no Código Penal o feminicídio como uma nova modalidade de homicídio qualificado. Além disso, esse tipo de crime foi incluído na Lei dos Crimes Hediondos. Já a Lei Maria da Penha, de 2006, prevê punição para atos de violência doméstica contra a mulher e cria mecanismos para coibir esse tipo de crime. 

Ação precoce

Para Castro, da UNAM, o combate ao feminicídio passa necessariamente pela prevenção, "com políticas para erradicar a violência de gênero, incluindo programas educacionais e campanhas de conscientização".

"O feminicídio é um crime cuja frequência vai aumentar, especialmente levando-se em conta as características das novas gerações, com as novas tecnologias", avalia Barboza, da Fundação Konrad Adenauer. "É um crime que não é menos grave, mas também não é um crime que faz menos parte do acervo de crimes tipificados em nível regional."

 

Como os paleoameríndios definiram a atual América Latina

Habitantes da Ásia chegaram pela primeira vez à América em diversas ondas migratórias, a partir do Estreito de Bering, entre 25 mil e 15 mil anos atrás. Os caçadores-coletores se depararam paisagens intocadas por humanos e cheias de plantas e animais desconhecidos.

Migrando através da atual América Latina, os paleoameríndios deixaram rastros de suas vidas, na forma de pinturas em cavernas e rochedos. Estas mostram como eles aprenderam a viver em seus novos habitats. Além disso fornecem aos paleontólogos pistas sobre legados ancestrais para a atual biodiversidade e cultura da região.

A mais antiga arte rupestre da América é encontrada na Serranía de La Lindosa, na Amazônia colombiana. Datando do fim da Era Glacial, cerca de 12.800 anos atrás, ela fornece dados vitais sobre a cultura ameríndia originária.

Para o arqueólogo Francisco Javier Aceituno, da Universidade de Antioquia, Colômbia – que estuda essas cavernas há anos e comparou os desenhos na rocha com os resultados de escavações realizadas nas "casas dos artistas" que pintaram as paredes – trata-se de "fotografias do passado".

Comissão diante de pinturas nas rochas do Parque Natural Nacional de Chibiriquete, na Colômbia
Pinturas nas rochas do Parque Natural Nacional de Chibiriquete, na Colômbianull Leonardo Munoz/Agencia EFE/imago images

Instruções para a vida prática e espiritualidade ancestral

Realizadas sobretudo em ocre vermelho, as cenas da natureza representam diversas espécies animais – algumas consideradas extintas, como preguiças-terrícolas e cavalos nativos, outras domesticadas, como vacas e cães.

Mais do que expressões criativas, especialistas creem que as imagens serviam como ferramentas educacionais para instruir os mais jovens sobre como lidar com as diferentes plantas e animais – não só na Colômbia, mas em toda a América do Sul.

O que a arte busca no xamanismo? | Camarote.21

Indícios encontrados numa caverna da Patagônia, no sul do subcontinente, sugerem que a arte datando de 8.200 anos atrás servia para transmitir informações através de 130 gerações humanas, talvez ajudando-as a sobreviver nos climas em mutação.

Assim como ocorre em outras regiões latino-americanas, grande parte das pinturas da Serranía de La Lindosa tem caráter simbólico, representando um mundo espiritual: "Há cenas de rituais de dança ou ritos xamânicos. Com essas cenas espirituais [os paleoameríndios] tentavam domesticar o mundo natural, controlando as forças da natureza", explica Aceituno.

Para especialistas, essas são as formas mais ancestrais de religião, quando os humanos tentaram formar uma conexão sagrada com o mundo natural. Drogas alucinógenas, muitas das quais são endógenas das Américas, podem também ter desempenhado um papel central na espiritualidade e cerimônias religiosas primitivas.

Estima-se que os paleoameríndios da Califórnia usassem alucinógenos para induzir estados espirituais – análogo às festas de LSD tão difundidas nesse estado americano nos anos 1960, ou o atual uso no Brasil de ayahuasca, ou santo-daime.

Desenhos rupestres nas paredes da Serranía de La Lindosa, Colômbia
Além de expressão criativa, desenhos nas paredes da Serranía de La Lindosa são instruções de vida e expressão místicanull 2022 The Authors

Animais e plantas da Amazônia moderna e cosmovisão mesoamericana

No período de 13 mil a 8 mil anos atrás, a Amazônia se transformou de savana seca e mata semiárida nas florestas tropicais de hoje. O processo envolveu mudanças climáticas velozes, a que as culturas locais tiveram que se adaptar. Durante as escavações na Serranía de La Lindosa, Aceituno e seus colegas puderam indiretamente datar a arte rupestre no início desse período de transformação.

Para o arqueólogo, contudo, a descoberta mais fascinante foi a presença de culturas humanas na região, ao longo de mais de 12 mil anos, que teriam influenciado fortemente a biodiversidade amazônica durante a transição climática.

A arte rupestre local indica, por exemplo, que os humanos manipulavam espécies vegetais 9 mil anos atrás, o que poderia explicar a inusitada riqueza atual de plantas úteis, como alimento e remédio. Drogas como quinino e cocaína se originam lá, o que vale à Amazônia o apelido de "maior armário de remédios do mundo".

Cabana em meio à selva amazônica do Equador
Biodiversidade e costumes amazônicos podem ser ainda legado dos paleoameríndios de 25 mil anos atrásnull DW

Para Aceituno, os paleoameríndios "alcançaram um equilíbrio na gestão de recursos naturais": "Plantas e animais eram mais do que comida, eram também vistos como seres vivos a ser respeitados. Usava-se o princípio da preservação: 'Não posso esgotar meus recursos, meu alimento'."

Notável é também o legado paleolítico nos grupos étnicos vivendo na América Latina contemporânea: "Os atuais grupos indígenas da região herdaram algumas tradições e modos de explorar a floresta, e a cosmovisão mesoamericana", explica Aceituno. Exemplos dessa visão do mundo herdada seriam a cerimônia do Dia dos Mortos e a crença de que tudo no universo faz parte de uma dualidade.

Não há provas concretas de que as comunidades indígenas de hoje sejam descendentes diretas dos paleoameríndios "num sentido biológico", ressalva o pesquisador. Porém os atuais progressos no exame de DNA antigo poderão ajudar a traçar o histórico dos grupos locais e, com a ajuda da arte rupestre, identificar como suas culturas se propagaram pela América do Sul.

Que há por trás da prisão do "czar do petróleo" da Venezuela

O advogado e político venezuelano de ascendência sírio-libanesa Tareck El Aissami era uma das figuras mais importantes da Venezuela chavista, tendo sido vice-presidente do país entre 2017 e 2018. Em março do ano passado, o "czar do petróleo", como era conhecido, caiu em desgraça, renunciando a seu cargo como ministro do Petróleo em meio a um escândalo de corrupção na estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA). Na época, explicou que estava se afastando para colaborar com as investigações realizadas pela Procuradoria Geral da República.

O que se seguiu foi um silêncio total sobre essa figura. É por isso que sua prisão na terça-feira (09/04) causou tanto alvoroço e desencadeou uma série de especulações, em meio a um clima pré-eleitoral marcado pela polêmica desqualificação da candidata da oposição María Corina Machado.

Além de El Aissami, cujo paradeiro era desconhecido desde seu afastamento do governo há um ano, também foi preso o ex-ministro de Economia e Finanças e ex-presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento (Fonden) Simón Alejandro Zerpa, e o empresário Samark José López, acusados dos crimes de "apropriação ou desvio de patrimônio público, ostentação ou valorização de relações ou influência" e "associação criminosa".

"Esses canalhas que, em má hora, usaram seus cargos que o Estado lhes deu para obviamente fazer avanços importantes na economia, se aliaram a empresários para buscar, nessa conspiração econômica, destruir a economia", declarou o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, descrevendo El Aissami como "chefe de uma organização criminosa".

De acordo com as investigações, uma rede de funcionários usou "suas posições para realizar operações ilegais de petróleo" ao "atribuir cargas" de petróleo, "sem qualquer tipo de controle administrativo ou garantias, violando os regulamentos de contratação da PDVSA".

O procurador-geral ressaltou que, uma vez que "esse petróleo alocado ilegalmente foi comercializado, os pagamentos correspondentes" à petroleira estatal não foram feitos.

Saab afirmou que a investigação "continua aberta" e que mais de 50 pessoas foram presas e acusadas, e que "novas prisões" não estão descartadas.

Homem com balacrava e colete com dizer "policia nacional contra la corrupcion" põe a mão no ombro de outro homem, ambos vistos pelas costas
Momento da prisão de El Aissaminull Venezuelan Public Prosecutor's Office/AFP

Figura-chave

É difícil estabelecer as razões exatas que levaram à queda em desgraça de Tareck El Aissami, a quem o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, havia defendido veementemente quando os Estados Unidos o acusaram em 2017 de envolvimento em lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, e em 2019 o colocaram na lista de procurados pela Justiça.

"El Aissami foi um homem importante para Chávez e para Maduro. Era um homem eficiente, trabalhava em equipe e se tornou indispensável, além de ter relações importantes com o mundo árabe, especialmente com o Irã", diz à DW Carmen Beatriz Fernández, da consultoria política DataStrategIA e professora de comunicação pública na Universidade de Navarra, na Espanha.

"Nos anos mais recentes, ele foi parte vital da construção de uma narrativa econômica de 'a Venezuela foi consertada' que, após a dolarização de fato da economia em 2019, visava vender uma imagem de normalização do país e de resiliência e reinvenção nacional, apesar das sanções", acrescenta Fernández. "O entorno de El Aissami fazia negócios lucrativos, e algumas poucas ilhas de prosperidade floresceram na Venezuela, em Caracas e em outras capitais do país, com luxo explícito, carros de luxo, construção de shopping centers e escritórios, novos restaurantes e iguarias importadas", afirma a especialista.

Corrupção

O escândalo de corrupção da empresa estatal de petróleo acabou com a carreira dele. "Toda o seu entorno se envolveu em uma rede de corrupção na qual 20 bilhões de dólares desapareceram dos cofres públicos", diz a acadêmica.

"Minha impressão foi que o problema de El Aissami com Maduro tinha a ver com dinheiro e negócios. Maduro precisava de caixa para enfrentar os desafios eleitorais, e El Aissami não soube explicar as contas para ele. Uma campanha sem dinheiro é uma condenação. Maduro se viu à beira de um processo eleitoral sem dinheiro para colocar nas ruas", diz ela.

Andrés Caleca, economista, ex-presidente do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela e ex-candidato presidencial nas primárias da oposição, duvida que haja uma luta real contra a corrupção. "Eu não acredito nisso. Inclusive ainda continuam havendo denúncias de vendas ilegais de petróleo. De fato, o homem encarregado da PDVSA era um indicado de Tareck El Aissami, e é impossível que todo o esquema pudesse ter sido realizado sem que o segundo em comando soubesse disso.

Expurgo político?

"Não acho que o problema de fundo tenha sido a corrupção. Acho que provavelmente há um problema de expurgo político", disse Caleca à DW. Mas ele observa que "o expurgo aconteceu no ano passado. O que é inexplicável é que a prisão tenha ocorrido um ano depois, quando todos os seus cúmplices foram presos no ano passado".

Na opinião dele, o momento da prisão pode ser devido a uma tentativa do governo de mostrar, no período que antecede as eleições, que punirá os corruptos. "Acima de tudo, dado o grau de desespero das bases chavistas e ex-chavistas, por verem todos os dias como a elite governante enriqueceu, enquanto o povo ficou cada vez mais pobre, essa pode ter sido uma intenção. Mas, se for esse o caso, tenho certeza de que será inútil", ressalta, afirmando que "o povo não está mais acreditando nisso".

De acordo com Beatriz Fernández, o governo poderia estar "tentando matar vários coelhos com uma cajadada só". Por exemplo, "para mostrar um compromisso com a luta contra a corrupção e a impunidade que vai até a base mais dura do chavismo, como uma mensagem eleitoral, buscando reconquistar as pessoas que se sentiram enganadas, mas também enviando uma mensagem de alerta para aqueles que fazem parte da nomenklatura".

Outro objetivo poderia dar uma mostra de "bom comportamento em relação aos Estados Unidos, que está prestes a emitir seu veredito sobre as sanções no próximo 18 de abril". A acadêmica também menciona o interesse do governo em "controlar a agenda noticiosa".

"Mostrar Tareck El Aissami agora faz parte de uma estratégia de comunicação para distrair a opinião pública de outros eventos políticos", diz Fernández.

Quanto ganham os presidentes da América Latina?

O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva ganha menos que um terço do salário dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e da Guatemala, Bernardo Arévalo. Embora os três países façam parte da América Latina, as diferenças são grandes. 

E para entender essa disparidade de salários presidenciais na região é importante comparar o salário do presidente com o salário mínimo do país. "Esse é um indicador interessante, pois é possível observar o nível de preços, as diferenças de renda e definir onde os presidentes realmente ganham mais ou menos", explica Javier Rodríguez Weber, professor da Universidade da República (UdelaR), do Uruguai.

De acordo com a plataforma de notícias Bloomberg Línea, a Costa Rica tem o salário mínimo mais alto da região: 710 dólares, seguida de Uruguai (580), Chile (520), México (445), Guatemala (420), Bolívia (342), Colômbia (335), Honduras (329), Panamá (326) e Brasil (283). O salário mínimo mais baixo dos países considerados para o estudo é o da Argentina, com 182 dólares por mês.

Levando em conta o indicador comparativo usado por Rodríguez Weber, verifica-se que, na Guatemala, o presidente Bernardo Arévalo ganha 46 vezes o salário mínimo mensal do país. Ele é seguido pelo presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, cuja renda mensal é 40 vezes maior que a renda mínima de seus compatriotas.

Em seguida, vem Gustavo Petro, presidente da Colômbia, que recebe um salário equivalente a 30 vezes o salário mínimo colombiano. Javier Milei, por sua vez, ganha 26 salários mínimos argentinos, e os presidentes Andrés Manuel López Obrador (México) e Luiz Inácio Lula da Silva têm uma remuneração mensal de cerca de 22 vezes o salário mínimo em seus respectivos países.

Do Uruguai à Bolívia, uma enorme diferença

Todos os anos, cada país aprova uma lei orçamentária geral do Estado, que estabelece os salários de seus líderes e ministros. Esses dados são de livre acesso na maioria dos casos.

Presidente da Bolívia Luis Arce
O presidente boliviano Luis Arce tem o pior salário: ganha sete vezes menos que o governante uruguaio null Luis Gandarillas/AA/picture alliance/dpa

Por exemplo, o presidente do Uruguai recebe um salário mensal bruto de 22.288,67 dólares (cerca de R$ 112 mil). No outro extremo está o presidente da Bolívia, Luis Arce, que recebe 3.013,64 dólares por mês (aproximadamente R$ 15 mil).

 

Ricado Torres Pérez, economista e pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Americana em Washington, explica que essa enorme diferença salarial se deve, entre outros fatores, ao "Uruguai ter um dos PIBs per capita mais altos da América Latina, enquanto a Bolívia tem sido historicamente um país muito mais pobre do que o Uruguai".

Da mesma forma, o especialista ressalta que, no caso da Bolívia, as reformas promovidas pelo ex-presidente Evo Moralesdevem ser levadas em conta nessa análise comparativa.

"Morales foi um presidente austero e, talvez num país como a Bolívia, mergulhado há anos na pobreza, Evo tenha tentado promover uma transformação com ênfase nas questões sociais. Ele queria estabelecer salários no setor público que mostrassem que os fundos alocados ao governo estavam sendo usados corretamente e não para enriquecer políticos".

Indicadores macroeconômicos a serem levados em conta

De acordo com Rodríguez Weber, ao falar sobre essas diferenças salariais, é essencial analisar o tema a partir de indicadores macroeconômicos, pois os países latino-americanos têm níveis de preços diferentes.

"O Uruguai é um país mais caro do que a Bolívia, por exemplo. Quando são feitas comparações internacionais, falamos de dinheiro em paridade de poder de compra, ou seja, não comparamos dólares, porque com 100 dólares na Bolívia eu compro muito mais do que com 100 dólares no Uruguai", esclarece.

Torres Pérez acrescenta que o tamanho da economia e o PIB per capita determinam, de certa forma, os salários de cada presidente, bem como os de outros funcionários públicos. 

"Os países com PIB per capita mais alto têm níveis salariais melhores porque é assim que o mercado de trabalho funciona em geral, embora haja obviamente diferenças que têm a ver com questões como a estrutura jurídica ou institucional, as leis de cada país, entre outros fatores".

O caso de Cuba

Segundo Torres Pérez, que também é ex-acadêmico do Centro de Estudos da Economia Cubana (CEEC), há pouquíssima transparência sobre a vida dos líderes em Cuba.

"Assim como na Venezuela, não há informações públicas sobre os salários de Fidel Castro e de seu irmão Raúl Castro, que o substituiu no cargo". Também não há dados sobre a renda do atual presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel.

"Esse tipo de informação não existe. O mais próximo que se pode chegar é o item de despesa declarado no escritório Nacional de Estatística e Informação (ONEI)", diz Mónica Baró Sánchez, redatora da revista digital El Estornudo.

"Em Cuba não há informação oficial sobre nada que comprometa financeiramente as instituições. A única coisa que existe como banco de dados anual é um relatório geral feito pela ONEI, mas os salários dos funcionários públicos não aparecem lá", explica a jornalista Lianet Fleites.

A DW, após consultar relatórios da ONEI e várias edições do Diário Oficial de Cuba, não encontrou nenhum dado que revele o salário de Miguel Díaz-Canel ou de qualquer ministro que compõe seu governo.

"Rolexgate": o novo capítulo da crise política no Peru

Envolto em uma crise desde 2016, o Peru vive esta semana mais um capítulo de sua persistente turbulência política. Após uma operação de busca lançada pelas autoridades policiais que atingiu em cheio a presidente peruana Dina Boluarte , no âmbito de um caso que envolve suspeita de posse de relógios de luxo não declarados, cerca de um terço dos ministros de governo deixaram os cargos nesta segunda-feira (01/04).

O ministro do Interior, Victor Torres, foi o primeiro a anunciar a saída, seguido pelas ministras da Educação, Miriam Ponce, e da Mulher, Nancy Tolentino. Os três manifestaram apoio a Boluarte. 

"Conversei com a presidente e vou embora. Pedi demissão e ela concordou", disse Torres, depois de participar de sua última reunião de ministros.

Ele ocupava o cargo desde 21 de novembro e alegou "problemas familiares" para deixar o governo. Sob a tutela de Torres estava a polícia que, juntamente com o Ministério Público, autorizou buscas na casa e no escritório da presidente, como parte do caso apelidado de "Rolexgate". Ponce e Tolentino não divulgaram os motivos da renúncia. 

 

Victor Torres, ministro de Interior peruano, acompanhado de dois militares, faz discurso. Ele está de camisa branca e boné.
Victor Torres, ministro de Interior peruano, encabeçou os pedidos de demissão dos ministrosnull Giuliano Buiklece/Innenministerium Peru/dpa/picture alliance

Mais tarde, Boluarte anunciou a saída de outros três ministros: Desenvolvimento Agrário, Produção e Comércio Exterior.  

Em seguida, a presidente nomeou novos seis ministros, substituindo cerca de um terço do gabinete de 19 autoridades em um único dia. Entre os novos nomes do gabinete está o novo ministro do Interior, Walter Ortiz Acosta, ex-general da polícia nacional que fazia parte da direção-geral contra o crime organizado. 

"Rolexgate"

O escândalo dos relógios de luxo surgiu em meados de março, depois que um programa de TV mostrou Boluarte usando um Rolex no valor de cerca de 14 mil dólares (mais de R$ 70 mil). Outros programas de TV mencionaram pelo menos mais dois relógios de luxo.

Depois das reportagens, Dina Boluarte garantiu que estava com as "mãos limpas" e que os relógios que possui foram comprados com seu próprio dinheiro. 

Boluarte deveria ter apresentado os relógios ao Ministério Público na terça-feira da semana passada e prestado depoimento no dia seguinte. No entanto, ela pediu o reagendamento de ambos os compromissos devido à "agenda pesada", não comparecendo a nenhum deles. 

Isto levou à busca em sua casa no sábado à noite, no âmbito de uma investigação sobre enriquecimento ilícito. A presidente é suspeita de não ter declarado uma coleção de relógios de luxo como parte do seu patrimônio. Segundo a polícia, foram disponibilizados 40 investigadores para o caso. No entanto, não foram encontrados na casa de Boluarte os três relógios Rolex mencionados nas reportagens de TV. 

No domingo, a presidente solicitou à Procuradoria-Geral da República que antecipasse a data de seu depoimento sobre o caso,  inicialmente previsto para a próxima sexta-feira.

O primeiro-ministro Gustavo Adrianzén condenou veementemente a ação da polícia, chamando-a de um "ataque intolerável à dignidade da presidente da República e da nação que ela representa" e afirmou que são "atos políticos desestabilizadores baseados em ordens judiciais questionáveis".

Crise política desde 2016

O Peru vive desde 2016 uma sequência de crises políticas, com Congresso e presidentes em confronto. O presidente Martin Vizcarra, que governou o país de 2018 a 2020, dissolveu o Congresso em 2019 e determinou novas eleições. A nova legislatura destituiu Vizcarra do cargo no ano seguinte.

Em seguida, o presidente Manuel Merino, permaneceu no cargo por menos de uma semana, depois de violentos protestos que deixou dois manifestantes mortos e 200 feridos. Seu sucessor, Francisco Sagasti, durou nove meses no cargo, antes de Pedro Castillo assumir o poder.

No dia 7 de dezembro de 2022, Castillo tentou dissolver o Congresso, intervir nos poderes públicos e governar por decreto, mas não recebeu o apoio legislativo. Em seguida, foi destituído e detido por rebelião e conspiraçãoBoluarte, que era vice-presidente, assumiu a presidência do país.  

Violentos protestos em Lima no Peru, policiais nas ruas
Em 2022, tentativa de golpe de Castillo provocou uma série de violentos protestos em Lima e em todo paísnull Martin Mejia/AP/picture alliance

Depois que Castillo foi deposto e detido, violentos protestos aconteceram em todo o país, deixando 26 mortos e 646 feridos. Boluarte declarou estado de emergência em 15 províncias. Por causa das manifestações violentas durante sua posse,  Boluarte , primeira mulher presidente do país, já está sendo investigada por "genocídio, homicídio agravado e ofensas corporais graves".

Ao anunciar sua renúncia, Torres advertiu que se Boluarte deixar o poder "o país afundará".

lr/le (AFP, EFE,AP, reuters)

Afinal, a Venezuela terá eleições presidenciais livres?

A Plataforma Unitária Democrática (PUD), maior aliança de oposição da Venezuela, nomeou um novo candidato para as eleições presidenciais, após dias lutando contra uma série de obstáculos e com o desafio de chegar unida em 28 de julho para enfrentar o presidente Nicolás Maduro, que busca seu terceiro mandato de seis anos – e que pode levá-lo a completar 18 anos seguidos no poder.

O cientista político e ex-embaixador Edmundo González Urrutia foi registrado como candidato provisório, uma espécia de "candidato tampão", conforme anunciou nesta quarta-feira (27/03) a PUD na rede social X, antigo Twitter. A Plataforma afirmou que a medida visa "preservar o exercício dos direitos políticos correspondentes à nossa organização política até conseguirmos registrar nosso candidato".

Isso ocorre após a Plataforma Unitária ter sido impossibilitada de registrar duas de suas candidatas para concorrer contra Maduro. Primeiro, sua figura de ponta, a ex-deputada María Corina Machado, foi impedida de concorrer após ter sido considerada inelegível para cargos públicos pelo período de 15 anos, por um Judiciário amplamente controlado pelo governo. A decisão, controversa, foi alvo de críticas internacionais, incluindo da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Nesta semana, foi a vez de a professora universitária Corina Yoris, de 80 anos, nomeada como candidata substituta de Machado, não conseguir se registrar no sistema informático eleitoral.

A Plataforma Unitária denunciou nesta terça-feira ter sido impedida de fazer o registro, após várias tentativas desde quinta-feira passada.

"Fizemos todas as tentativas de inserir os dados, e o sistema está completamente fechado para poder entrar digitalmente", afirmou Yoris em entrevista coletiva após o encerramento do prazo para registro de candidaturas. A acadêmica nunca se envolveu com política e não tem problemas com a Justiça.

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) concedeu uma prorrogação ao bloco oposicionista, já que Yoris não pôde ser registrada. A razão para o entrave não foi esclarecida. De acordo com o CNE, os candidatos presidenciais ainda podem ser substituídos até dia 20 de abril.

Já Nicolás Maduro registrou sua candidatura na segunda-feira com alarde e sem restrições.

Quem são os outros candidatos

Outro candidato da oposição é Manuel Rosales, de 71 anos, que desafiou, sem sucesso, Hugo Chávez nas eleições presidenciais de 2006, e atual governador do estado de Zulia, região rica em petróleo e situada no oeste do país. Ele formalizou sua candidatura momentos antes do encerramento do prazo para registro.

Mesmo assim, nesta terça, María Corina Machado redobrou sua aposta em Yoris, deixando entrever um clima tenso na oposição. "Aquilo para o que alertamos durante muitos meses acabou acontecendo: o regime escolheu seus candidatos", disse a ex-deputada sem mencionar Manuel Rosales, de quem ela tem sido crítica. "Minha candidata é Corina Yoris", avisou.

No ano passado, Machado venceu as primárias da PUD com mais de 90% dos votos, e as pesquisas apontam que ela derrotaria Maduro com 70% das intenções de voto, segundo alguns institutos. Por isso, o apoio dela continua sendo vital para um candidato oposicionista de unidade.

Já Manuel Rosales se ofereceu para ocupar esta vaga. "Farei tudo o que for necessário pela unidade", disse ele em uma coletiva de imprensa, em meio a acusações de ter "traído" María Corina Machado. "Se a Plataforma pedir, concordar, decidir qualquer coisa, eu estarei na Plataforma", afirmou, se referindo à PUD de Yoris e Machado. "Não me moverei nem um milímetro", completou.

María Corina Machado e Corina Yoris falam diante de microfones, cercadas de outras pessoas
Favorita da oposição María Corina Machado e sua substituta nomeada Corina Yoris: ambas foram impedidas de concorrernull Pedro Rances Mattey/Anadolu/picture alliance

O ex-diretor eleitoral Enrique Márquez, que fazia parte da coalizão de oposição mas agora se diz independente, também está concorrendo, juntamente com nove candidatos que se apresentam como anti-Chávez, embora sejam rotulados pela oposição tradicional como "alacranes", um termo usado para descrever "colaboradores" do partido governista.

Repressão à oposição

Enquanto isso, a repressão a oposicionistas continua. Na noite de terça-feira, Maduro classificou de "terrorista" o partido de María Corina Machado, o Vem Venezuela (VV).

O governante havia denunciado na segunda-feira que dois homens armados ligados à sigla haviam sido presos em um comício chavista e que tinham planos de assassiná-lo.

Sete membros do VV foram presos nos últimos dias e há mandados de prisão contra outros sete. O governo da Argentina informou que seis opositores venezuelanos foram recebidos na residência de seu embaixador em Caracas.

Além de Machado, os líderes da oposição Henrique Capriles e Freddy Superlano também foram proibidos pelo Judiciário de exercer cargos públicos. Há cerca de um mês, o governo socialista expulsou do país funcionários das Nações Unidas.

Críticas internacionais

A série de medidas do governo de Nicolás Maduro contra a oposição gerou críticas internacionais. A União Europeia (UE) e os Estados Unidos expressaram preocupação com os obstáculos colocados pelas autoridades venezuelanas à inscrição de candidatos oposicionistas para as eleições presidenciais no país.

"A União Europeia está profundamente preocupada e lamenta o processo irregular e opaco que impediu alguns partidos de registrar os seus candidatos presidenciais. Todos os direitos políticos e civis, incluindo o direito a participar em eleições verdadeiras, devem ser respeitados", defendeu o porta-voz da Comissão Europeia para Política Externa, Peter Stano.

A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou ser "muito importante que o regime Nicolás Maduro reconheça e respeite o direito de todos os candidatos a concorrerem" às eleições presidenciais de julho. 

Manuel Rosales caminha a céu aberto, seguido por outras pessoas
Candidato Manuel Rosales: "Farei tudo o que for necessário pela unidade"null ose I.B. Urrutia/Eyepix/aal/IMAGO

Em uma mudança de tom, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil manifestou nesta terça-feira, pela primeira vez, preocupação com o andamento do processo eleitoral na Venezuela, após a Plataforma Unitária Democrática não ter conseguido inscrever Corina Yoris.

"O governo brasileiro acompanha com expectativa e preocupação o desenrolar do processo eleitoral", diz nota do Itamaraty, que marca a primeira manifestação do tipo sobre o pleito presidencial venezuelano pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vinha evitando direcionar críticas às medidas que Maduro vem aplicando para barrar candidatos da oposição.

Caracas respondeu com um comunicado duro, acusando o Itamaraty de "intervencionismo".

O governo brasileiro ressaltou, em sua nota, que o impedimento do registro da candidatura de Yoris não é compatível com os acordos assinados em outubro do ano passado, em Barbados, entre governo e oposição venezuelanos, para promoção de diálogo, direitos políticos e garantias eleitorais na Venezuela.

Acordo de Barbados e anúncio do pleito

O pacto previu, entre outras coisas, a realização de eleições presidenciais livres em 2024 com presença de observadores internacionais, em troca do alívio das sanções impostas ao país pelos Estados Unidos.

No texto, governo e oposição reconhecem o direito de cada ator político de escolher livremente e de acordo com os seus mecanismos internos o seu candidato às eleições presidenciais, cujas garantias para todos os intervenientes devem ser promovidas conjuntamente.

Mas já na ocasião da divulgação da data do pleito foi possível perceber que Maduro não está disposto a deixar as coisas fáceis para seus rivais. A eleição presidencial foi agendada, no começo deste mês, para ocorrer em 28 de julho – aniversário de Hugo Chávez –, deixando pouco tempo para que a oposição se organize e nomeie um nome de unidade para concorrer.

Atual gestão começou com fraudes

Se candidatando agora a um terceiro mandato, Nicolás Maduro se reelegeu em 2018 num pleito marcado por irregularidades e que não foi reconhecido pela oposição e por grande parte da comunidade internacional.

Logo após o chavista assumir o segundo mandato, no início de 2019, o então presidente da Assembleia Nacional, o opositor Juan Guaidó se declarou presidente interino da Venezuela.

Guaidó foi reconhecido pelos Estados Unidos e por mais 60 países, além da Organização dos Estados Americanos (OEA). O país foi tomado por grandes protestos contra Maduro, que atraíram milhares de venezuelanos. O "governo interino" deveria funcionar até que eleições livres fossem realizadas depois da renúncia de Maduro.

Mesmo com os grandes protestos e a grave crise econômica, a oposição liderada por Guaidó não conseguiu obter apoio dos militares e do Judiciário, e Maduro reforçou ainda mais seu controle sobre as instituições.

Sem resultados e com a comunidade internacional deixando de reconhecer Guaidó, a oposição acabou com o "governo interino" no final de 2022, encerrando a tentativa de isolar Maduro e promover uma mudança de governo no país.

Do que o Haiti precisa para sair de mais uma crise?

Guerras de gangues, invasões de prisões e grandes protestos mergulharam o Haiti em caos desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021. O agravamento da crise sociopolítica e econômica no país está agora levando a um êxodo maciço de haitianos. O Haiti realmente se tornou um Estado falido? Do que o país caribenho precisa para sair dessa crise profunda?

A renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry, no poder desde o assassinato de Moïse, seria o primeiro passo para restabelecer a governabilidade do país, que não realiza eleições desde 2016. Henry deveria ter deixado o governo em fevereiro, mas permaneceu no cargo após um acordo com a oposição. Como resultado, gangues armadas que controlam grande parte do país atacaram a sede presidencial, o aeroporto e as prisões, de onde escaparam cerca de 3 mil prisioneiros.

"A renúncia de Henry não mudará nada, mas é parte da solução. As pessoas querem ver outra face, mesmo que essa face possa ser pior. Henry tem sido indolente em relação ao sofrimento do povo", diz, em entrevista à DW, o economista e cientista político haitiano Joseph Harold Pierre, diretor do Centro de Desenvolvimento Estratégico do Caribe.

Prioridade: dar fim à insegurança

Após Henry sinalizar que poderia renunciar, foi formado o chamado "conselho presidencial de transição", composto por sete membros dos principais partidos políticos do país, do setor privado e do Acordo de Montana, uma coalizão que propôs um governo interino após o assassinato de Moïse.

"Esse conselho será capaz de fazer um trabalho melhor", observa Pierre com otimismo. "O Haiti é atualmente um estado falido que não consegue nem mesmo garantir sua própria segurança."

Homens carregam cópia de caixão na cabeça com imagem de político
Manifestantes carregam caixão com a imagem do primeiro-ministro Ariel Henry durante um protestonull Joseph Odelyn/AP Photo/picture alliance

No entanto, o pesquisador colombiano-haitiano Wooldy Edson Louidor, da Pontificia Universidade Javeriana, explica que várias organizações têm denunciado alguns membros do conselho por envolvimento criminoso em regimes anteriores. "Evidentemente, também devemos prestar atenção a essas denúncias", diz Louidor.

A única maneira de a nação caribenha seguir em frente, avalia Louidor, é que "os haitianos concordem em colocar o país acima de seus próprios interesses, e que todos – a diáspora e as pessoas dentro do país, ricos e pobres, e as facções políticas – busquem uma solução haitiana para essa situação de caos e desordem".

Intervenção internacional?

Para Pierre, a principal razão para a grave situação do Haiti é o fato de o país não ter elites que funcionem como suporte para apoiar o governo. "Para que um Estado exista, é preciso que haja uma elite econômica, política e intelectual por trás dele", enfatiza. Mas essa seria, na melhor das hipóteses, uma perspectiva de longo prazo, já que o que é urgentemente necessário agora é "resolver o problema da insegurança e, para isso, é preciso uma missão forte e determinada", enfatiza. 

É por isso que Pierre defende uma intervenção de forças estrangeiras no país. "O ideal seria ajudar a polícia a resolver o problema, mas a polícia é muito fraca e também tem membros ligados a gangues. A solução seria a intervenção de uma missão estrangeira no Haiti", diz o cientista político.

Já Louidor prefere que a polícia haitiana seja fortalecida para que possa lutar contra as gangues armadas. "Isso deve ser feito com o apoio internacional em termos de estratégias ou apoio logístico, mas é recomendado o apoio da população civil haitiana e das organizações de direitos humanos", ressalta.

O governo do Quênia havia prometido enviar policiais para liderar uma missão internacional contra gangues criminosas, supervisionada pela ONU. Henry visitou a capital queniana, Nairóbi, por esse motivo, mas acabou sem ter como retornar ao Haiti devido ao surto de violência que causou o fechamento dos principais aeroportos do país. O político está atualmente na Califórnia, Estados Unidos, depois de deixar Porto Rico, país do qual anunciou sua renúncia.

Soldados observam pessoas em uma fila
Soldados da República Dominicana observam haitianos que fazem fila para atravessar fronteiranull Fran Afonso/REUTERS

Solução duradoura

Mas Pierre vê com ceticismo uma eventual intervenção queniana por, segundo ele, oferecer poucas garantias de sucesso. "Preferiria que ela fosse feita por países desenvolvidos, como os EUA, o Canadá ou a França", diz.

Washington, pelo menos, não descartou o envio de forças ao Haiti por enquanto como parte de uma "solução internacional" para a violência crescente que o país enfrenta. Mas organizações como a Anistia Internacional veem essas intervenções estrangeiras de forma crítica e pedem, ao invés disso, soluções duradouras.

"As soluções militares ou as intervenções externas não abordaram as causas fundamentais da crise e, longe de avançar para uma estabilidade sustentável, deixaram em seu rastro um legado de violações dos direitos humanos e impunidade que continua", disse na semana passada Ana Piquer, diretora da Anistia Internacional para as Américas.

Os especialistas Pierre e Louidor concordam que o Ocidente e a comunidade internacional têm alguma responsabilidade pelo que está acontecendo no Haiti, também devido ao passado colonial e à ocupação americana.

Se o Haiti se estabilizar, ressalta Pierre, ele tem "grande potencial econômico", considerando que mais da metade da população haitiana, 11,5 milhões de habitantes, tem menos de 25 anos de idade. "Primeiro, é preciso educar essa população, criar empregos e depois investir em outros setores. Mas para que haja investimento estrangeiro, o país precisa voltar a funcionar", insiste.

Como o Ocidente arruinou a primeira república negra do mundo

França carrega responsabilidade histórica por crise do Haiti

Pobreza, caos político e altas taxas de criminalidade marcam o Haiti há décadas, porém agora o Estado insular se encontra em meio a uma verdadeira espiral de violência. Em 29 de fevereiro o primeiro-ministro interino Ariel Henry anunciou eleições para agosto de 2025. Como seu mandato estava marcado para terminar neste fevereiro, gangues violentas interpretaram o anúncio como um convite ao ataque.

Elas investiram contra o Palácio Nacional e contra presídios, dos quais libertaram mais de 3 mil detentos. Agora os bandos criminosos controlam grande parte da capital, Porto Príncipe, que dezenas de milhares de moradores já abandonaram.

Henry, que na ocasião estava em Nairobi, negociando o envio de tropas quenianas para o Haiti, se encontra agora no território americano de Porto Rico. Segundo especialistas, contudo, as causas da atual crise possivelmente são mais profundas, pois a França carrega uma culpa histórica, enquanto antiga potência colonial.

Ex-premiê haitiano Ariel Henry fala em auditório
Ex-premiê Ariel Henry estava no Quênia quando chegou a notícia dos distúrbios em seu paísnull Andrew Kasuku/AP Photo/picture alliance

Entre colonialismo, dupla dívida e interferência americana

Em 1804 o Haiti escreveu história, como primeiro país latino-americano a alcançar independência, além disso através do sucesso de uma única rebelião de escravos. Em 1825 a França estabeleceu condições rigorosas para reconhecer a independência haitiana: além do pagamento de 150 milhões de francos – o triplo do produto interno bruto da ilha na época –, redução à metade as taxas aduaneiras para produtos franceses.

"Paradoxalmente, os vencedores pagaram reparações aos vencidos, também por temor de uma invasão militar", comenta Jean-Claude Bruffaerts, autor do livro Haïti-France. Les chaînes de la dette (Haiti-França. As correntes da dívida). Para pagar essa reparação, os haitianos tiveram até mesmo que pedir empréstimos a bancos franceses, a juros altos, no que os economistas denominam "dívida dupla". Só em 1947 o país caribenho conseguiu saldar todos os seus débitos.

"Esse dinheiro faltou para obras de infraestrutura urgentemente necessárias, como ruas, escolas e hospitais. Além disso, o Haiti precisou da proteção de um exército, o que consumiu ainda mais verbas e freou consideravelmente a economia do país", observa Bruffaerts.

Vista de Porto Príncipe, Haiti
Décadas de privação e descuido estatal deixaram marcas em Porto Príncipe null Rebecca Blackwell/AP/picture alliance

Tais lacunas de investimentos se fazem sentir até hoje: "Em muitas partes da ilha não há ruas, o abastecimento de saúde é incipiente, e grande parte das escolas não tem eletricidade."

Além disso, é usual Estados que se libertaram da escravatura terem dificuldade de se compreender como sociedade homogênea, explica Myriam Cottias, diretora do Centro Internacional de Pesquisa sobre Escravidão e Pós-Escravidão (Ciresc), sediado em Paris.

"A escravidão gera solo fértil para instabilidade política, e a divisão que ela cria na sociedade não desaparece tão fácil assim", prossegue a historiadora. "Também no Haiti até hoje há uma elite corrupta e um povo em grande parte pobre."

As dívidas do país insular também cimentaram as estruturas de poder hierárquicas, acrescenta o historiador haitiano da Universidade Paris 8 Jean Fritzner Étienne, especializado em colonialismo. "E, no entanto, os haitianos se inspiraram na Revolução Francesa, que transcorrera pouco antes, em 1789. Só que os franceses não aplicaram fora das fronteiras nacionais os princípios da própria revolução: liberdade, igualdade, fraternidade e direitos humanos".

Além disso, os Estados Unidos teriam reforçado a visão do Haiti como país inferior, ao ocupá-lo de 1915 a 1934. Depois, "de 1957 a 1986 apoiaram a brutal ditadura de François e, mais tarde, Jean-Claude Duvalier, conhecidos como 'Papa Doc' e 'Baby Doc'", lembra Étienne. "E até hoje interferem em questões internas."

Ditador do Haiti Jean-Claude Duvalier, 'Baby Doc'
Ditador Jean-Claude Duvalier, 'Baby Doc' contou com apoio dos EUAnull AP

Improvável França devolver "reparações"

Só em 2003 o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide exigiu do governo francês a restituição dos antigos débitos. Na época falava-se de 22 bilhões de dólares. No ano seguinte ele foi derrubado, num golpe de Estado orquestrado pela França e os EUA. Indagado pela DW se pretendia restituir o débito, numa coletiva de imprensa recente o Ministério do Exterior francês declarou que "atualmente isso não está em debate".

Especialistas não contam com uma devolução: "Nenhuma antiga potência colonial faria, isso detonaria uma reação em cadeia, todas as ex-colônias apresentariam exigências", descarta Laurent Giacobbi, pesquisador de geopolítica da América Latina e Caribe no Instituto Francês para Assuntos Internacionais e Estratégicos (Iris).

Na qualidade de especialista em Haiti do independente Centre Tricontinental de Leuven, Bélgica, o politólogo Frédéric Thomas reivindica uma nova abordagem: "As antigas potências mantêm uma concepção colonialista do Haiti, acham que o país é ingovernável, justificando assim uma interferência internacional."

E a comunidade internacional também teria contribuído para a atual situação, e – após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021 –, apoiado Henry, que era malquisto desde o início.

Confusão em rua de Porto Príncipe, Haiti
Bandos criminosos assolam capital Porto Príncipenull Ralph Tedy Erol/REUTERS

"Para romper o círculo vicioso de violência e caos, agora é preciso o povo haitiano finalmente decidir como vai ser daqui em diante", propõe Thomas. "Com ajuda do assim chamado 'Grupo de Montana' – com representantes da sociedade civil, Igreja e sindicatos [do Haiti] – se devia formar um governo de transição, e aí decidir se e como serão estacionadas tropas internacionais no país."

O comitê, que leva o nome do Acordo de Montana, de 30 de agosto de 2021, poderia de fato propor os integrantes de um governo provisório. Ele deverá indicar um novo premiê interino e convocar novas eleições, numa data ainda não definida. Só depois Ariel Henry renunciará oficialmente.

O autor Bruffaerts espera que agora a comunidade internacional deixe os haitianos decidirem sobre seu futuro: "A França deveria, além disso, investir em infraestrutura para a ilha pelo menos uma parte do dinheiro que o Haiti lhe pagou", para que ele possa finalmente se desenvolver economicamente..

Colômbia: ambientalistas e governo disputam reserva natural

Há 40 anos foi fechada uma prisão de alta segurança na ilha de Gorgona, no litoral pacífico da Colômbia, devido a um embate entre cientistas, ecologistas e defensores dos direitos humanos. Em consequência, o local passou a integrar a rede de Parques Nacionais Naturais (PNN), gerida pelo Estado.

"É um importante sítio de concentração para a reprodução de jubartes do Pacífico Sudeste, que aportam anualmente na Colômbia, provenientes da Antártida e dos canais patagônicos chilenos", explica a bióloga marinha Lilián Flórez González, que dirige a Fundação Yubarta e desde 1986 se dedica ao estudo da também chamada baleia-de-corcova. "O parque constitui um dos cinco locais conhecidos mais importantes para a reprodução dessa espécie no Pacífico colombiano."

Baleia-jubarte saltando no mar
Baleias-jubartes vão se reproduzir no parque nacional do Oceano Pacíficonull Cedric Favero via www.imago-images.de

Transcorridas quatro décadas, a assim chamada "Ilha da Ciência" volta a ser cenário de polêmica, desta vez desencadeada por um novo projeto proposto por Bogotá: "Trata-se de uma intervenção integral para fortalecer o Parque Nacional Natural Gorgona como Nó de Biodiversidade no Pacífico Colombiano, através de ações que incluem a gestão de conhecimento, o ecoturismo, a bioeconomia e o fortalecimento de ações de controle e vigilância para prevenção de infrações e delitos ambientais", explica Guillermo Alberto Santos Ceballos, coordenador do grupo de trâmites e avaliação ambiental dos Parques Nacionais Naturais.

Com um investimento de 32 bilhões de dólares, o projeto prevê a construção de um cais para facilitar o acesso de visitantes, uma torre de avistamento de mamíferos aquáticos e um centro de monitoração e controle, abastecimento elétrico por fontes renováveis, manutenção das trilhas e, em geral, adequação ao ecoturismo, consta de um comunicado do governo.

"As intervenções previstas, inclusive o projeto Estação de Guarda Costeira, fortalecerão todos os processos relacionados à administração e manejo do Parque Nacional Gorgona, também a pesquisa científica", promete Santos Ceballos.

Mais uma "estratégia dos EUA"?

No entanto, o projeto fez saltar os alarmas de diversos coletivos da sociedade civil, que se agruparam para mostrar manifestar rejeição à iniciativa. "Na legislação ambiental colombiana, um Parque Nacional Natural é o nível de conservação máximo de uma área determinada, e o mais regulamentado em matéria de intervenções humanas, principalmente as de alto impacto como construções permanentes e que ameacem a fauna e a flora presentes na zona", enfatiza Andrés Bodensiek, um dos porta-vozes nacionais do Comitê Salvemos Gorgona.

"O projeto de construção de uma Estação de Guarda Costeira (base militar) afeta o desenvolvimento das atividades do Parque Gorgona, uma vez que a pesquisa, educação ambiental e ecoturismo estarão superpostas às atividades militares de confiscação de drogas ilícitas, perturbando o entorno natural", critica o diretor da Fundação Biodiversidade, Armando Palau Aldana.

"O projeto faz parte de uma estratégia dos Estados Unidos para aumentar o controle sobre nossa riqueza natural, com as desculpas tradicionais de luta contra o narcotráfico e a pesca ilegal", complementa Andrés Pachón, advogado da ação popular em defesa do parque.

Portão enferrujado em parque nacional colombiano
Certas áreas do Parque de Gorgona estão abandonadasnull nomadcom/Demotix/picture alliance

"Medidas insuficientes, anticientíficas e sem respaldo legal"

Palau Aldana é um dos vários opositores do projeto que alertam sobre seus impactos no nível ambiental: "A instalação do radar emitindo 9,14 giga-hertz supõe um risco muito alto, devido à contaminação eletromagnética que afeta os tecidos moles. Por sua vez, o ancoradouro de 182 metros de largura, sustentado por 100 pilotis afincados no leito marinho, gerará contaminação acústica, afetando os sistemas auditivos da fauna marinha."

No nível social, Pachón lamenta: "Tudo foi adiantado ignorando as comunidades indígenas e afrodescendentes da área afetada, que não foram informadas de seu direito de consulta prévia." Bodensiek, especialista em direito territorial, acrescenta que "hoje em dia as comunidades afro e indígenas do Pacífico [dos departamentos colombianos] de Cauca e Nariño na área em questão da ilha, continuam a se opor" ao projeto.

Em contraste, Ceballos assegura que o projeto se desenvolve "em articulação com as entidades estatais e territoriais, num diálogo social amplo e participativo, com as comunidades da área afetada do parque e da academia": "O manejo dos impactos das intervenções está previsto no plano ambiental aprovado pela Autoridade Nacional de Licenças Ambientais (Anla)."

Tais argumentos não convencem os opositores: "As medidas propostas para mitigar os efeitos negativos do projeto são insuficientes, anticientíficas e carentes de respaldo legal. Seguiremos insistido que ele seja cancelado", promete Bodensiek.

Argentina de Milei oscila entre sacrifícios e esperança

A pobreza cresce na Argentina, a inflação cai: os primeiros 100 dias da presidência de Javier Milei dão motivo tanto para esperanças quanto para apreensão. O Observatório Social da Universidade Católica Argentina (UCA) registrou que, partindo de já elevados 45%, a pobreza subiu para 57%. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que, entre crianças e adolescentes, esse índice aumentará de 62% para 70%.

As tensões sociais crescentes são o calcanhar de Aquiles do novo governo libertário-conservador que completa 100 dias nesta terça-feira (19/03). Mas do outro lado estão suas conquistas de política financeira: entre dezembro e fevereiro, a inflação caiu de cerca de 25% para 13,2%, e o portal do semanário suprarregional argentino Perfil prediz uma redução a 7%, até julho.

Segundo Milei, a "forte desaceleração" da inflação seria "resultado do trabalho do governo nacional para impor uma disciplina orçamentária rigorosa". No entanto, para a população, 13,2% já é um nível de encarecimento duro de suportar.

Reconhecendo que esse retrocesso supera as expectativas, até o momento, o consultor econômico Carl Moses, sediado em Buenos Aires, aponta um outro sucesso do novo presidente: "Apesar da grave recessão, a cotação das ações e títulos de dívida argentinos subiu decididamente. Isso combina com o clima entre a população, que é melhor do que se esperaria, diante da situação econômica e social, que continua piorando dramaticamente."

Mulher e crianças reviram contêiner de lixo em Buenos Aires à procura de comida
Família revira contêiner de lixo em Buenos Aires à procura de comida: avanço da pobreza é inegávelnull Tobias Käufer/DW

Estabilização sobre bases frágeis

No entanto, o presidente ainda não conseguiu fazer passar seu ambicioso projeto de reformas econômicas. Derrotas em parte amargas no Congresso – onde o partido de Milei, A Liberdade Avança, não tem maioria – e no Senado deixaram estagnados o megadecreto.

"Até agora, no entanto, faltam reformas verdadeiras, possibilitando uma melhora duradoura", aponta Moses. "A recente estabilização das finanças estatais, de que o governo está tão orgulhoso, se sustenta, no momento, com a desvalorização real dos salários e aposentadorias, assim como em outras medidas provisórias, que não vão resistir no longo prazo."

O economista Agustín Etchebarne, da fundação liberal Libertad y Progreso, de Buenos Aires, insiste na implementação da reforma: "Esse processo da adaptação e transformação econômica é incontornável para criar as bases de um crescimento duradouro e estabilidade de longo prazo. Partimos do princípio de que a economia vai se recuperar no segundo semestre."

O governo Milei procura sanear com medidas de austeridade drásticas o orçamento público altamente endividado que herdou de seus antecessores. Deverá ser fechada a agência de notícias estatal Telam, que opera de forma deficitária, segundo dados oficiais; numerosos contratos por prazo limitado deixaram de ser renovados na Rádio Nacional; instituições estatais foram fechadas; cortaram-se as verbas para governos de província.

Choque entre manifestantes e policiais em Buenos Aires
Protesto na capital argentina, em 01/02/2024: parte da população não está nada satisfeita com a política de Mileinull Luciano Gonzalez/Anadolu/picture alliance

"Vai ser um milagre se Milei aguentar quatro anos"

"Não há dinheiro": assim Milei descreveu o estado dos cofres públicos, ao iniciar seu mandato. Apesar das medidas rigorosas e da pobreza galopante, sua popularidade ainda é relativamente estável, mesmo com algumas perdas em pesquisas recentes. Ele ainda se beneficia de ter anunciado "um primeiro ano difícil", e está cumprindo essa "promessa". Parte da população está convencida de que os sacrifícios valerão a pena, a outra está profundamente preocupada.

Críticas ferrenhas sobre o curso governamental partem da oposição e de organizações sociais. Na terra do papa Francisco, a Igreja Católica pede que se considerem os necessitados. Párocos relatam que aumentou sensivelmente o número dos que procuram ajuda nas cantinas sociais. O "padre dos pobres" Francisco "Paco" Olveira acusa o presidente de estar mirando expressamente os movimentos sociais, tradicionalmente associados ao peronismo, que regeu o país durante longos anos.

"A ideia do governo é destruir todas as organizações comunitárias, sociais e políticas", acusa Emilio Pérsico, do movimento peronista Evita. Ele supõe que, diante do avanço da pobreza, a atual presidência poderá ter fim antecipado: "Vai ser um milagre se Javier Milei aguentar quatro anos."

Quem é Jimmy Chérizier, o gângster no centro da onda de violência no Haiti

No atual contexto de caos no Haiti, um nome tem ganhado destaque nos noticiários: Jimmy Chérizier, apelidado de "Barbecue", um dos líderes de gangues mais poderosos do país. Embora se defina internamente como "protetor da população pobre", é, em parte, responsável pela escalada da violência no país caribenho.

Ex-policial, Jimmy Chérizier, de 47 anos, tenta se apresentar como um "Robin Hood" que luta por justiça aos mais pobres e contra as elites corruptas – mas com força bruta. Se autodenomina um revolucionário e promete ao país um futuro mais justo com educação gratuita, alimentação e trabalho para todos.

"Hoje há uma luta para libertar o país. Tenho pena dos mortos. As vidas humanas são preciosas. Mas é uma luta e há danos colaterais", disse em entrevista à rádio colombiana W.

Atualmente, no Haiti, mais de 300 grupos lutam pela supremacia nos bairros da capital, Porto Príncipe, com as pessoas nas favelas sendo as que mais sofrem. Segundo a ONU, janeiro foi o pior mês em mais de dois anos, com mais de 800 civis mortos, sequestrados ou feridos.

Barbecue também costuma se comparar a antigos ditadores caribenhos, como o cubano Fidel Castro e o haitiano François Duvalier. Se acender ao poder, porém, é pouco provável que melhore a situação do país.

"Chérizier está envolvido num grande número de negócios ilegais. Não consigo imaginar que ele agora mude subitamente de Saulo para Paulo, de senhor da guerra para senhor", destaca Günther Maihold, cientista político do Instituto para a América Latina da Universidade Livre de Berlim.

Barbecue de colete bege sobre uma camiseta camuflada. Ele segura um fuzil
Barbecue gosta de aparecer em público com uniforme camuflado e sempre portando armasnull Orlando Barria/Agencia EFE/IMAGO

Expulso da polícia

Barbecue foi demitido da polícia no final de 2018, depois de ser acusado de envolvimento em várias chacinas.

Em 2020, fundou o grupo armado G9 - Família, reunindo nove gangues do país. Agora, o grupo aparentemente uniu forças com seus arqui-inimigos, a gangue G-PEP, para formar o movimento Vivre Ensemble. O objetivo: derrubar o governo do empobrecido país caribenho. O G9 também ameaça sabotar a missão liderada pelo Quênia para restaurar a segurança no país.

O famoso apelido Barbecue ("churrasco" em francês ou inglês) ou "Babekyou" (em francês créole), segundo o próprio Chérizier, deve-se ao fato de, no passado, sua mãe vender frango na rua. Outra versão, bem mais obscura, afirma que o nome se deve a incêndios de casas e corpos de vítimas no qual esteve envolvido.

Um dos piores massacres no bairro de La Saline, em Porto Príncipe, em 2018, que matou mais de 70 pessoas, também é considerado obra de sua gangue, como documentam organizações de direitos humanos. De acordo com os Estados Unidos, o incidente foi um ataque coordenado entre a polícia e  grupos criminosos para reprimir a dissidência política local.

Pelos crimes, Chérizier chegou a ser acusado pelos Estados Unidos e pelo Conselho de Segurança da ONU de graves violações dos direitos humanos, sendo alvo de diversas sanções internacionais.

Além dos crimes diretos contra a população civil, Chérizier também é acusado de liderar ações de sabotagem no fornecimento de combustível e de bloquear o porto da capital haitiana, agravando a crise humanitária no Haiti.

Paixão pelos holofotes

Chérizier gosta de dar entrevistas, muitas vezes ao estilo de coletivas de imprensa. Dependendo da ocasião, ele veste terno azul-claro. Nos vídeos que circulam pela internet, porém, costuma aparecer com um traje de combate camuflado, com um colete à prova de balas e um fuzil de assalto no ombro.

Chérizier fala a pessoas que o filmam com celulares, ao lado de um menino com o rosto coberto e armado
Chérizier está sempre acompanhado de jovens, os quais ele chama de "guarda-costas"null David Lorens Mentor/MAXPPP/IMAGO

Nascido em Porto Príncipe, ele atualmente mora no bairro Delmas 6, mas, por razões de segurança, muda de casa frequentemente.

Quem o visita é recepcionado por uma comitiva de jovens, alguns dos quais aparentam ter menos de 14 anos, vestindo shorts esfarrapados, meias e chinelos e sempre portando armas. Chérizier chama-lhes de "seus guarda-costas".

Em dado momento, tira uma pilha de notas de dólares do bolso da calça e as conta na mão de um menino: ele precisa de dinheiro para comprar livros da escola, conta.

Jovens e até crianças são cooptados por gangues no Haiti. Eles têm pouca escolha: muitos perderam seus pais, tornando-os presas fáceis para o recrutamento forçado em um país com altíssimo nível de desemprego.

Melhor armado que a polícia do Haiti

Recentemente, a luta entre as gangues se tornou ainda mais brutal, e a violência está aumentando. As gangues atacaram prédios do governo e prisões, soltando vários presos, entre eles, líderes de gangues, estupradores e criminosos graves que seguem foragidos.

Observadores internacionais afirmam que Chérizier e suas gangues são mais poderosos e bem equipados que a polícia haitiana. As armas vêm, sobretudo de contrabando dos Estados Unidos, critica o escritor e comentador político Michel Soucar.

"Todos sabem de onde vêm as armas. Essas gangues vêm se desenvolvendo há 30 anos, e conseguiram fazer isso não apenas por causa das armas e munições dos Estados Unidos, mas também conseguiram se posicionar porque são gangues estatais".

Homem armado em meio a pilhas de lixo
Haiti é o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundonull Ralph Tedy Erol/REUTERS

O próprio Chérizier teria laços estreitos com o presidente Jovenel Moïse, assassinado há quase três anos. Ele teria, por exemplo, recebido dinheiro para silenciar manifestantes em um bairro pobre. De acordo com uma reportagem do jornal americano The Washington Post, aliás, o que teria motivado o líder de gangues a escalar sua guerra contra o Estado foi, justamente, o corte de financiamento do governo após a morte de Moïse. Segundo a portal InSight Crime, aproximadamente 50% do financiamento da gangue vinha do governo – o restante era obtido com sequestros e extorsões.

Pretensão de assumir o governo?

Jean Denis formou um grupo de justiceiros com seus vizinhos para se defender das gangues. Para ele, há líderes de gangues piores: se houver negociações com Chérizier, ele poderia até imaginá-lo como presidente. Se ele realmente se tornar uma figura política, as pessoas o perdoariam, acredita Jean Denis.

A opinião dele, porém, certamente não é compartilhada pela maioria da população. Até o final do ano passado, um total de 314 mil pessoas tiveram que deixar suas casas para escapar da violência das gangues.

Apesar das especulações, Chérizier afirma não ter ambições reais de se mudar para o palácio presidencial. Presumivelmente, é mais lucrativo continuar sequestrando, bloqueando rotas de transporte e negociando gasolina roubada e afins.

le (ots)

Como o caos tomou conta do Haiti, e qual seria a solução

O primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, declarou-se disposto a renunciar, num discurso à nação divulgado nas redes sociais nesta segunda-feira (11/03). Segundo ele, para a transição até as novas eleições, será designado um conselho presidencial de sete membros, o qual indicará um premiê interino.

Bandos criminosos poderosos, que controlam grande parte do Haiti e quase toda a capital, Porto Príncipe, haviam exigido a renúncia de Henry e agora alcançaram uma de suas metas. "Criminosos se apoderaram do país, não há governo", comentou o vice-presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, antes da reunião de emergência da Comunidade Caribenha (Caricom).

Há dias, integrantes das gangues vêm atacando instituições estatais, como delegacias de polícia, repartições governamentais e presídios. Consta que há cadáveres pelas ruas, várias centenas de milhares de cidadãos estariam em fuga dentro do país. Na região de Porto Príncipe, vigora o estado de emergência e toque de recolher noturno.

Apesar disso, a polícia praticamente não intervém mais, permitindo passivamente saques e justiçamentos arbitrários. Em 2023, a Organização das Nações Unidas estimava que 80% da capital estava sob controle de gangues. A Alemanha, União Europeia e Estados Unidos, entre outros, retiraram o pessoal das embaixadas, temendo por sua segurança.

 

Manifestante carrega caixão com foto do premiê haitiano Ariel Henry e bandeira dos EUA
Manifestante em Porto Príncipe carrega caixão com foto do premiê Ariel Henry e bandeira dos EUAnull Joseph Odelyn/AP Photo/picture alliance

Horas antes do discurso de Henry, o líder da Caricom e Presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, disse que o conselho de transição será composto por sete membros com direito a voto de vários grupos sociais, incluindo partidos políticos, e dois observadores sem direito a voto: um membro da sociedade civil e um da comunidade inter-religiosa. 

Ali garantiu que o conselho não vai incluir qualquer pessoa acusada ou já condenada em qualquer jurisdição, que esteja sob sanções da ONU, que se oponha às resoluções do Conselho de Segurança da ONU ou que pretenda concorrer nas próximas eleições. 

O Conselho Presidencial de Transição "selecionará e nomeará rapidamente um primeiro-ministro interino", que irá liderar o Haiti até à realização de eleições, acrescentou. 

Os países caribenhos reuniram-se de urgência na segunda-feira na Jamaica, por iniciativa da Caricom, com representantes da ONU e de vários países, incluindo França e Estados Unidos, para tentar encontrar uma solução para o Haiti. Henry falou por videoconferência com membros da Caricom durante a reunião. 

Sem eleições desde 2016, o Haiti não tem atualmente nem um parlamento nem um presidente. O último chefe de Estado, Jovenel Moïse, foi assassinado em 2021.

Como a crise se exacerbou a este ponto?

Registram-se sinais de escalada, o mais tardar, desde 7 de fevereiro de 2024, data estipulada, por diversos grupos políticos e da sociedade, juntamente com Henry, para a posse de um novo governo. No entanto o premiê não mandou realizar eleições, propondo no fim de fevereiro, em vez disso, um período de transição até agosto de 2025.

Certamente contribuiu para o atual descontentamento o fato de Henry não ter anunciado essa decisão na capital, mas na cúpula da Caricom na Guiana. De lá, viajou para o Quênia e, desde 5 de março, se encontra em Porto Rico. Durante sua ausência, a situação se agravou sensivelmente: no início de março, membros de quadrilhas invadiram dois presídios, promovendo a fuga de 4.500 detentos.

Quem segue acirrando a situação?

Um agravante é o fato de quadrilhas antes rivais terem se aliado. Especialmente importante é a "Família G9 e Aliados", uma coalizão de nove gangues antes independentes liderada por Jimmy Chérizier, vulgo "Barbecue". Observadores consideram esse ex-policial um dos homens mais poderosos do Haiti, de facto.

Em entrevista à revista The New Yorker, em 2023, ele citou como seus modelos pessoais Fidel Castro e Malcom X, ressalvando: "Também gosto de Martin Luther King, mas ele não gostava de lutar com armas. Eu gosto."

Quais as origens históricas do atual estado de coisas?

Antiga colônia francesa, o Haiti ocupa o terço ocidental da ilha caribenha Hispaniola, cabendo o restante à República Dominicana, antes dominada pelos espanhóis. A população de ambos os Estados insulares origina-se, em grande parte da costa oeste africana, cujos antepassados os senhores coloniais mandaram sequestrar e escravizar.

O Haiti desligou-se da França em 1804 após uma revolução antecedida por décadas de rebeliões de escravos. Trata-se do único país do Hemisfério Oeste que venceu a dominação colonial sob a liderança de ex-escravos de origem africana. Desde então, contudo, houve diversos períodos marcados por violência e instabilidade, em que diferentes etnias competiam pela predominância.

A partir de meados do século 20, o ditador François Duvalier propagou a deposição da elite etnicamente mista em favor da maioria negra da população. Sob sua liderança, bandos criminosos também se estabeleceram como poder paralelo ao do Estado, agindo com violência e falta de escrúpulos.

Outro evento-chave foi o devastador terremoto de 2010, que provocou centenas de milhares de mortes, e cujas consequências o Estado debilitado não conseguiu reparar até hoje. Desse modo, quadrilhas puderam ampliar sua zona de poder para além dos bairros de origem.

A insatisfação da população cresceu, e em 2019 voltou-se progressivamente contra o presidente Jovenel Moïse, acusado de corrupção. Devido aos protestos, foram canceladas as eleições já programadas. Moïse passou a reagir cada vez mais por decreto, até ser assassinado por desconhecidos em sua residência presidencial, em julho de 2021.

Desde então, quem encabeça o Estado é Ariel Henry, que fora escolhido como primeiro-ministro por Moïse e assumiu também o papel de presidente interino. A ordem pública encontra-se sob pressão crescente desde o assassinato de Moïse, até hoje não esclarecido. Assim, Henry apelou à comunidade internacional, e em outubro de 2023 o Conselho de Segurança da ONU decidiu enviar ao Haiti uma tropa multinacional de segurança, sob a liderança do Quênia.

Quais são as dificuldades iniciais para a tropa de segurança da ONU?

Meses antes da resolução do Conselho de Segurança, o presidente queniano, William Ruto, já propusera o envio de até mil agentes ao país pobre do Caribe – não só soldados, mas também policiais. Observadores de Nairobi duvidam que o treinamento e equipagem deles esteja à altura da luta contra as gangues haitianas, em parte pesadamente armadas.

Ainda mais decisivo, porém, é um argumento jurídico: em janeiro, um tribunal queniano estipulou que o conselho de segurança nacional só pode enviar para o exterior soldados, não policiais. No entanto deixou uma brecha aberta para uma missão policial, se houver um acordo de mobilização com o país em questão. O premiê haitiano Henry viajou no início de março para Nairobi a fim de assinar um acordo nesse sentido – porém a oposição do Quênia já havia anunciado uma nova restrição.

O financiamento da missão tampouco está garantido. Nos EUA, o governo de Joe Biden se dispõe a alocar até 200 milhões de dólares para esse fim, contudo é questionável se, em plena campanha eleitoral, a oposição republicana vai aprovar tal proposta no Congresso. Portanto segue em aberto como a comunidade internacional poderá atender ao pedido de socorro do Haiti.

Haiti: radiografia de um Estado falido

O ataque ao presídio central de Porto Príncipe, ocorrido na semana passada, foi apenas o mais recente reflexo da violência que abala o Haiti desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, um episódio que agravou a insegurança e desestabilizou o país social e politicamente. A violência das gangues, os sequestros e a turbulência são obstáculos à reconstrução e ao desenvolvimento.

Como o governo perdeu a capacidade de garantir as necessidades básicas de governança, segurança e serviços públicos aos cidadãos, muitos analistas consideram o Haiti hoje um Estado falido, enquanto outros o declaram como praticamente inexistente. Uma análise dos números e dos dados históricos nos ajuda a entender melhor a situação.

Números atuais

O Haiti tinha em 2023 uma população de 11,7 milhões de habitantes, 40% mais numerosa do que em 2000. A população tinha em 2021 uma idade média de 24,3 anos – muito jovem – e uma expectativa de vida de 64,8 anos, e enfrenta uma situação econômica e social crítica.

O Banco Mundial estima que, em 2023, 63% dos haitianos viviam com menos de 3,65 dólares por dia, e que pelo menos 5,2 milhões de pessoas no país precisam de assistência alimentar e habitacional, número 20% maior do que em 2022.

A escolaridade também enfrenta grandes problemas. Quase metade dos haitianos com mais de 15 anos é analfabeta, e apenas cerca de 50% das crianças haviam concluído o ensino básico em 2020, segundo dados da Human Rights Watch.

A economia do Haiti está em recessão há quatro anos consecutivos, e encolheu 1,7% em 2022, de acordo com dados do Banco Mundial.

"Costumávamos ser em grande medida autossuficientes em termos de produção agrícola. Agora importamos praticamente tudo o que consumimos", disse à DW o haitiano Robert Fatton, professor do departamento de política da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

"E nesse ponto creio que a comunidade internacional é um problema, porque os programas propostos sempre foram orientados à exportação e destruíram a economia agrícola do Haiti no longo prazo", diz.

Legado do colonialismo

O passado colonial e a intervenção internacional são parte das causas que levaram o país à situação atual. Isso apesar de o Haiti ter feito história em 1804, quando se tornou a primeira nação a conquistar a independência na América Latina.

A nação teve dificuldades logo em seu início. A França impôs ao Haiti uma redução de 50% nas tarifas sobre as importações francesas e uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de 21 bilhões de dólares atualmente) ao Haiti em troca do seu reconhecimento diplomático.

"Mas, ao mesmo tempo, por que os governantes do Haiti concordaram em pagar essa indenização? O que sugiro é que eles tinham interesse em fazer isso para defender sua propriedade", diz Fatton.

Racismo e desigualdade

O cientista político haitiano da Universidade da Virgínia afirma que o colonialismo deixou um legado de racismo e desigualdade que continua a afetar o tecido social e econômico do país, criando barreiras significativas ao desenvolvimento e à igualdade.

Outro cientista político haitiano, Louis Jean Pierre Loriston, concorda: "Somente os filhos dos militares e da elite política podiam ser educados. Porque eles sabiam que se mantivessem a classe camponesa – os ex-escravos – na obscuridade, sem educação, eles nunca seriam capazes de sair disso e se impor."

Como tirar o Haiti da crise?

O atual primeiro-ministro, Ariel Henry, vem administrando o país sem um mandato constitucional desde o assassinato de Moïse, e governa por decreto. Muitos haitianos estão insatisfeitos com Henry, que não tem legitimidade constitucional, mas é apoiado pela comunidade internacional.

Ariel Henry de terno segura microfone em sala com outras pessoas
O primeiro-ministro Ariel Henry durante uma palestra em uma universidade em Nairóbi, no Quênia, no início de março null Andrew Kasuku/AP Photo/picture alliance

Os especialistas entrevistados pela DW concordam sobre a importância de formar um governo de transição confiável para substituir o atual e iniciar um processo eleitoral para restaurar a democracia.

Para dar início a um processo eleitoral, no entanto, é necessário "restabelecer um nível mínimo de segurança para garantir o funcionamento do país", diz Nathalye Cotrino, da Human Rights Watch.

Ela propõe "desenvolver estratégias que permitam que a Polícia Nacional recupere a confiança e a legitimidade entre a população". Isso poderia envolver a "adoção de um mecanismo de investigação de antecedentes na polícia haitiana" e a remoção daqueles envolvidos em grupos violentos.

A comunidade internacional reagiu à situação no Haiti com algumas medidas de ajuda. O Conselho de Segurança da ONU aprovou o envio de uma missão com o objetivo de fortalecer a polícia haitiana em sua luta contra o crime. O Haiti e o Quênia assinaram um acordo bilateral para enviar mil policiais quenianos para liderar essa missão, com o apoio financeiro de países como Estados Unidos, Canadá e França.

No entanto, muitos criticam a intervenção internacional no país, incluindo Keith Mines, diretor do programa para a América Latina do Instituto da Paz dos EUA: "A ajuda vem e vai, esquiva-se das tarefas básicas de ajudar a construir as instituições de que o Haiti precisa, sempre impulsionando iniciativas privadas, e mostra uma impaciência sem sentido em um país que precisa de uma mão amiga sustentada no tempo".

Wooldy Edson Louidor, professor colombiano-haitiano da Universidade Javeriana, na Colômbia, diz que o apoio da comunidade internacional é importante, "mas para chegar a uma solução haitiana é necessário o retorno à ordem constitucional".

Em Cuba, "às vezes não há nem água para enganar o estômago"

Está faltando pão em Cuba, um alimento básico cuja escassez simboliza a gravidade da fome que atinge o país caribenho.

O pão subsidiado é vendido por um peso cubano, e os moradores têm direito a um número limitado de pães por mês, anotados em um cartão de racionamento.

Mas está faltando farinha de trigo para produzir o alimento. Em padarias privadas, ainda é possível encontrar pão, mas a um preço muito mais caro e inacessível para boa parte da população.

O governo reconhece a falta de pão, e diz que o problema continuará pelo menos até final de março.

O Food Monitor Program, um observatório que monitora a segurança alimentar em Cuba, afirma que parte dos cubanos está desnutrida. E que muitas escolas não oferecem mais café da manhã aos alunos, e um almoço insuficiente.

Uma pesquisa do Observatório Cubano de Direitos Humanos publicada em setembro passado apontou que 88% dos cubanos viviam em extrema pobreza, situação que força muitos a tentar emigrar.

Protestar nas ruas é uma alternativa apenas para os destemidos. A última onda de manifestações, em 2021, foi duramente reprimida pelo governo e muitos acabaram presos.

A DW entrou em contato com dois aposentados no leste do país por meio do Food Monitor Program. Eles relataram como estão lidando com a situação, mas preferem permanecer anônimos. Por esse motivo, vamos chamá-los de Alicia e Felipe. Cuba tem hoje cerca de 1,6 milhão de aposentados, segundo dados estatais.

DW: Como é um dia comum em sua vida? É difícil conseguir pão?

Alicia (80 anos): A primeira coisa que faço é ver se a água está chegando para que eu possa bombeá-la para as caixas de armazenamento. Depois, vou à bodega para comprar o pão subsidiado. A bodega fica aberta entre 8h e 12h e depois entre 16h e 18h. É preciso ir cedo porque a senhora que faz as entregas sai um pouco antes das 11h e só volta à tarde, que é quando a maioria das pessoas chega do trabalho. Às vezes você chega cedo à bodega, mas o pão demora muito para chegar, porque é feito na padaria. Então você tem de ir à bodega várias vezes para ver se já chegou.

Felipe (78 anos): Eu me levanto cedo, entre 5h e 5h30. Depois, dou uma longa volta nas lojas, mercados e na bodega para ver o que chegou e se há algo que eu possa comprar para casa. Por exemplo, estamos no final de fevereiro e ainda faltam alimentos, entre os cinco ou seis que chegam mensalmente pela cesta básica. O pão é a primeira coisa que procuro pela manhã. É praticamente a única coisa que se pode comer no café da manhã, pois não há mais leite ou iogurte, e até mesmo o café é escasso.

Quanto tempo geralmente demora a fila para comprar pão subsidiado?

Alicia: A fila para comprar pão na minha bodega não é muito longa agora porque somente os aposentados vão lá. A essa hora, as crianças estão na escola e os pais estão trabalhando. Mas isso depende de cada bodega. Minha sobrinha enfrenta uma longa fila porque em sua bodega eles fazem o pão ali mesmo e a área para a qual essa bodega entrega é muito grande. Antes era mais fácil comprar pão extra na bodega, mas desde a pandemia está muito mais difícil, porque às vezes nem chega tudo.

Felipe: Minha bodega fica perto, a meia quadra de distância. Quando vejo uma fila grande, vou para casa e espero para ir um pouco mais tarde; caso contrário, espero para comprar na padaria, o que geralmente leva cerca de 15 minutos. Outras pessoas que não moram tão perto têm de ficar na fila por muito tempo pela manhã, o que pode levar cerca de uma hora.

Funcionária de bodega reparte pães subsidiados para entregar a cubanos
Governo cubano reconheceu a falta de pão subsidiado e disse que o problema seguirá pelo menos até o final de marçonull picture-alliance/Demotix

Você também compra pão em padarias particulares? Qual é a situação nelas?

Alicia: Às vezes, é preciso comprar pão de padarias particulares ou de pessoas que vendem na rua. Mas nem sempre é possível fazer isso, porque é muito caro. O pão subsidiado da bodega custa 1 peso, mas na padaria particular custa 25 ou 30 pesos por pão. Um igual ao da bodega. Os de crosta dura ou outros tipos de pães vendidos em padarias particulares ou lojas de doces podem custar até 500 pesos ou mais. Nos estabelecimentos que cobram preços médios, mas fazem pães de boa qualidade, há filas enormes. Você pode ficar na fila por duas horas.

Felipe: Sim, as padarias particulares costumam ter filas curtas, cerca de 15 minutos em média. As padarias estatais também costumam oferecer a opção de comprar o chamado "pão liberado". Nesse caso, as filas que vejo duram cerca de duas horas, pois há muito mais demanda e o preço é um pouco mais baixo do que nas particulares.

Embora eles geralmente ofereçam pão na maioria dos dias, o principal problema são os preços. Por exemplo, os pães costumam custar cerca de 25 pesos cada um, portanto posso gastar facilmente entre 200 e 500 pesos quando compro pão para casa. Na minha casa, meu filho e meus netos também compram pão, mas, por exemplo, em cinco dias de fevereiro nos quais comprei pão gastei 200 pesos. Depois comprei em dois dias pacotes de bolachas, por 300 pesos cada, porque não havia mais pão. E ontem, no dia 25, tive de gastar 700 pesos em bolachas. Até agora, neste mês, isso soma quase 1.500 pesos só em pão. Minha pensão é de 1.600 pesos. Como você pode ver, não tenho dinheiro nem para comprar pão para toda a minha família.

Para quantas pessoas em sua casa você precisa comprar pão?

Alicia: Há seis pessoas morando na minha casa e duas delas não estão no registro estatal. Portanto, elas não recebem pão da cota. É difícil porque há duas crianças em idade escolar em casa e é preciso garantir o pão delas para que não saiam para a escola com o estômago vazio. O pão que sobra, às vezes, cortamos em fatias e fazemos torradas para que pelo menos todos nós possamos comer uma fatia, mas geralmente também guardamos para o lanche da tarde das crianças, que chegam da escola famintas, porque o almoço lá é tão ruim que elas estão sempre com fome.

Felipe: Somos sete pessoas em casa, mas um dos meus netos mora conosco três ou quatro dias por semana.

Você sentiu fome recentemente ou já foi para a cama sem comer?

Alicia: No meu caso, raramente fui para a cama sem comer porque a sobrinha com quem moro prioriza a minha alimentação e a dos filhos dela. Mas é comum que ela faça apenas uma refeição por dia porque não há o suficiente para que todos nós façamos três refeições por dia. Há também muitos idosos na vizinhança que estão sozinhos, porque seus filhos ou parentes foram embora ou não querem cuidar deles. Eles passam muita fome e dependem apenas do que podem comprar na bodega, que não é suficiente nem para uma semana. No dia em que o pão não chega, eles ficam com o dobro da fome.

Felipe: Graças a Deus, eu não passei fome. Mas sei de pessoas que passam. De vez em quando, algumas pessoas passam lá em casa pedindo algo para comer, principalmente pessoas mais velhas. Elas dizem que estão com fome e pedem pão ou algo para comer. Além disso, perto da minha casa há um idoso que mora sozinho e várias vezes tive de lhe dar um pão para que ele comesse alguma coisa. Não sei se eles dormem sem comer, mas durante o dia eles passam fome.

O que você gostaria que mudasse em Cuba e o que planeja fazer no futuro se a situação não melhorar?

Alicia: Não sei, mas algo tem de mudar. A única coisa que resta para a minha geração é ficar sozinha. Os jovens estão deixando o país porque ninguém consegue suportar a fome. Os poucos que fizeram alguma coisa acabaram na prisão. Nós, idosos, estamos ficando cada vez mais desamparados porque o Estado não cuida de nós. Às vezes, acho que as pessoas do governo estão esperando que morramos, assim terão que distribuir menos pão.

Em Cuba, há fome de muitas coisas. Como explicar a uma criança que diz estar com fome que você não tem comida para dar a ela, porque às vezes não há nem mesmo água para enganar o estômago. É muito difícil conviver com isso. São crianças que crescem achando que a fome é algo natural, quando não deveria ser.

Felipe: Eu gostaria que o sistema governamental mudasse. Se a situação não melhorar, não tenho para onde correr. Acho que vou ter de ficar aqui até morrer de fome. Pela minha idade, só me resta esperar se as coisas continuarem a piorar. Talvez um dia o povo saia às ruas, como aconteceu em 11 de julho de 2021, e haja uma violência estatal desproporcional em que setores do poder, como o exército, decidam intervir. Isso é o que eu prevejo para Cuba, mais cedo ou mais tarde haverá uma nova explosão social, mais violenta do que a anterior.

Dois anos depois, América Latina segue neutra sobre Ucrânia

No segundo ano da invasão da Ucrânia pela Rússia, a maioria dos países da América Latina continua sem assumir posição quanto ao conflito. Por sua vez, a vitória do presidente Javier Milei na Argentina representou uma mudança na neutralidade do país. O novo governo deu fortes demonstrações de apoio à Ucrânia e busca ampliar o suporte, mas analistas veem espaço limitado, especialmente sem perspectivas de ter o Brasil na aliança. Enquanto isso, o forte choque que o conflito gerou no mercado de commodities ainda repercute, mas impulsionou adaptações e novas oportunidades na região.

Em dezembro de 2023, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, fez sua primeira viagem à América Latina desde o começo da guerra. Na ocasião, o líder esteve presente na posse de Milei, que fez uma série de declarações em apoio à Ucrânia, e anunciou que planeja uma cúpula regional para angariar apoio à Kiev.

A possibilidade já havia sido ventilada em um encontro entre o ucraniano e o presidente do Chile, Gabriel Boric, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro. O chileno se notabilizou como um dos grandes defensores da Ucrânia na região. Por sua vez, a esperada ausência do Brasil é vista como um sinal de que os planos podem ter eficácia limitada.

"É improvável que Lula participe ou coopere com tal plano, não só por causa das tensões com a Argentina, mas porque é pouco provável que coloque em risco o bom relacionamento do Brasil com a Rússia”, avaliam os pesquisadores da consultoria Eurasia Group Luciano Sigalov e Julia Thomson. Com a falta de apoio do Brasil, além das prováveis ​​dificuldades em alinhar os governos latino-americanos com opiniões divergentes sobre o assunto, é pouco provável que a cúpula alcance resultados importantes, projetam os analistas.

Na visão deles, a eleição de Milei não mudará a posição da América Latina no conflito, já que a Argentina não é um ator geopolítico relevante. "A principal preocupação de Milei é estabilizar uma economia em dificuldades, e ele irá concentrar-se mais nisso do que nas relações externas”, avaliam.

Laços entre Brasil e Rússia

"Para um grande ator como o Brasil, a importância da sua relação com a Rússia está ligada à sua dependência das importações de petróleo e fertilizantes, que são vitais para o seu setor do agronegócio – 28% dos fertilizantes do Brasil são provenientes da Rússia”, apontam os pesquisadores.

Em dezembro, a afirmação de Lula de que Vladimir Putin seria convidado para a cúpula do G20, que será realizada em novembro no Rio de Janeiro, gerou polêmica e críticas. Putin é alvo de um mandado de prisão expedido em março de 2022 pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Como o Brasil é signatário da Corte, o presidente russo poderia ser detido ao desembarcar em território brasileiro. Nos últimos meses, Putin chegou a evitar compromissos internacionais devido aos riscos envolvidos.

Putin e Lula em colagem de fotos
Putin e Lula: brasileiro aceitou convite para ir a cúpula do Brics na Rússianull Tatyana Barybina/TASS/picture alliance | Peter Dejong/AP/picture alliance

Ainda no âmbito do G20, Lula se reuniu nesta semana com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, que esteve no Brasil em razão do encontro de chanceleres do bloco. O ministro reforçou convite para que o brasileiro vá à Rússia em outubro, em razão da cúpula do Brics, o que foi aceito pelo presidente. Na ocasião, Lula voltou a demonstrar disposição para auxiliar em uma solução pacífica para o conflito.

Dias antes, em uma conferência de imprensa na Etiópia, Lula questionou as acusações contra o governo russo por conta da morte do opositor Alexei Navalny. O presidente pediu para que não houvesse conclusões precipitadas. "Eu acho que é uma questão de bom senso. Se a morte está sob suspeita, nós temos que primeiro fazer uma investigação para saber do que o cidadão morreu”, declarou. 

Ainda na América do Sul, Lavrov visitou a Venezuela, onde reforçou os laços com o governo de Nicolás Maduro, seu principal parceiro regional.

A Rússia enfrentou alguns revezes, como um acordo militar entre Equador e Estados Unidos, que desagradou Moscou. Como retaliação, as importações de banana do país sul-americano foram suspensas no começo fevereiro, algo que foi revertido dias depois. Segundo os pesquisadores da Eurasia, os laços comerciais entre a Rússia e a América Latina são muito menos profundos em comparação com a relação entre a região e a China, por exemplo, o que faz com que a pressão econômica seja limitada.

Reconfiguração de mercados

A guerra teve um forte impacto inicial nos mercados de commodities, o que levou à disparada da inflação na região. No entanto, passado o choque, os países se readaptaram ao cenário global, e, em alguns casos, até obtiveram vantagens com o novo quadro. O Brasil, por exemplo, passou a importar uma parte significativa dos combustíveis que a União Europeia deixou de adquirir da Rússia, e se tornou o principal comprador de diesel russo.

Além disso, a busca por alternativas energéticas impulsionou explorações na região, como no caso de Vaca Muerta, na Argentina, zona produtora de gás natural, que passou a ser cobiçada por países europeus devido às restrições às importações russas. Além das fontes tradicionais, energias alternativas, com destaque para o hidrogênio verde, também passaram a ser buscadas por uma série de países, como a Alemanha, visando a transição energética.

Em dezembro, Lula e o chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, assinaram um acordo de cooperação para desenvolver energias renováveis e hidrogênio verde, quando o brasileiro cumpria agenda em Berlim.

No campo dos alimentos, que sofreram fortemente a alta dos preços com a guerra, houve alguma normalização no mercado, e a inflação chegou a registrar recuos. No caso do índice mensal da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), janeiro de 2024 registrou uma queda de 1,0% com relação ao mês anterior. Já na comparação anual, a queda foi de 10,4%. O índice teve seus recordes em 2022, seguindo justamente a invasão da Ucrânia.

Diplomacia das bananas: o poder da Rússia na América Latina

No início de janeiro, o governo do Equador aceitou entregar antigos equipamentos militares soviéticos aos Estados Unidos, que os poria à disposição da Ucrânia para o combate à invasão russa. Em troca, Washington prometeu a Quito armamentos modernos, para a luta do país sul-americano contra o crime organizado.

Poucas semanas mais tarde, as autoridades da Rússia proibiram as importações de bananas de cinco empresas equatorianas, alegando ter detectado um inseto. O anúncio fez tremer o principal exportador do artigo no mundo: a Rússia é seu segundo maior mercado, tendo importado em 2023 cerca de 23% de sua produção.

Independente de haver uma conexão entre os dois casos, as tensões comerciais revelaram a dependência econômica do Equador em relação à Rússia: após o veto de Moscou às bananas, Quito anunciou que não enviaria o material militar destinado à Ucrânia em guerra.

"Nenhum país pode ser pressionado pela Rússia"

Em comparação com os EUA, Europa e Ásia, a Rússia é um sócio comercial marginal para a América Latina. Em 2022, apenas 0,86% das importações da região vieram do país eurasiático, e 0,34% das exportações se destinaram a ele, explica Jorge Alberto López, integrante da Academia Economia, Sociedade e Território da Universidade Autônoma de Chiapas, no México: "A Rússia não é a China para a América Latina e o Caribe, pois o gigante asiático teve maior penetração no comércio."

Membro do Centro de Estudos da Eurásia da Universidade Anáhuac Veracruz, Mauricio Alonso Estévez complementa: "Inclusive países como a Venezuela e a Nicarágua, que se mostram críticos às políticas dos EUA na região, não mantêm uma relação comercial estreita com a Rússia. Em alguns casos em particular, como o de Cuba e Equador, a Rússia aparece como sócia comercial significativa. No entanto, seus volumes comerciais são reduzidos."

Por outro lado, o país euroasiático é o maior provedor de fertilizantes da região, com 21%. Outras importações relevantes são trigo, aço e alumínio. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), Brasil, Equador, Argentina, Chile, Paraguai e México são os seis principais exportadores para a Rússia. Nas importações, Brasil, México, Argentina, Peru, Colômbia e Equador lideram.

"Nenhum dos países da América Latina e Caribe pode ser politicamente pressionado pela Rússia, já que não eles não dependem desse mercado", avalia o economista López, para quem o caso da banana equatoriana "é a exceção, não a regra".

Mauricio Estévez compartilha desse ponto de vista, justificando: "O Equador desistiu da entrega dos equipamentos militares para os EUA pela pressão política que se produziu em nível local e internacional para manter a neutralidade do país diante do conflito na Ucrânia."

Rússia precisa de alta tecnologia, América Latina não tem

Por sua parte, o politólogo Vladimir Rouvinski, diretor do Centro de Estudos Interdisciplinares, Jurídicos, Sociais e Humanistas (Cies) da Universidade Icesi, em Cali, Colômbia, assinala que, após a invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, Moscou intensificou suas relações econômicas com Pequim.

Em 2022 e 2023 também se observou uma "tendência emergente" a um maior crescimento das relações comerciais entre a América Latina e a Rússia, "ainda assim, a América Latina não conseguiu substituir a Europa e outros que introduziram sanções contra a Rússia, porque esta necessita itens de alta tecnologia que a América Latina não oferece".

Entretanto, questões de logística, a falta de sócios estabelecidos e restrições ao uso de ferramentas facilitadoras dos negócios internacionais – como o sistema bancário SWIFT – são alguns dos principais desafios, aponta Rouvinski. Ele diz que o potencial de crescimento é limitado, já que "a América Latina pode oferecer mercadorias, mas Moscou não precisa delas, pois é precisamente o que tem em abundância".

Por que Bob Marley é um ícone dos direitos humanos

Ao se apresentar em junho de 1980 na cidade alemã de Colônia, Bob Marley já estava abatido pela doença. Ainda assim, seu carisma fascinou os 8 mil espectadores. Sobretudo quando entoou sua Redemption song: totalmente só, sob o foco dos refletores, envolto pela nuvem de fumaça das centenas de baseados de maconha distribuídos entre o público.

Menos de um ano mais tarde, em 11 de maio de 1981, o cantor e compositor morria de câncer, aos 36 anos. Contudo suas ideias políticas e espirituais perduram até hoje e continuarão vivendo em sua música, pelo futuro adentro.

Marley levou o reggae e suas mensagens para o mundo de forma tão duradoura que esse gênero musical jamaicano hoje é tocado por toda parte, e a Unesco o declarou Patrimônio Imaterial da Humanidade.

Em 2024, o filme biográfico Bob Marley: One love, dirigido por Reinaldo Marcus Green e estrelado por Kingsley Ben-Adir – com lançamento no Brasil e Alemanha marcado para esta quinta-feira (15/02) –, constitui mais um memorial ao músico.

Cena do filme "Bob Marley: One love"
Kingsley Ben-Adir encarna o cantor jamaicano em "Bob Marley: One love"null Chiabella James

Rastafari: escravidão, religião, esperança, dreadlocks, reggae

Aos 22 anos, Marley descobriu para si a religião rastafari. Ela é relativamente jovem: 2 de novembro de 1930, quando Haile Selassie 1º foi coroado imperador da Etiópia, é considerado o marco de sua fundação. O nome original de Selassie era Ras Tafari Makkonen: no idioma amárico, ras significa "príncipe".

Seus seguidores viam nele a reencarnação de Jesus Cristo, como Deus vivo na Terra. Alguns anos antes, o ativista jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) previra a coroação de um poderoso rei na África, que promoveria a libertação dos negros. Grande parte da crença dos rastafaris remonta à Bíblia, especialmente ao Velho Testamento.

Eles creem num retorno – também espiritual – à África, à terra prometida Etiópia. Os jamaicanos negros são descendentes de africanos escravizados, sequestrados e traficados para a América e o Caribe. Com auxílio de sua fé, os rastafaris buscam superar a ruptura cultural provocada pelo sequestro e escravização de seus ancestrais.

A meta é uma vida o mais natural possível, seguindo os princípios de amor e paz, e guiada pela justiça, unidade e igualdade, numa luta contra a Babilônia – como sinônimo do mundo ocidental, que tanta infelicidade trouxe ao povo africano. Mas para eles Babilônia também representa a Jamaica, onde os antepassados acabaram confinados como escravos.

Manifesto pela legalização da cânabis em Varsóvia, maio de 2011
Manifesto pela legalização da cânabis em Varsóvia, maio de 2011, Polônia: Marley é a figura-símbolonull Jerzy Dabrowski/picture alliance

Estima-se que hoje o movimento mundial dos rastafaris reúna entre 700 mil e 1 milhão de adeptos, de todas as cores de pele, que rechaçam qualquer forma de subjugação humana, seja política, cultural ou religiosa.

Seus característicos dreadlocks – penteados em longas mechas de fios ásperos – têm como fim distingui-los das camadas superiores da sociedade. O tão enfatizado consumo de marijuana serve antes à expansão da consciência do que para inebriar, e não é parte integrante do rastafarianismo.

Com a ascensão de Bob Marley ao estrelato, também a música dos rastafaris ganhou palco mundial. O reggae nasceu na Jamaica da década de 1960, época em que distúrbios sociais dominavam e gângsteres geravam insegurança nas ruas. Reunidos nos assim chamados sound systems, DJs organizavam discotecas ambulantes, combinado estilos existentes como mento, ska, soul e jazz.

Marley contribuiu decisivamente para a evolução do reggae como gênero musical independente: o ritmo relaxado, porém propulsivo, se prestava idealmente para divulgar a mensagem de paz e amor. Apesar de conter bastante retórica religiosa, suas letras também têm os pés no chão, ao narrar os problemas de uma minoria discriminada, de guetos, escravidão e injustiça. Mas a fé rastafari atravessa as canções como um fio de Ariadne.

Bob Marley e seu canto de libertação

Hoje hino inoficial da Anistia Internacional, Get up stand up se originou na viagem de Marley ao Haiti, onde o chocou a miséria da população sob a ditadura de François Duvalier, o "Papa Doc", que durou de 1957 a 1986. O texto exorta a confiar no próprio discernimento, a lutar pelos próprios direitos e não desistir.

Exodus aborda a crença rastafari do retorno à África, em que o nome de Deus é Jah:

Are you satisfied / With the life you're living // We know where we're going / We know where we're from // We're leaving Babylon / We're going to our father land // Exodus, movement of Jah people

(Vocês estão satisfeitos / Com a vida que estão vivendo? // A gente sabe pra onde está indo / Sabe de onde vem // Vamos embora de Babilônia / Vamos pra nossa pátria // Êxodo, movimento do povo de Jah)

Em Zimbabwe, o poeta incita os africanos a liberarem o Zimbábue, denominado Rodésia sob a colonização britânica. Na festa da independência zimbabuana, Marley apresentou ao vivo esta canção, que se tornou o hino nacional inoficial do país.

No woman, no cry expressa a sensação de viver em Trenchtown, o gueto da capital jamaicana, Kingston, onde Bob Marley cresceu, cercado de pobreza e laços familiares fortes, de apoio mútuo. Embora conste que ele é responsável ao menos pela melodia, a autoria é oficialmente atribuída a seu amigo Vincent Ford. Gilberto Gil dedicou uma versão brasileira a No woman, no cry, intitulada Não chore mais.

Mas Redemption song é talvez o maior legado musical do jamaicano. Nela ele cita o profeta rasta Marcus Garvey, que em 1937 disse, num discurso, aludindo ao cativeiro dos ancestrais africanos: "Emancipem-se da escravidão mental, ninguém pode libertar as nossas mentes senão nós mesmos."

Essa ideia e a noção de que morreria em breve inspiraram Bob Marley a escrever a canção que até hoje traz esperança a muitos, por todo o mundo. Embora Redemption song exista em diversas gravações, a preferida de muitos fãs costuma ser a em que ele é acompanhado apenas por uma guitarra: a instrumentação rarefeita reforça a intensidade da canção.

"Os colonos" evoca o genocídio dos nativos da Terra do Fogo

O filme Os colonos é um tipo especial de western, baseado em fatos reais: em 1893, um militar britânico, um mercenário americano e um mestiço chileno partem para uma expedição à Terra do Fogo. Seu contratador, o latifundiário Menéndez, os encarregou de "proteger" suas imensas propriedades.

Isso significa: eliminar com violência a população indígena local. Em seu longa-metragem de estreia, selecionado para o Festival de Cannes, o cineasta chileno Felipe Gálvez Haberle denuncia um capítulo brutal da história da América do Sul, que soa lamentavelmente atual.

O comando da morte massacra os nativos do povo dos selk'nam, nômades de estatura elevada que vivem da caça – inclusive das ovelhas dos colonizadores. Tiros, morte e desgraça, tendo como pano de fundo o impressionante cenário montanhoso do sul da Patagônia: um genocídio que passou quase despercebido pela comunidade mundial.

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Haberle torna a violência visível, revelando assim um dos capítulos mais sombrios da história do Chile. "É um filme que fala do passado, mas que chega até o presente e reflete sobre coisas que acontecem hoje", descreveu o diretor em entrevista ao canal de TV alemão ARD.

Os colonos dá a impressão de ser um faroeste, mas não é. Pois quem diz que a aquisição de terras para a civilização autoriza que se destrua com violência a ordem selvagem originária?

"O cinema do século 20 foi um cúmplice ativo do processo de colonização da América", acusa Haberle. "O western era um gênero de propaganda, que justificava a carnificina das populações indígenas": ao transformar o assassínio em diversão e apresentar os nativos como vilões, "era um cinema extremamente racista".

Passado vivo em fotos e relatos de um missionário

Os primeiros europeus chegaram à região na ponta sul do continente americano em 1520, com a expedição de volta ao mundo do português Fernão de Magalhães. Ao avistarem a fumaça de numerosas fogueiras, apelidaram o arquipélago Terra do Fogo.

Porém, a colonização só começaria em 1850, quando desembarcaram na Isla Grande os primeiros imigrantes da Argentina, Chile e da Europa. Criadores de ovelhas, caçadores de ouro, missionários, além de doenças desconhecidas, praticamente dizimaram a população local.

Felipe Gálvez Haberle, de gorro preto, posa para foto
Cineasta chileno Felipe Gálvez Haberlenull Oscar Fernandez Orengo

Supõe-se que os indígenas chegaram à Patagônia e à Terra do Fogo há cerca de 10 mil anos. Assim como outros quatro povos, os selk'nam enfrentaram as condições inóspitas do labirinto insular, com seu clima polar combinando sol abrasador e frio antártico, e atravessavam em pequenos grupos a paisagem árida, entrecortada por riachos.

Os selk'nam não construíram cidades nem monumentos, não deixaram para a posteridade artefatos de cerâmica, muito menos língua escrita. No entanto, fotos históricos e relatórios científicos do missionário Martin Gusinde (1886-1969) lembram ainda hoje sua cultura.

Enviado pelos Missionários do Verbo Divino, o padre e antropólogo austríaco empreendeu quatro viagens de estudos entre 1918 e 1924, documentando em imagens e áudio a vida dos "índios da Terra do Fogo", na época já quase extintos. Em 2015, a editora Hatje Cantz publicou essas fotos num abrangente volume ilustrado, Begegnungen auf Feuerland. Selk'nam, Yámana, Kawesqar(Encontros na Terra do Fogo).

Hoje preservadas no Instituto Anthropos dos Missionários do Verbo Divino, na cidade de Sankt Augustin, próximo a Bonn, as fotos de Gusinde mostram os nativos, por exemplo, em práticas rituais: na cerimônia Hain, um círculo de jovens nus dança para espantar a chuva e invocar o sol.

Em outras fotografias, os corpos estão inteiramente pintados com listras, círculos, pontos ou superfícies coloridas, dependendo da finalidade e da ocasião. "Gusinde foi um dos primeiros etnólogos a procurar contato direto com os povos", explica o bibliotecário do Instituto Anthropos, Harald Grauer. E, de fato: ninguém jamais chegou tão perto dos fueguinos quanto o sacerdote austríaco.

Dos zoológicos humanos ao reencontro com as tradições

Publicado em 2021 pela editora La Oveja Roja e já traduzido para diversos idiomas, o romance documental em quadrinhos Selk'nam – Fragmentos de un extermínio, dos caricaturistas chilenos Carlos Reyes e Rodrigo Elgueta, lança um olhar crítico sobre o papel da Igreja no genocídio desse povo.

Isso porque, com os criadores de ovelhas e os caçadores de ouro, vieram também os missionários. Em reação aos protestos contra o genocídio, as autoridades do Chile passaram a juntar os selk'nam em grupos. Alguns foram levados para um abrigo provisório no porto de Punta Arenas, ou para a cidade de Ushuaia. Muitos foram parar na missão de Isla Dawson, no Estreito de Magalhães. Assim, segundo críticos, apesar de movidos pelas melhores intenções, os missionários se transformaram em aceleradores do genocídio.

Responsáveis por outro capítulo vergonhoso da colonização da Terra do Fogo foram os zoológicos humanos , que, do fim do século 19 até o início da década de 1930, atraíam um público de milhões na Europa, como antecessores dos reality shows modernos. Também integrantes dos selk'nam foram transportados ao Velho Mundo e comercializados como habitantes primitivos da América do Sul.

Líder europeu do ramo era o zoo de Hamburgo Tierpark Hagenbeck, porém, as "exposições etnológicas" faziam parte da programação cultural normal de muitas outras metrópoles, por exemplo, no Jardim Zoológico de Berlim ou no Jardin d'Agronomie Tropicale de Paris.

Cena do filme "Os colonos"
Papel dos selk'man na colonização da América do Sul é pouco conhecido (cena do filme "Os colonos")null QuijoteFilms

Esse capítulo, em especial o destino dos seres humanos expostos nos zoos, ainda é pouco estudado. Uma exceção é o trabalho do etnólogo Lars Frühsorge, diretor da Coleção Etnológica de Lübeck. Em cooperação com o Museu da Natureza e Meio Ambiente, ele organizou a mostra Hoffnung am Ende der Welt. Von Feuerland zur Osterinsel (Esperança no fim do mundo. Da Terra do Fogo à Ilha de Páscoa).

Para tal, viajou ao arquipélago no Chile, a fim de encontrar-se com descendentes dos selk'nam e mostrar-lhe fotos dos objetos expostos. Desse modo, constatou quão grande é o significado cultural da arte da cestaria para os fueguinos. 

"Antes, durante e depois do genocídio, até hoje, nós tecemos cestos. Colhemos juncos, nos unimos à natureza e chegamos novamente ao território dos nossos ancestrais", revelaram-lhe.

Na opinião de Frühsorge, "tais diálogos são muito mais úteis do que pura observação científica". É uma lição que os museus etnológicos deveriam aprender, insiste, caso contrário "em breve eles não vão mais existir".

O emocionante épico de Felipe Gálvez Haberle não é a única prova de que os selk'nam chegaram para ficar aos tempos atuais. Em 2023, o governo chileno os reconheceu oficialmente como comunidade indígena existente. Desde 2004, alguns descendentes vivem em 35 mil hectares designados pelo governo argentino. Organizados na Comunidad Indígena Rafaela Ishton, eles se ocupam em revitalizar suas tradições e cultura.

Nesse meio tempo, para grande parte do público em geral o primeiro contato com o admirável povo dos selk'nam será acompanhando a expedição assassina dos caçadores de cabeças, a mando de um latifundiário. Os colonos estreou no Brasil em 1º de fevereiro de 2024, e chega aos cinemas da Alemanha em 15 de fevereiro.

Projeto para liberar turismo canábico divide uruguaios

Ao contrário do que se passa em outros locais do mundo, a maconha não é um fator de peso para o turismo do Uruguai. Isso porque, segundo a legislação que regula esse mercado e que acaba de completar dez anos, apenas moradores locais podem comprar e consumir a droga.

Agora o Uruguai debate alterações da lei no sentido de relaxar tais restrições. No verão, quando o pequeno país mais recebe visitantes, a discussão sobre a liberação da comercialização e consumo de maconha por turistas aquece debates na TV e em bares pelas cidades, e divide os moradores e o governo.

"A atual regulação funciona bem. Agora, se abrirmos para todos, vamos nos transformar na nova Amsterdã", afirma o taxista Angel Daniel, de 45 anos, em referência à capital europeia famosa por atrair o turismo canábico.

Já para a garçonete Selma Dias, de 23 anos, a liberação aos turistas, principalmente argentinos e brasileiros, pode trazer benefícios econômicos. "Com a liberação poderíamos receber muito mais gente, gerando muito mais vagas em restaurantes, bares, e resultar numa alta na economia como um todo."

Como Uruguai gere a cannabis?

O Uruguai foi o primeiro país da América do Sul a legalizar o cultivo, comércio e o consumo de maconha. A Lei 19.172, publicada pelo governo de José Mujica em 20 de dezembro de 2013, passou a regulamentar o mercado por meio do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA), que emite todas as licenças para produção, pesquisa e comercialização da droga no país, e também registra os usuários.

Quatro anos depois da primeira aprovação, foi regulamentada a venda de produtos em poucas farmácias espalhadas pelo país. "No Uruguai, pudemos observar uma outra forma de controle social da maconha, no caso uma legalização com forte viés estatal. É o Estado que garante e controla a produção e também a comercialização, abrindo também, felizmente, a possibilidade do cultivo individual ou por meio de clubes e associações", explica Júlio Delmanto Franklin de Matos, doutor em história pela USP.

Os preços da erva são tabelados pelo governo. Em fevereiro, os pacotes de cinco gramas das três variedades comercializadas, que diferem pelo nível de tetrahidrocanabinol (THC, a substância mais psicoativa da cannabis), subiram até 8%. A mais cara, a Gamma, que possui maior taxa de THC, passou de 460 pesos para 500 pesos (cerca de R$ 63).

Apesar de os preços tabelados serem mais altos do que no mercado ilegal, o número de usuários registrados cresce, segundo especialistas. De acordo com dados do IRCCA, hoje há 66,2 mil cidadãos com autorização para compra da droga, cerca do dobro de há dez anos, que podem comprar nas 38 farmácias autorizadas do país. Além disso, para 13 mil está liberado o cultivo doméstico, e os 355 clubes canábicos autorizados registram 2 mil membros.

Atualmente, para comprar, aderir aos clubes ou ao cultivo próprio, é necessário ter pelo menos 18 anos, ser cidadão uruguaio e residir no país. Porém só se pode aderir a uma das três formas de acesso à erva. Para turistas e imigrantes, não há acesso legal.

Maconha para os turistas

As discussões sobre o turismo canábico têm um viés econômico. O país de 3,5 milhões de habitantes recebeu 3,8 milhões de turistas só em 2023, gerando uma receita de cerca de 1,7 bilhão de dólares, 27% a mais do que em 2022, segundo dados do Ministério do Turismo. Tais números explicam por que o debate acerca da liberação do consumo de maconha volta sempre à tona no Uruguai.

O projeto de lei de autoria de sete deputados da oposicionista Frente Ampla foi apresentado à Comissão de Turismo da Câmara dos Deputados e busca "complementar a regulamentação atual relativa à cannabis psicoativa para uso adulto".

DW Revista: A legalização da maconha na Alemanha

De acordo com o projeto, o Uruguai teria grande potencial para desenvolver essa atividade, por ser referência mundial no trato da maconha: "Nosso país é um exemplo no mundo pelo seu quadro regulatório de cannabis", afirmam os autores no projeto de lei complementar.

Além disso, prossegue o projeto, o mercado nacional regulado de cannabis precisa continuar avançando sobre o desregulado, sendo necessário, para tal, a reforma da legislação. "Um dos principais fatores parece ser a impossibilidade de acesso à cannabis por parte dos turistas que visitam o país ano após ano, muitos deles sob o pressuposto de que poderão acessar legalmente este produto, e que descobrem, surpreendentemente, que não podemos fabricá-lo."

Ao jornal local El País, Remo Monzeglio, subsecretário de Turismo e também membro do Conselho Nacional de Drogas, defendeu a necessidade da universalização do consumo, possibilitando a qualquer um comprar a erva, eliminando a necessidade de cadastro. Contudo, ressalvou que ainda há pontos a serem discutidos, não havendo, portanto, uma previsão de mudança.

Divergências nas ruas e na política

Enquanto o projeto é debatido por congressistas e membros do governo do presidente Luis Lacalle Pou, nas ruas dos principais centros, como Montevidéu e Punta del Leste, é fácil encontrar opiniões divergentes entre os residentes.

Roberto Mata, aposentado de 75 anos, afirma que a vantagem econômica trazida pela liberação seria irrisória perto dos problemas: "De que adianta aumentar o número de turistas, se virão milhares sem muito dinheiro, apenas para fumar cigarros de droga e irem embora, sem deixar nada de bom ao país?"

Já para a atendente de hotel Juliete de la Cruz, de 34 anos, a liberação apenas oficializaria algo que já vem ocorrendo: "Já temos notícias de gente que só vem ao Uruguai por causa disso. Ao liberarmos, iremos apenas oficializar, aproveitando também para faturar mais com mais uma vertente de turismo no país."

De acordo com Rosario Queirolo, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Católica do Uruguai, a divergência constatada nas ruas é a mesma do governo. Segundo ela, não há consenso dentro da coalizão governamental sobre a necessidade de aprovação do projeto – o que fica ainda mais evidente em um ano eleitoral.

"Dentro da coalizão multicor que governa, há gente que está a favor desse tema, mas é uma coalizão bastante diversa, com partidos mais à direita que possuem gente contra também. Então acredito que mudanças de políticas públicas que necessitam passar pelo Parlamento ficarão trancadas neste ano, que é um ano eleitoral", prevê Queirolo.

Para a professora, no entanto, a discussão vai além da simples liberação ou não, implicando aceitar que o consumo existe mesmo hoje: "Atualmente o turista encontra a droga – seja no mercado totalmente ilegal ou naquele em que a produção é legal –, mas não o comércio. Então, a ideia é realmente trazer esse turista para o mercado legal, com suas regulações e impostos."

Bananas do Equador na mira do narcotráfico

No dia 25 de agosto de 2023, autoridades espanholas apreenderam o maior carregamento de cocaína já registrado no país: 9,5 toneladas. A mercadoria estava escondida dentro de um contêiner cheio de bananas vindo de Machala, no Equador.

Em julho do mesmo ano, no porto de Roterdã, o maior da Europa, foi apreendido o maior carregamento de cocaína da história da Holanda – 8 toneladas, igualmente escondido em um contêiner de bananas originárias do Equador. Apreensões semelhantes ocorreram nos últimos anos também em portos da Itália e da Alemanha.

As bananas são o segundo principal produto de exportação não petrolífero do Equador. Segundo a Associação dos Produtores de Banana do Equador (AEBE), o país sul-americano exportou mais de 350 milhões de caixas de banana em 2023. Diante de tal magnitude, essas mesmas exportações acabam se transformando num alvo atraente para o tráfico de drogas.

Segundo uma investigação da plataforma jornalística Connectas, das 77 toneladas de cocaína apreendidas em todos os portos equatorianos, 61% estavam em cargas de bananas. As apreensões de drogas em cargas do tipo aumentaram 233%, afirma a reportagem, citando fontes da Polícia Antinarcóticos.

Realizada em conjunto com a emissora de televisão TC Televisión e publicada em setembro de 2023, a reportagem levanta questões sobre a eficácia das medidas governamentais de combate ao tráfico de drogas. Ela denuncia a falta de ação contra os representantes legais das empresas envolvidas nos carregamentos com cocaína e aponta supostas deficiências no sistema judicial equatoriano e nos mecanismos de regulação e controle de exportações.

Em novembro de 2023, com a posse do governo de Daniel Noboa, veio a esperança de uma mudança significativa na situação. "Dentro da pasta do setor agrícola, tomaremos todas as medidas necessárias", afirmou o ministro da Agricultura e Pecuária, Danilo Palacios.

Investimentos em segurança e cooperação internacional

Segundo o ministro, um trabalho para proteger os setores mais vulneráveis ​​e reduzir os riscos existentes está sendo feito através de um esforço coordenado envolvendo todas as entidades relacionadas, incluindo os setores produtivos, os ministérios do Interior e da Segurança.

A indústria bananeira, por sua vez, começou a investir em segurança, incluindo o uso de selos com localização via satélite para contêineres, segundo José Antonio Hidalgo, diretor-executivo da AEBE. "Atualmente, o setor bananeiro investe entre 200 e 220 dólares por contêiner em segurança", afirma.

O Ministro da Agricultura e Pecuária do Equador, Danilo Palacios
"Dentro da pasta do setor agrícola, tomaremos todas as medidas necessárias", diz o ministro da Agricultura e Pecuária do Equador, Danilo Palaciosnull Tobias Baumann

Apesar de todos os esforços, Hidalgo reconhece que o problema também depende da oferta e da demanda no mercado internacional. Por isso, ele defende uma responsabilidade e compromisso compartilhados, especialmente com os principais mercados de exportação da União Europeia, para onde se destinam quase 30% das bananas.

Na semana passada, o presidente do Equador, Daniel Noboa, reuniu-se com os prefeitos das principais cidades portuárias europeias: Antuérpia, na Bélgica,  Roterdã, na Holanda, e Hamburgo, na Alemanha. A reunião buscava a elaboração de estratégias conjuntas na luta contra o tráfico de drogas. Esses portos, fundamentais no fluxo comercial marítimo, têm se destacado como principais canais de entrada da cocaína vinda do Equador para o norte da Europa.

Apesar das apreensões, o governo equatoriano e a indústria agrícola negam ter sofrido impactos econômicos negativos significativos no setor devido ao tráfico de drogas, à violência ou ao conflito armado interno declarado pelo presidente Daniel Noboa.

Uma questão também de segurança

Contudo, a crescente onda de violência ligada ao narcotráfico suscita inquietações em outros aspectos. Hidalgo expressa temores com relação à segurança nas fazendas: "Estamos preocupados com a segurança de nossas fazendas, trabalhadores e administradores. Já não estamos apenas expostos ao esquema de carga adulterada. Trata-se da segurança geral dos funcionários."

Pichação contra a violência no muro de um prédio em Quito, no Equador.
Em 2023, 8.008 pessoas perderam a vida devido à violência no Equador, mais que o dobro do ano anteriornull Philippe Lissac/Godong/picture alliance

Segundo Ángel Rivera, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores Agroindustriais, Camponeses e Povos Indígenas Livres do Equador (Fenacle), a violência afeta desproporcionalmente a população rural, especialmente os trabalhadores do setor bananeiro. "É problemático quando se chega ao trabalho com esse pensamento: o que vai acontecer quando eu sair do trabalho? O que vai acontecer com minha família?"

De acordo com Rivera, a extorsão é uma das principais adversidades enfrentadas pelos trabalhadores, com casos de ameaças nas entradas das plantações com frases do tipo: "Ou me pagam ou matamos os trabalhadores".

No entanto, a situação começou a melhorar graças ao aumento da vigilância policial em tais zonas, afirma o dirigente sindical. A Fenacle procura iniciar um diálogo com as autoridades para implementar medidas de controle no acesso às plantações e oferecer o apoio necessário tanto às empresas quanto aos seus funcionários.

Apostando na mudança que o novo governo é capaz de trazer, Rivera se mostra otimista: "Ressaltamos que as coisas vão mudar com as decisões do presidente".

O que salvou um bairro de ser destruído pelos incêndios no Chile

Os incêndios arrasadores que se espalharam pela região chilena de Valparaíso na última sexta-feira (02/02) deixaram, até agora, mais de 130 mortos, centenas de desaparecidos, mais de doze mil casas destruídas e 26 mil hectares de devastação. Temperaturas elevadas, baixa umidade e ventos com força de furacão criaram as condições para que o fogo avançasse em alta velocidade.

As chamas também atingiram o jardim botânico de Viña del Mar, que teve mais de 90% de sua superfície queimada. Próximo ao parque, porém, o bairro Botania e outros locais da área denominada Canal Chacao, na comuna de Quilpué, conseguiram se salvar, ainda que em meio a uma paisagem desoladora.

Nem toda a área, com suas mais de 1,5 mil moradias, teve a mesma sorte. "Temos aproximadamente quase 250 casas queimadas e sete mortes. Mas se não tivéssemos atuado no trabalho de prevenção, esse número poderia ter sido muito maior", disse à DW Rodrigo Vargas, presidente do Grupo Canal Chacao para prevenção e segurança de incêndios florestais.

Prevenção e trabalho comunitário

O grupo foi formado após os trágicos incêndios que afetaram outras áreas da região em 2022. A iniciativa partiu da própria comunidade, que aderiu a um projeto de gestão territorial para prevenção de incêndios, organizado pela Cáritas Chile e pela Corporação Nacional Florestal (CONAF), com financiamento da USAID BHA, o órgão de assistência humanitária da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.

Há mais de um ano, o grupo trabalha com prevenção e se prepara para enfrentar ameaças como a vivida há poucos dias. "O trabalho comunitário é um princípio fundamental para reduzir o risco de desastres", disse à DW o coordenador nacional do projeto, Pedro Contreras, da Cáritas.

Grupo de moradores que participam de projeto da Cáritas Chile para prevenção de incêndios florestais posam para foto, em uma área aberta, com um prédio de apartamentos ao fundo. À frente deles, pás e enxadas estão reunidas sobre o chão.
Grupo de moradores trabalhando no projeto de prevenção de incêndiosnull Agrupación Canal Chacao

"O fogo poderia ter devastado tudo, queimando-nos por completo. A única explicação para esses bairros terem sido salvos é o trabalho comunitário, que nos permitiu ter o conhecimento técnico sobre o que é poda e capina, e o conceito de prevenção de incêndios florestais", diz Vargas.

"Não existe risco zero, mas uma série de ações nos permitiu ter resultados como os que vimos, que é reduzir o risco", enfatiza Contreras. Atualmente, o programa está sendo desenvolvido em sete comunas do Chile, nas regiões de Valparaíso e Ñuble.

Ações comunitárias

Outro passo importante foi conhecer o território, recolher dados e identificar riscos e locais vulneráveis. No caso do bairro Botania, a proximidade com áreas florestais era um sinal de alerta. Foram criadas ações para enfrentar esses riscos, começando com jornadas de capina, poda, criação de aceiros (desbaste de vegetação para impedir propagação de incêndios) e retirada de lixo em setores vulneráveis.

"A matéria vegetal combustível deve ser retirada da área de interface urbano-florestal para reduzir as condições de propagação do fogo em um incêndio florestal. Isso implica também trabalhar com o município, que retira essa matéria", detalha Contreras.

Juntamente com a capacitação, moradores reforçaram o sistema de alerta e resposta prévia e garantiram projetos de financiamento para permitir um programa de ação completo. Entre outros, foram adquiridos ferramentas de manejo florestal, maquinários como capinadores e cortadores de grama, e construídos lagos com mais de três mil litros de água em pontos estratégicos para umedecer setores de risco e proporcionar uma resposta rápida.

Além disso, eles também instalaram câmeras de segurança para monitorar a área de interface, principalmente nas temporadas de temperaturas elevadas, e adotaram o rádio como um meio de comunicação acessível em caso de emergência e queda do sinal telefônico, algo fundamental para coordenar a evacuação e salvar vidas.

Tarefa de todos

A tragédia poderia ter sido maior, é fato, mas com tantas vidas e lares perdidos, o golpe não deixou de ser severo. Vargas apela pelo apoio aos vizinhos mais desamparados: "Há muitos que perderam absolutamente tudo; não têm sequer seus documentos. "O governo prometeu ajudar, enquanto organizações como a Cáritas, municípios e instituições privadas realizam campanhas para angariar doações em dinheiro.

O presidente do Grupo Canal Chacao alerta ainda para a necessidade de proprietários de terrenos florestais tomarem medidas para manter limpa a interface com as áreas habitadas: "Deve haver uma responsabilidade por parte dos proprietários que têm florestas próximas dos centros urbanos. Aceiros são fundamentais para proteger a vida e a propriedade das pessoas."

Venezuela cada vez mais distante de eleições livres

A Organização de Estados Americanos (OEA) condenou neste domingo (28/01) uma decisão da Justiça da Venezuela que impediu a candidatura à Presidência da líder da oposição María Corina Machado, juntamente com as de outros nomes que pretendiam concorrer contra o presidente Nicolás Maduro.

A OEA acusou Maduro de violar o acordo firmado em outubro de 2023 entre o governo e a oposição, que visava assegurar a realização de eleições livres com a presença de observadores internacionais em troca do alívio de sanções impostas pelos Estados Unidos.

A entidade avalia que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) venezuelano, anunciada na última sexta-feira, elimina qualquer possibilidade de uma eleição "livre e justa" e considera que, juntamente com a recente "acusação e prisão política de opositores", serve como evidência de que Maduro "não tem intenção de permitir" que as eleições ocorram livremente. Mais de 2,4 milhões de venezuelanos estão aptos a votar.

"Esta lógica ditatorial de perseguição política e violação dos direitos políticos dos cidadãos – absolutamente previsível e presumível, dado o contexto do regime – elimina mais uma vez para a Venezuela a possibilidade de eleições livres, justas e transparentes", afirmou a OEA em nota divulgada na noite deste domingo.

Além da candidatura de Maria Corina Machado, o STJ desqualificou outros oposicionistas de concorrerem nas próximas eleições, incluindo o ex-candidato à Presidência e ex-governador de Miranda, Henrique Capriles Radonsky.

Judiciário sob suspeita

Em outubro do ano passado, Machado venceu as eleições primárias da Plataforma Unitária Democrática (PUD), que reúne os principais partidos de oposição na Venezuela, com 92,35% dos votos.

"Exigimos que a decisão tomada pelo STJ seja revogada. Deve ser anulada e voltar ao status quo anterior", afirmou à imprensa o chefe da delegação que representa a oposição nas negociações com o governo, Gerardo Blyde. Ele afirmou que a PUD entrará com uma denúncia junto ao governo da Noruega, que atuou como medidor, informando a violação parcial do Acordo de Barbados.

A Iniciativa Democrática de Espanha e das Américas (Idea), que reúne antigos e atuais chefes de Estado e de Governo, também condenou a decisão do STJ.

Líder da oposição María Corina Machado em coletiva de imprensa
Supremo venezuelano impede candidatura de líder da oposição María Corina Machado e de outros nomes que pretendiam concorrer contra Nicolás Maduro.null Matias Delacroix/AP/picture alliance

"Maria Corina Machado, de acordo com as regras da democracia, continua a ser a legítima representante da oposição na Venezuela e a sua candidata presidencial perante a comunidade internacional, que respeita o Estado democrático, de direito e constitucional e venceu eleições primárias por uma maioria determinante", afirmou a entidade em nota divulgada no sábado.

"A atuação da ditadura de Nicolás Maduro, através de um STJ cuja direção acaba de ser confiada a uma militante do partido no poder, antiga vereadora, sem prática jurídica nem formação judiciária ou acadêmica, evidencia seu reiterado desprezo pelos elementos essenciais e componentes fundamentais da democracia, consagrados na Carta Democrática Interamericana", disse a Idea.

"Os governos dos países garantidores devem agir em conformidade" perante "a violação aberta do Acordo de Barbados, nos termos dos quais o regime se comprometeu a respeitar o direito de cada ator político a escolher o seu candidato e de acordo com os seus mecanismos internos".

O que diz o acordo

O Acordo de Barbados foi assinado em 29 de outubro de 2023 por antigos e atuais chefes de Estado e de Governo da região, entre eles, Iván Duque, da Colômbia; Mário Abdo, do Paraguai; Óscar Arias, da Costa Rica; José Maria Aznar, da Espanha; Nicolás Ardito Barletta, do Panamá e Felipe Calderón, do México.

Também assinaram Vicente Fox, do México; Eduardo Frei e Sebastián Piñera, do Chile; Luis Alberto Lacalle, do Uruguai; Guillermo Lasso, do Equador: Carlos Mesa, da Bolívia: Mauricio Macri, da Argentina e Andrés Pastrana e Álvaro Uribe, da Colômbia.

No acordo sobre garantias eleitorais, as partes se comprometeram a continuar o processo de diálogo e negociação com relação a outras medidas, "entendendo a necessidade de suspender as sanções contra o Estado venezuelano", disse o governo Maduro após a assinatura.

Dois homens assinam documentos enquanto outros homens observam
Acordo de Barbados foi assinado em 17 de outubro de 2023 na ilha caribenhanull Randy Brooks/AFP/Getty Images

As partes afirmam ainda o seu compromisso com o fortalecimento de uma democracia inclusiva e uma cultura de tolerância e convivência política e ratificam a vontade de alcançar as condições necessárias para que os processos eleitorais se realizem com todas as garantias. Também "condenam qualquer forma de violência política contra a Venezuela, o seu Estado e as suas instituições".

O governo e a oposição reconhecem ainda o direito de cada ator político de escolher livremente e de acordo com os seus mecanismos internos o seu candidato às eleições presidenciais, cujas garantias para todos os intervenientes vão ser promovidas conjuntamente. Propõem também que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) realize uma atualização do registo eleitoral, além de campanhas de informação, inscrição e atualização de dados.

O acordo prevê ainda uma "limpeza" do registo eleitoral e a realização de auditorias com a participação de atores políticos, observação internacional e parceiros nacionais. O governo venezuelano e a oposição se comprometeram a promover "um discurso público e um clima político e social favorável ao desenvolvimento de um processo eleitoral pacífico e participativo, sem ingerências externas, com respeito pelos cidadãos, pela autoridade eleitoral, pelos atores políticos, pela Constituição e pelas leis do país".

O Brasil também apoiou o pacto firmado entre governo e oposição. À época da assinatura do acordo, o governo brasileiro enviou a Barbados o assessor-chefe especial para assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, para ser testemunha em nome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A ida de Amorim foi decidida após uma conversa telefônica entre Lula e Maduro, na qual, segundo o gabinete da Presidência brasileira, Lula questionou sobre o andamento das negociações entre o governo venezuelano e a oposição.

Retomada das sanções

Os Estados Unidos, que anunciaram em meados de outubro uma redução das sanções impostas contra Caracas nos setores do gás e do petróleo, "estão em processo de revisão da sua política de sanções com base neste desenvolvimento e nos recentes ataques políticos a candidatos da oposição democrática e da sociedade civil", disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Matthew Miller.

Segundo Washington, a decisão do Supremo Tribunal de desqualificar a candidata "vitoriosa nas primárias democráticas da oposição não é consistente com o compromisso assumido pelos representantes do Presidente Nicolás Maduro de organizar uma eleição presidencial justa em 2024". 

rc/le (DW, Lusa, ots)

 

O desafio de Bukele de atrair investimentos para El Salvador

O governo do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tem insistido que nos últimos anos o investimento estrangeiro aumentou no país. O próprio Bukele defende essa premissa em suas redes sociais. Os dados, entretanto, mostram outra realidade.

Bukele chegou ao poder em El Salvador em junho de 2019, sendo eleito no primeiro turno em fevereiro daquele ano,  com um discurso anticorrupção, após uma ascensão fulminante, que fez dele o presidente mais jovem da história do país, com apenas 37 anos.

Agora, é favorito para vencer as próximas eleições, marcadas para o começo de fevereiro, após implementar com sucesso uma polêmica campanha de combate à violência, que incluiu a imposição de um estado de exceção com suspensão de direitos constitucionais dos cidadãos.

Em um ano, mais de 65 mil pessoas foram detidas, acusadas de pertencer a gangues ou de colaborar com elas – a polícia não precisa provar nada para prender, basta suspeitar. Organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que entre os detidos estão milhares de inocentes e denunciam violações dos direitos humanos e enfraquecimento da democracia e do Estado de Direito.

A estratégia, que passou por cima de padrões democráticos, ajudou a diminuir a criminalidade. Em 2015, a taxa de homicídios no país era de 107 por 100 mil habitantes. Esse número caiu para 2,3 homicídios por 100 mil habitantes em 2023.

Entretanto, a redução da violência que assolava o país parece não se refletir nos números sobre investimentos estrangeiros. De acordo com o Banco Central de Reserva (BCR) – o banco central salvadorenho –, no terceiro trimestre de 2023, o Investimento Estrangeiro Direto (IED) no país foi de 1,66% do PIB, um valor que está longe dos 7,56% de 2017, para não falar dos 17,96% registrados em 2007.

Estes números condizem com os do Banco Mundial sobre o IED em El Salvador, que mostram uma transição descendente, passando de 800 milhões de dólares em 2021 para um fluxo negativo, registrando menos 388 mil dólares em 2022.

Embora a tendência tenha sido invertida em 2023, com 262 milhões de dólares em IDE no primeiro semestre daquele ano, especialistas como o economista Otto Rodríguez sustentam que estes são números demasiado baixos para as expectativas do país. "Deveríamos ter cerca de 1 bilhão de dólares para aumentar o ritmo de crescimento", declarou o especialista ao jornal La Prensa Gráfica. É verdade que a segurança melhorou em El Salvador, mas também é um fato que as empresas não investem o suficiente.

O problema da segurança

A segurança tem sido precisamente um dos fatores que afetam os fracos números macroeconômicos salvadorenhos. Um país atolado na violência de gangues criminosas não é muito atraente para os investidores. A mudança radical que El Salvador viveu neste sentido faz com que alguns acreditem que é uma questão de tempo para que as grandes empresas internacionais se concentrem nas possibilidades oferecidas por um país com uma economia dolarizada.

Mas existem outros fatores. O economista Carlos Acevedo, ex-presidente do BCR, acredita que falta uma política estatal para atrair investimentos. "O compromisso do governo deve ser o de reativar a economia, e é preciso atrair investimentos sérios", disse ao jornal El Mundo, alertando que de outra forma será impossível levantar a economia do país.

Na avaliação dele, esse será o desafio de um eventual – e muito provável – novo mandato para Bukele após as eleições de fevereiro. Ele também destaca uma desvantagem de El Salvador: é um país caro em comparação com Guatemala e Honduras.

Policiais armados e com máscara diante de prédio
Com política controversa, governo Bukele diminuiu os índices de violência no paísnull Salvador Melendez/AP/picture alliance

"Foi demonstrado nos últimos dois anos que a queda na criminalidade não implica em um aumento no investimento. Os homicídios diminuíram, mas o investimento estrangeiro não aumentou e, na verdade, diminuiu em relação aos dados históricos", disse à DW a economista salvadorenha e especialista em finanças públicas Tatiana Marroquín. "Foram feitas pesquisas sobre o que atrai o investimento estrangeiro, e há fatores como os custos de energia e transporte, além do perfil dos trabalhadores, que não é buscado por investidores", acrescenta.

Perspectiva pode mudar

O problema para os planos da Bukele é, portanto, o fato de que investidores não analisam apenas o número de homicídios em um país antes de investir. O Estado de direito, o sistema judiciário e a previsibilidade das normas e regulamentos são elementos analisados nesses cenários, assim como o risco do país, que, no caso de El Salvador, continua muito alto.

"Os últimos números do Conselho Monetário Centro-Americano mostram que El Salvador é o país da região com menos investimento estrangeiro no segundo trimestre de 2023, muito atrás de Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Também devemos analisar que tipo de investimento estrangeiro estamos buscando", diz Marroquín, frisando não ser útil promover, por exemplo, "um tipo de turismo que desloca populações e não gera crescimento ou desenvolvimento".

A perspectiva, entretanto, pode mudar no futuro. O governo de El Salvador apresentou 200 projetos na Costa Rica que exigem investimento estrangeiro, e estão previstas iniciativas de desenvolvimento com empréstimos do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e contribuições de doadores estrangeiros.

Além disso, o turismo está em alta, a taxa de desemprego está em torno de 5% e a inflação, que em 2023 era de apenas 1,2%, está entre as mais baixas das Américas.

"Não ser o único afetado é um fator protetor no trauma coletivo"

Quando a água arrastou casas e ceifou vidas no Rio Grande do Sul, quando subiu até o teto e impediu pessoas de trabalharem ou desfrutarem da segurança do lar, ela também provocou impactos profundos na saúde da mente. Muitas pessoas viram suas memórias afetivas e os frutos de anos de esforço desfazerem-se em poucos dias. Milhares estão desalojados ou desabrigados, sem saber quando vão poder retornar às suas casas e, muitas vezes, sem recursos para recomeçar.

"Para algumas pessoas, é muito mais do que algo material, é como se fosse a representação da sua vida. É como se a minha vida, as minhas memórias materiais, as lembranças dos meus filhos, dos meus nascimentos, tudo tivesse sido levado embora; e tudo foi, de alguma forma, levado embora", afirma o psicólogo Christian Haag Kristensen, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (NEPTE/PUC-RS).

O grupo capacita e orienta voluntários que prestam os primeiros socorros psicológicos às vítimas da enchente em diferentes abrigos na cidade de Porto Alegre e na região metropolitana.

Em diferentes medidas, a catástrofe tocou todos os gaúchos, que lidam agora com os sentimentos de ansiedade, impotência e angústia. 

Em entrevista, Kristensen explica os impactos da tragédia na saúde mental, as dimensões de um trauma coletivo, e como as pessoas e comunidades podem se fortalecer para enfrentar o momento. 

DW: Que efeitos na saúde mental um estresse traumático do nível das enchentes no Rio Grande do Sul pode causar?

No curto prazo, temos um grande evento estressor considerado primário: a ameaça à vida, o ser arrastado pela correnteza, o ferimento, ficar sem água, sem luz, sem comida. Mais adiante, ocorre um segundo impacto, um estressor secundário, que é a pessoa querer voltar para casa, mas não ter mais casa, não ter mais trabalho. Na dinâmica de eventos estressores climáticos extremos, um se soma ao outro.

O que vimos nas pessoas nessas primeiras semanas foram reações agudas de estresse que são até esperadas, como reações emocionais intensas; reações cognitivas como confusão mental e dificuldade em tomar decisão; reações físicas intensas como cansaço, fadiga, tensão muscular, além de um impacto nas relações interpessoais. Essas reações, que são até, digamos, normais para o momento, vão diminuir com o passar do tempo para a maior parte das pessoas, que aos poucos recuperarão seu funcionamento saudável. A maior parte das pessoas não vai adoecer.

Que emoções ou sintomas, se não receberem o devido cuidado, podem se agravar ou transformar-se em quadros crônicos?

Uma parte das pessoas vai manter reações muito intensas por muito tempo. E aí nós podemos já estar falando de sinais e sintomas que vão configurar transtornos mentais mais adiante. O que é mais comum em um médio prazo – daqui a 12 meses, aproximadamente – é um aumento nos quadros de ansiedade e transtorno de ansiedade.

Além disso, algumas pessoas já estão precisando de um nível de atenção em saúde mental especializado por estarem tendo quadros psicóticos, quadros dissociativos – que é quando a pessoa tem um certo rompimento com a realidade –, ou por estarem começando a fazer uso de substâncias como o álcool para lidar e aclamar o fator estressor, o que pode virar um problema crônico.

É importante lembrar que uma parte muito grande das pessoas já tinham problemas psicológicos prévios que agora se agravaram. Isso pode ocorrer até mesmo com aquelas que não foram diretamente afetadas pelas enchentes, mas estão em contato com as notícias e com o sofrimentos dos outros.

Que estratégias de enfrentamento ao trauma as pessoas podem usar? Tanto as que passaram diretamente pelos impactos das enchentes, como quem tem amigos que estão nessa situação crítica?

O primeiro passo é normalizar a resposta. É entender que eu passei, ou meu amigo passou, por algo muito grave, que representou um risco à vida, à integridade física, que já está promovendo um prejuízo imenso do ponto de vista de estrutura. Então, é normal que, frente a uma ameaça, eu possa ter pesadelos, pensamentos intrusivos; possa me sentir ansioso quando começa a chover, por exemplo, já que ativa uma memória dolorosa. Tudo isso é esperado. É importante dizer, até para si mesmo: olha, eu te entendo, está bem se sentir assim, a maioria das pessoas se sente assim nesse momento.

Outro ponto importante seria poder ter uma rotina – se não for a sua rotina de antes, alguma rotina. E também, aos poucos, poder ter alguma atividade física. Além disso, é fundamental se reconectar com o seu grupo de apoio: familiares, círculo de amigos, grupo da igreja, líder comunitário, etc. Também é benéfico não ficar exposto de forma excessiva a notícias e mídias sociais, vendo imagens da enchente. A memória que fica da situação traumática não precisa ser reativada o tempo todo, especialmente fora de um contexto terapêutico.

E como lidar com o sentimento de incerteza, já que muitas pessoas estão em abrigos e não sabem até quando vão ter de ficar lá?

A pessoa que passa por uma situação desse tipo fica com uma necessidade aumentada de segurança. E ela busca por certezas, e às vezes busca na relação com o voluntário ou o socorrista. Uma das piores coisas que se pode fazer na tentativa de ajudar o outro é prometer algo que você não pode cumprir, porque você não sabe o que vai de fato acontecer.

Aos poucos as incertezas vão diminuir – e para aqueles que não diminuir, é preciso aprender a tolerar a incerteza. Nós já praticamos isso constantemente nas nossas vidas. Nossa mente trabalha com ideias de futuro que não sabemos se de fato irão ocorrer.

Mas também é importante frisar que precisamos trabalhar no sentido de esperança: porque as coisas em algum grau irão, aos poucos, melhorar. Em algum grau, nós teremos reconstrução. Em algum grau, nós teremos um retorno a situações de normalidade.

Barco em uma rua inundada. A embarcação está lotada e muitas pessoas em volta, dentro da água, esperam por ajuda.
Centenas de pessoas tiveram de ser resgatadas em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegrenull Amanda Perobelli/REUTERS

E o sentimento de impotência, de querer fazer alguma coisa e sentir que não consegue ajudar, como lidar com a angústia que pode vir disso?

Eu acho que são três coisas: angústia, o senso de impotência, e a culpa. A angústia, em algum grau, nos move. E em um grau muito elevado, nos paralisa. Ter essa ansiedade de querer ajudar, que está na mesma direção de um desejo de ajudar o próximo, é uma das coisas mais importantes nesse momento.

Então, o que eu posso fazer? Talvez eu não vá até o Rio Grande do Sul entrar na água para socorrer pessoas, mas o que eu posso fazer? Uma doação? Posso fazer isso à distância? Posso ajudar a disseminar informações de boa qualidade? Posso ligar para o meu amigo que está no estado e perguntar como ele está? Aí temos que lidar com os limites de cada um, e não se sentir culpado porque não está contribuindo de uma certa maneira.

Vale ressaltar que estamos vivendo uma fase aguda da catástrofe. Nós vamos ter um longo caminho pela frente e muitos meses para poder ajudar.

Como uma comunidade lida com um trauma que é coletivo?

Um aspecto muito relevante é que há um "fator protetor" nessa coletividade. Traumas de natureza interpessoal – aquele dano que uma pessoa faz à outra – tendem a provocar prejuízos maiores do ponto de vista da saúde mental. Situações traumáticas como essa que nós estamos vivendo são muito impactantes, mas a ideia de que eu não sou o único afetado por isso, isso não aconteceu por algo que eu fiz ou deixei de fazer, é um grande fator protetor.

Eu acho que esse senso de comunidade é a base na qual vai se dar a reconstrução e a superação, inclusive psicológica, desse trauma que tocou a todos. A perspectiva de superação também é coletiva.

São os grupos que vão se reorganizar, os líderes comunitários, os agentes de saúde que conhecem cada uma daquelas pessoas. E eles, dentro de uma perspectiva de gestão pública de saúde mental, serão decisivos.

São muitas as perdas e os lutos. Nas comunidades que foram realmente arrasadas, como lidar com a perda das referências, da memória, da própria identidade?

Temos cenários muito distintos. Vai ter aquela comunidade onde as pessoas vão, aos poucos, retornar aos seus lares, limpá-los. Isso vai ser um longo processo, mas a sua casa está lá, a loja onde trabalhava está lá, o posto de saúde está de pé. Mas algumas comunidades foram devastadas, só sobraram escombros. Aí a atenção para a saúde mental deve ser muito maior.

Para algumas pessoas, é muito mais do que algo material, é como se fosse a representação da sua vida. É como se a minha vida, as minhas memórias materiais, as lembranças dos meus filhos, dos meus nascimentos, tudo tivesse sido levado embora; e tudo foi, de alguma forma, levado embora.

Nesses casos que são muito extremos – e não são poucos –, vamos precisar dar um novo significado ao que está sendo construído, de que isso possa representar em algum grau a superação, o esforço individual e coletivo. Será necessário um esforço grande de ressignificação.

Como já tivemos uma tragédia grave de chuvas no estado em 2023, existem relatos de crianças que entram em pânico quando começa a chover. Como ajudar os pequenos a lidar com esses gatilhos?

Em primeiro lugar, é importante a criança estar em um contexto de segurança. E muitos abrigos estão muito bem organizados para propiciar certo lazer às crianças. Outro aspecto importante é poder explicar aquilo para a criança, dizer: "Olha, a chuva, assim como o sol, faz parte." Mas quando a criança fica muito ativada, você pode até usar uma técnica de distração ativa, desfocar a atenção da criança para outro estímulo. E, eventualmente, até alguma técnica de relaxamento, como exercícios de respiração, adaptada de forma lúdica.

Historicamente, o Rio Grande do Sul é o estado com a maior taxa de suicídios do Brasil. De acordo com levantamento de 2020, esse número era de 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o dobro da média nacional. Que medidas serão necessárias para cuidar da saúde mental no estado?

Nesse momento temos a centralização desse cuidado na Força Nacional do SUS, que está trabalhando junto com a Secretaria Estadual de Saúde e as coordenadorias regionais das áreas mais afetadas, capacitando o quadro técnico do ponto de vista de saúde mental e já dispondo de voluntários – que são profissionais de saúde do SUS – para ficarem localizados naquelas regiões. Isso já está em curso, o que é algo muito positivo. O grande desafio, na minha opinião, nem é tanto agora, mas no longo prazo. Como é que a gente reconstrói os dispositivos de saúde mental nas comunidades mais atingidas? Isso será fundamental.

Alguns desses quadros de estresse pós-traumático e transtornos depressivos estão muito associados ao risco de suicídio. Algo que contribui tanto para a ideação quanto para a tentativa de suicídio é a desesperança. Então é um momento de estar atento e dizer para as pessoas que nós podemos ter esperança, de que muitas dessas experiências emocionais negativas são transitórias.